O mestre espírita por excelência postulava
que “a unidade se fará em religião, como
já tende a fazer-se socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda das
barreiras que separam os povos”.[1] Não deixou, pois, de expressar uma
perspectiva ecumênica, universalista, ou como preferirem hoje chamá-la.
Balizou-a solidamente ao dizer qual seria a melhor de todas as religiões e,
depois, manteve-se nessa rota, detalhando-a:
“[...]
a melhor de todas as religiões é aquela que só ensina o que é conforme à bondade
e justiça de Deus; que dá de Deus a maior e a mais sublime ideia e não o
rebaixa emprestando-lhe as fraquezas e as paixões da humanidade; que torna os
homens bons e virtuosos e lhes ensina a amarem-se todos como irmãos; que
condena todo mal feito ao próximo; que não autoriza a injustiça sob qualquer
forma ou pretexto que seja; que nada prescreve de contrário às leis imutáveis
da natureza, porque Deus não se pode contradizer; aquela cujos ministros dão o
melhor exemplo de bondade, caridade e moralidade; aquela que procura melhor
combater o egoísmo e lisonjear menos o orgulho e a vaidade dos homens; aquela,
finalmente, em nome da qual se comete menos mal, porque uma boa religião não
pode servir de pretexto a nenhum mal; ela não lhe deve deixar porta alguma
aberta, nem diretamente, nem por interpretação”.[2]
“No
estado atual da opinião e dos conhecimentos, a religião, que terá de congregar
um dia todos os homens sob o mesmo estandarte, será a que melhor satisfaça à
razão e às legítimas aspirações do coração e do espírito; que não seja em
nenhum ponto desmentida pela ciência positiva; que, em vez de se imobilizar,
acompanhe a humanidade em sua marcha progressiva, sem nunca deixar que a
ultrapassem; que não for nem exclusivista, nem intolerante; que for a emancipadora
da inteligência, com o não admitir senão a fé racional; aquela cujo código de
moral seja o mais puro, o mais lógico, o mais de harmonia com as necessidades
sociais, o mais apropriado, enfim, a fundar na Terra o reinado do Bem, pela
prática da caridade e da fraternidade universais.”[3]
Percebe-se que as balizas dessa perspectiva
ecumênica de Kardec não demarcam limites puramente morais; fincam-se em terreno
filosófico e mesmo científico, distinguindo enfaticamente a importância da
marcha progressiva da humanidade e das necessidades sociais para esse processo
unificador.
O mestre, não custa lembrá-lo, apresentara o
espiritismo como “o mais potente auxiliar
da religião”,[4] na medida em que “a
missão do espiritismo é combater a incredulidade pela evidência dos fatos,
reconduzir a Deus os que o desconheciam, provar o futuro aos que criam no
nada”.[5] O resultado, porém, foi que a Igreja lançou ferozes anátemas
sobre aqueles a quem o espiritismo dava fé e, paradoxalmente, mais ainda do que
quando muitos desses em nada criam. Segundo Kardec, ao repelir os que
acreditavam em Deus e na alma pelo espiritismo, a Igreja os constrangia a
buscarem refúgio fora de si mesma. Algo descontente com a situação, o mestre
não hesitou em vaticinar: “Se algum dia
[o espiritismo] tornar-se uma religião, é o clero que o terá provocado”.[6]
Sempre montado numa razoabilidade granítica,
Kardec estabeleceu mais tarde: “Uma
religião que não estivesse, por nenhum ponto, em contradição com as leis da
natureza, nada teria que temer do progresso e seria invulnerável”.[7] Poderia
ser o espiritismo? Kardec nunca o afirmou com todas as letras. Por outro lado,
sua perspectiva francamente ecumênica funda-se em balizas fixadas justamente
pelo espiritismo a princípio, e que, para o mestre, equivaleriam a um credo,
mesmo a uma religião e, ainda assim, conciliável com qualquer culto, na medida
em que garantiria: 1) a liberdade de os espíritas, sobretudo os de então,
permanecerem em seus cultos, caso os tivessem; 2) a unidade entre esses espíritas
a despeito de suas diferentes situações; 3) uma futura adesão do gênero humano
a esse credo pela força mesma das coisas, culminando na sonhada fusão, num
ecumenismo irrestrito alheio a qualquer tipo de ingerência, sendo a revelação
espírita o ponto de ligação de todos os cultos.[8] É o que se depreende de seu
último discurso, no qual, após elencar aquelas balizas, concluiu:
“[...]
eis o Credo, a religião do espiritismo, religião que pode conciliar-se com
todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que
deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que
ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal”.[9]
Que credo seria esse com o poder de unir, num
primeiro momento, os diferentes espíritas, por assim dizer, ainda em formação
e, a posteriori, mesmo toda a humanidade? Quais as balizas dessa perspectiva
ecumênica de Allan Kardec? Foram assim consolidadas poucos meses antes do seu
decesso:
“Crer
num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua
imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente; na
pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de
adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos;
na felicidade crescente com a perfeição; na equitativa remuneração do bem e do
mal, segundo o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da
justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma
criatura; na duração da expiação limitada à da imperfeição; no livre-arbítrio
do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na
continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo invisível; na
solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros,
encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma
das fases da vida do Espírito, que é eterno; aceitar corajosamente as
provações, em vista de um futuro mais invejável que o presente; praticar a
caridade em pensamentos, em palavras e obras na mais larga acepção do termo;
esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera, extirpando toda
imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livre-exame e
da razão, e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por
mais irracionais que nos pareçam, e não violentar a consciência de ninguém;
ver, enfim, nas descobertas da ciência, a revelação das leis da natureza, que
são as leis de Deus [...]”.[10]
Utopia? Quem o saberá ao certo? Mas o fato é
que muito diverge do que, mediante falas mansas e bem calculadas, vem sendo
proposto por ávidos candidatos a condutores dessa fusão religiosa, os quais, na
verdade, ambicionam que seus velhos dogmas permaneçam infensos a qualquer
revisão e, a despeito desse engodo, ainda mereçam a adesão da maioria.
Os espíritas tão empolgados com o novo Bispo
de Roma deveriam melhor atentar às balizas da perspectiva ecumênica kardeciana,
antes de se renderem aos encantos pessoais de Sua Santidade. Só haveria motivos
de um tão grande entusiasmo se o “sucessor de Pedro” deixasse de apenas dizer
aquilo que, no momento, não só é conveniente, mas vital à sua Igreja imersa no
escândalo e, avançando, anunciasse profunda revisão dos dogmas ancestrais, hoje
insustentáveis, aproximando-se, quem sabe, do credo por Kardec expresso. Afora
isso, nada se afigura tão elogiável, porquanto falas mansas e mesmo atos de
benevolência podem servir de disfarce a novíssimas contrarreformas, a invasivas
catequeses que tenham neles o necessário passaporte, a inconfessa e sedutora
senha para almejada conquista massiva de incautas adesões.
Irmãos espíritas! Não nos esqueçamos de que
Sua Santidade chefia os herdeiros imperiais de Constantino e do anátema de
Niceia, grave marco distintivo da fé católica. E nós... Nós viemos sustentar
francas “heresias”, as quais já foram cristianismos em passadas eras, e que
Roma tentou apagar com todas as forças do seu fanatismo; ressurgiram, todavia,
das cinzas da própria morte, pela reencarnação e pela comunicação mediúnica,
por vezes, dos próprios perseguidos e supliciados, a reivindicarem nesta última
hora profética seu direito à verdadeira herança de Jesus Nazareno, a fim de que
seja mais prontamente compartilhada com os que dela necessitam, agora sem os
vícios peculiares àqueles antigos entraves corporativos. E eis aí a doutrina
dos Espíritos. Límpida! As obras de Allan Kardec.
Todavia, há esperança para Roma. Tudo pode
melhorar. Em face de certas correntes do pensamento teológico, mais plausíveis
a seu ver e que pareciam tomar vulto em seu tempo, sobretudo contra a
eternidade e a materialidade das penas após a morte, Allan Kardec chegou a
dizer que, sem o suspeitar, a Igreja Católica marchava em direção ao
espiritismo, sendo essa uma verdade a ser mais tarde constatada. [11]
Mesmo no “herético” estudo sobre a natureza
do Cristo, inserto em suas Obras Póstumas, no qual Allan Kardec nega
terminantemente, em nome das Escrituras, que haja sido o Nazareno o próprio
Deus, não deixou o mestre espírita de observar que tais discussões dogmáticas,
estabelecidas sempre de forma alheia aos fatos, só levaram ao cansaço e, pior,
à incredulidade, afastando muita gente da “parte mais essencial do ensino do
Cristo, a única que podia garantir a paz para a humanidade”. O interessante é
que, ao final do “herético” estudo, Kardec menciona (já em sua época pois!) uma
tendência de retorno “às ideias fundamentais da Igreja primitiva e à parte
moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a única que pode tornar melhores os
homens”. Segundo ele, se a Igreja tivesse seguido esse caminho, não estaria
atingida pelo descrédito nem seccionada em tantos partidos. Bem, a observação
dessa tendência conta cerca de século e meio. Concretizou-se?
Como quer que haja sido ou que venha a ser,
desejamos o melhor à Igreja de Roma e ao seu Papa. Nossos corações estão
abertos, sim; mas, de forma nenhuma, fechados os nossos olhos.
[1] A
Gênese, XVII, 32. Cf. também O Céu e o Inferno. Primeira parte. Cap. I, n. 14.
[2] O
Que é o Espiritismo? Cap. I. Terceiro diálogo. F.E.B., p. 146/47.
[3] A
Gênese, XVII, 32. F.E.B., p. 487/88.
[4] O
Livro dos Espíritos, 148.
[5]
Revista Espírita. Jul/1864. Reclamação do Abade Barricand. F.E.B., p. 270.
[6]
Idem, ibidem.
[7] A
Gênese, IV, 10. F.E.B., p. 117.
[8] Cf.
A Gênese, I, 45.
[9]
Revista Espírita. Dez/1868. Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos.
F.E.B., pp. 494/95.
[10]
Revista Espírita. Dez/1868. Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos.
F.E.B., p. 494. Cf. atrás O credo espírita.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2010/05/o-credo-espirita.html.
[11]
Revista Espírita. Jul/1864. A religião e o progresso.
O artigo além de viril, guardada a característica do autor, é muito elucidativo e fundamentado exclusivamente na visão sobre ecumenismo, de Allan Kardec
ResponderExcluirGostei!
Parabéns!