Por Sérgio Aleixo (*)
Ressaltam a seu favor, os que reclamam
atualizações doutrinárias, a dita de Kardec que afirma que, se uma verdade nova
se revela, o espiritismo a aceita; todavia, omitem a condição estabelecida pelo
mestre para que tal ocorra. De ordem física ou metafísica, novos informes que
venham a integrar-lhe o cômputo de ensinos, necessariamente, já se devem
encontrar no “estado de verdades práticas e saídas do domínio da utopia, sem o
que o espiritismo se suicidaria”.[1] E essa praticidade consiste em quê?
Análises rigorosamente filosóficas respaldadas, quanto possível, em pesquisas
demonstradamente científicas. Tal é o espírito da doutrina. Leia-se mais
atentamente a nota ao n. 188 de O Livro dos Espíritos:
“De todos os globos que constituem
o nosso sistema planetário, segundo os espíritos, a Terra é daqueles cujos
habitantes são menos adiantados, física e moralmente; Marte lhe seria ainda
inferior, e Júpiter, muito superior, em todos os sentidos”.
Kardec apresenta o ensino dos espíritos que
lhe fora dado registrar até aquele momento, a este particular respeito, em
caráter transitório, pois o relega ao patamar de mera hipótese, razão por que
se valeu da forma verbal francesa correspondente ao futuro do pretérito do
nosso idioma pátrio: “seria”, e posta, ao demais, numa nota de rodapé, não no
texto principal. Atualizar, pois, o quê, se não foi consignado ali grau
absoluto de certeza? Nada mais adequado da parte do codificador, sobretudo
quando não se refere propriamente ao princípio em si da pluralidade dos mundos
habitados, mas a um assunto de interesse secundário: a vida nesse ou naquele
planeta, que não reclama sequer a chancela da universalidade de ensino.
“A única garantia segura do ensino
dos espíritos está na concordância das revelações feitas espontaneamente,
através de um grande número de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos
lugares. Compreende-se que não se trata aqui de comunicações relativas a
interesses secundários, mas das que se referem aos próprios princípios da
doutrina.”[2]
De mais a mais, o que parece ignorado é que a
verdadeira atualização foi perpetrada pelo próprio Kardec, em O evangelho
Segundo o Espiritismo, III, 8 a 12. O texto é considerado parte das Instruções
dos Espíritos, mas quem o redige, à guisa de “Resumo do ensinamento de todos os
espíritos superiores” sobre “Mundos superiores e mundos inferiores”, é Allan
Kardec! O mestre não declina, ali, o nome de nenhum planeta sequer, como quem
sinaliza para o fato de que só as generalidades interessavam à chancela da
universalidade do ensino, devendo ser abandonados os méritos das
circunscrições, na certa, por absoluta falência dos instrumentos e meios de
aferição. Logo, um suposto apêndice atualizador, como querem alguns, converter-se-ia
em foco de confusão acerca do assunto, seja por não contemplar o real
tratamento que a matéria recebeu já na codificação espírita, seja no que
respeita às pseudossoluções apresentadas, como a infalibilidade dos conteúdos
da obra psicografada por Chico Xavier, o que seria um acinte. Em termos
espíritas, nada que venha de uma única fonte mediúnica, seja qual for, jamais
poderá ser considerado “inquestionável”. Seria um retorno à ancestral
infalibilidade divinatória sem qualquer justificativa à luz da doutrina. A
codificação kardeciana assegura que “o melhor [médium] é o que, simpatizando
somente com os bons espíritos, tem sido enganado menos vezes”, assim como
preconiza que, “por melhor que seja um médium, jamais é tão perfeito que não
tenha um lado fraco, pelo qual possa ser atacado”.[3]
Por outro lado, se Kardec publicou em A
Gênese ditados recebidos de um só médium, sobre Uranografia Geral, é porque se
fiou noutras fontes mediúnicas concordantes de que dispunha, aferidas por
lógica severa e esmerada cultura de época; esses ditados, aliás, talvez
tivessem sido rejeitados por Kardec, no todo ou em parte, se os dados positivos
adquiridos até aquele ano já atestassem, por exemplo, que, sim, Marte possui
satélites.[4] De qualquer forma, a presença ou ausência de corpos celestes, bem
como sua constituição, não é matéria afeta à doutrina espírita em si. Kardec
disse certa vez que, no domínio científico, nada cabe ao espiritismo resolver
de forma definitiva, “naquilo que não é essencialmente de sua alçada”.[5]
Portanto, nenhum precedente aí se verifica que enseje a atualização sugerida,
ainda menos nos termos pretendidos. E alegar a existência de um ensino
concordante de alguns poucos espíritos (e muito duvidosos) na produção de Chico
Xavier fora esquecer que tal situação é aquela em que várias entidades se
comunicam por um único médium, o que só se aproxima do que seria, para Kardec,
a concordância de ensino “menos segura de todas”.[6] Não haveria prudência
alguma em aplicar tão franzino acordo. O informe de O Livro dos Espíritos era
de interesse evidentemente secundário, não reclamando sequer universalidade e,
ainda assim, foi afastado por um Kardec posto ante os dados concordantes dessa
mesma universalidade, os quais não alcançaram segurança que permitisse ao
codificador afirmar o mérito das circunscrições a respeito, sendo suficientes,
todavia, para chancelar as generalidades, as probabilidades, como o prova o
procedimento do gênio lionês em O evangelho Segundo o Espiritismo, III, 8 a 12.
Além do mais, devemos crer cegamente nisto
que, na verdade, parece mais um conto ficcional chiquista, de moral tipicamente
vegetariana: a humanidade marciana evoluiu mais rapidamente que a terrena e,
desde a formação dos seus núcleos sociais, nunca precisou destruir para viver,
diversamente das “concepções” dos homens na Terra, cuja vida não prossegue sem
morte? Na Terra, a vida não prossegue sem morte só por força das concepções
humanas, mas, antes disso, pelo imperativo das leis naturais. Doutra forma, que
teria sido feito das fases marcianas de mundo primitivo, de provas e expiações,
ou mesmo de regeneração? Mais uma vez o ensino chiquista desafia O Livro dos
Espíritos, agora o n. 185. Ora! A vida só transcorre sem morte, fora da
universal lei de destruição, quando o espírito está desencarnado, de posse tão
só de seu corpo espiritual. Os marcianos acaso não precisaram da matéria densa
para evoluir de início? Seria um convite a teses não espíritas, neodocetistas,
rustenistas. De mais a mais, supor que haja seres inteligentes em Marte só
porque lá existe água é muito precipitado. Mais ainda quando se imagina que
habitem “em outra dimensão física” do planeta. Que quer isso dizer em termos
espíritas? Fale-se em dimensão física ou em dimensão extrafísica. Numa ou
noutra. A água serviria a seres inteligentes de constituição orgânica, e desses
não há qualquer vestígio. Até segunda ordem, a química do Universo é uma só. A
situação de Marte é mais compatível com a de um mundo transitório de O Livro
dos Espíritos, 234 a 236. Sua superfície é estéril porque os que o habitam de
nada precisam; são espíritos errantes, que ali se encontram com o fim de
instruir-se e de repousar de erraticidades muito longas e um pouco penosas,
gozando de maior ou menor bem-estar conforme a natureza de cada um. Como disse
Kardec:
“Ninguém poderá negar que há, nesta
ideia dos mundos ainda impróprios para a vida material, e entretanto povoados
de seres apropriados ao seu estado, alguma coisa de grande e sublime, onde
talvez se encontre a solução de muitos problemas”.
Poderiam ser espíritos de antigas
civilizações marcianas? Quem sabe? Nesse caso, ainda assim, não hão de ter
evoluído ao arrepio da universal lei de destruição; não poderiam ter chegado à
civilização e à espiritualização sem haver galgado o progresso que os tirou da
barbárie inicial, como prevê o n. 185 de O Livro dos Espíritos, o que é
repisado no seu n. 742, o qual prevê que, na barbaria, a guerra “é um estado
normal”, e que, à medida que o homem progride, menos frequente ela se torna,
porque lhe evita as causas, mesmo lhe adicionando humanidade, quando “se faz
necessária”.
Por essas e outras é que um vulto como
Herculano Pires sempre deve ser lembrado em suas advertências ao movimento
espírita “organizado”, para que a codificação kardeciana seja mais respeitada e
perquirida em suas muito específicas e mais altas razões. Não sonoro, pois, à
atualização em forma de apêndice que, desde junho de 2008, sugere-se à nota ao
n. 188 de O Livro dos Espíritos. A solução dada por Kardec, já nas obras
fundamentais, é a que mais convém à higidez doutrinária. Quando muito, que
pequeno aditamento editorial remeta o leitor a um confronto com O Livro dos
Médiuns, 296, observação à 32.ª pergunta; e com O evangelho Segundo o
Espiritismo, III, 8 a 12.
[1]
A Gênese, I, 55.
[2]
KARDEC. O evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[3]
O Livro dos Médiuns, 226, 9.ª e 10.ª
[4]
Cf. A Gênese, VI, 26: “Alguns planetas como Mercúrio, Vênus e Marte não deram
origem a nenhum astro secundário; enquanto que outros, como a Terra, Júpiter,
Saturno, etc., formaram um ou mais”. Como digo no ensaio seguinte, Kardec e os
Exilados, é verdade que Fobos e Deimos foram descobertos apenas depois dessas
psicografias, em 1877. Não surpreende que os espíritos deixem de revelar o que
só aos homens compete descobrir, mas quando prestam informações falsas, o caso
é outro.
[5]
« ...en ce qui n'est pas essentiellement de son ressort ». In: Revista
Espírita. Jul/1868. A Geração Espontânea e “A Gênese”.
[6]
O evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
(*) palestrante, escritor espírita, autor das obras: "O Metro que melhor mediu Kardec", "O Primado do Espírito", "Com quel falaram os profetas?"
(*) palestrante, escritor espírita, autor das obras: "O Metro que melhor mediu Kardec", "O Primado do Espírito", "Com quel falaram os profetas?"
OPINIÃO. Desde as primeiras leituras espíritas, deparei-me com a divergência entre "Cartas de Uma Morta" (?) e a obra kardequiana, quanto ao estado evolutivo de Marte. Penso que informações como essas, venham dos médiuns consultados pelo "Sábio Lionês", ou através de Chico, ou ainda de qualquer outro medium seguro, são sujeitas a falhas e não abalam a grandeza do edifício doutrinário, nem diminuem o valor da conduta e do trabalho desses valorosos tarefeiros. Fraternal abraço ao articulista, ao editor e aos leitores. EVERALDO C. MAPURUNGA - VIÇOSA DO CEARÁ
ResponderExcluirFico com o ESE, no item II da Introdução: "Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares." Não fosse isso os quatro evangelhos seria hoje mais lido que a Codificação Kardeciana! Francisco Castro de Sousa.
ResponderExcluir