Por Dora Incontri (*)
Entre as inúmeras amizades virtuais que tenho
Brasil afora, uma mulher, pessoa de muito valor, de muita garra e inteligência,
me enviou esse texto abaixo. Tem a força da experiência vivida, tem a moral de
quem superou as armadilhas do caminho. Assim, com sua autorização, retirei
nomes, datas e locais, que pudessem identificá-la, e estou publicando aqui esse
texto forte e verdadeiro.
Comento de minha parte que, como mulher, vivi
exatamente o contrário dessa amiga. Mas o contrário, que revela a mesma coisa. Como
na adolescência, comecei a engordar, (e era a “moby” para alguns meninos,
inclusive familiares), como usava óculos (e minha mãe teimava em comprar os
mais baratos e mais feios), como já aos 13 anos de idade, era precoce em
leituras espíritas e filosóficas, como era estranha em gostos musicais, como
ópera e música clássica, então sofri o completo desinteresse masculino. Porque
em sua maioria, os homens não se interessam por meninas muito inteligentes e
menos ainda por aquelas, cujas curvas não correspondem aos padrões mediáticos
contemporâneos (por sinal, cada vez mais anoréxicos e menos femininos!), não
era devorada com os olhos, como conta minha amiga, mas era enregelada nas
paqueras.
Hoje, aos 52 anos, plenamente reconciliada
com meus quatro olhos, com meus quilinhos a mais, com minha intelectualidade,
que tem me ajudado a cumprir minha tarefa existencial, sem deixar meu lado
feminino de lado, posso me juntar a esse texto abaixo, para protestar contra o
machismo ainda reinante na sociedade.
Na semana passada mesmo, apanhei de relance
um rapaz de um estacionamento, onde estava pegando meu carro em SP, comendo com
os olhos uma menina que passava descuidada. A cena, que só eu percebi, me
provocou asco e revolta. Isso é uma característica majoritária do gênero
masculino, não importando a orientação sexual, pois os gays também devoram os
bonitões com os olhos. Mulheres em geral não fazem isso.
Realmente, o desejo e a atração fazem parte
integrante do instinto sexual e podem ser o primeiro impulso para o outro.
Entretanto, se esse desejo e essa atração forem assim devastadores, invadindo o
campo vibratório do outro, arrancando a roupa do outro com os olhos; quando não
se enxerga, em suma, o outro em si, como pessoa, mas apenas como um pedaço de
carne, então de fato, há um desrespeito, há um roubo da integridade alheia. E
se isso resulta em ação (e se não se aprende a sublimar o desejo e a refiná-lo
com o sentimento, é isso que acontece), então, pode-se resvalar para o crime,
como o estupro, o assédio, o abuso…
A educação tem que começar a lidar com isso,
tornando o gênero masculino menos bruto e o gênero feminino menos suscetível a
essas investidas. Lembro-me que quando morava na Alemanha, em plena
adolescência, e frequentava a escola em Berlim, havia professoras mulheres, que
nos ensinavam que se algum homem nos abordasse na rua com intenções violentas,
deveríamos acertar com um chute as suas partes íntimas. Eu, que vinha de uma
cultura latina, achava esses conselhos por demasiado brutais. Mas, passados
tantos anos, vemos no mundo todo, incluindo no Brasil, tantas violências ainda
cometidas contra as mulheres, que chego a questionar se não seria, às vezes,
bom muni-las de defesas até físicas contra isso. Embora considere que o melhor
ainda será fazermos homens mais sensíveis (como os há hoje muitos nas novas
gerações), o que não significa efeminados, mas pessoas mais equilibradas
sexualmente, que saibam apreciar as qualidades femininas, com respeito,
partilhando conosco a existência, em amor igualitário, amizade sincera e
parceria mútua. Mas para os machistas, qualquer sensibilidade é sinal de
bichice, termo usado sempre com muita ironia. Aliás, a identidade do machão se
firma geralmente no desprezo ao que é feminino, num estranho paradoxo, de
querer tomar posse daquilo que se odeia.
Mas, vamos, ao texto, que fala de uma
experiência dura, felizmente superada. Hoje, essa amiga é casada com um
cavalheiro, que a ama, a admira e a respeita, como ser humano e como mulher:
“Só agora, mais próxima dos 50 que dos 40, me sinto
à vontade para escrever as linhas que se seguem. Talvez, antes disso, me
faltasse a consciência sobre diversos fatos ocorridos, seu sentido mais
profundo, nesta minha trajetória de mulher. Aliás, provavelmente eu ainda
sequer perceba algumas das sutilezas do destino, os mil e um porquês nos
pequenos fatos que existem dentro de um cotidiano feminino, cheio de sonhos,
lutas, medos e cansaços.
Tudo
bem, pois não pretendo desvelar a totalidade, mas apenas pincelar alguns
relatos, refletir sobre algumas questões.
Creio,
ainda, que minha maior esperança no texto não se circunscreva tão somente a um
desabafo cor-de-rosa, falando do quanto a música Maria Maria, do Milton
Nascimento diz muito mais do que aparenta, num primeiro momento, mas [quem
sabe?] um relato que venha deixar um pouco mais à mostra algumas das armadilhas
soltas à margem dos caminhos da vida, prontas para abocanhar nossas pernas
depiladas, tão ao gosto da publicidade contemporânea.
Aos
14 anos de idade, percebi o quanto meu corpo estava se alterando, com curvas
mais acentuadas dentro do velho agasalho da escola. Era estranho tomar banho e
olhar para a lateral do quadril sem conseguir enxergar a parte de cima da
própria coxa, por conta do alargamento ósseo. Confesso que não achei isso bonito
e já começava a sentir saudade do meu corpo de criança, tão conhecido e
“normal”.
O
problema é que outros também perceberam que eu já não era mais uma menina [no
corpo, somente!], causando-me constrangimentos constantes. Nas ruas, alguns
homens me assediavam, como se eu fosse um pedaço de carne fincado no espeto,
pronto para ser devorado por qualquer esfomeado que aparecesse pela frente.
Como
uma menina de quatorze anos que até então brincava na rua de lazer junto de
outras meninas e meninos, descendo ladeiras com rolimãs e skates, confesso que
não conseguia entender aquelas investidas, chegando em casa muitas s assustada,
com medo de que alguém pudesse me sequestrar, violentar ou, quem sabe,
assassinar. Embora nunca tivesse me preocupado com aquele assunto, precisei
começar a prestar atenção no jeito dos homens que se aproximavam, sob risco de
ser vítima de algum deles, em qualquer lugar que fosse.
Talvez
os homens jamais saberão o que é sentir este terror diário, o medo de andar nas
ruas, por conta destas torturas morais constantes, quando se tem apenas 14 anos
de idade… Talvez eles até tentem imaginar, quem sabe…mas, o certo é que todos
aqueles que se sentem no direito de ameaçar a paz de uma menina, dizendo ou
fazendo gestos erotizados, são pessoas com desvios morais, alimentados por esta
escória midiática, que torna o corpo da mulher um objeto qualquer, sem
sentimentos, nem direitos ou fragilidades psíquicas.
E
o que se seguiu a partir dali não foi melhor.
Então,
com meus 15 anos, para chegar na escola, precisava usar metrô e ônibus na já
atribulada São Paulo, chegando aos portões do colégio até, no máximo 7:15h. No
inverno, esta saga tornava-se algo ainda mais perigoso, pois de casa até a
estação Jabaquara do metrô, levava cerca de 10 minutos andando a pé, num final
de madrugada escuro, sem o sol para iluminar minha ansiedade.
Só
Deus sabe quantas preces eu fiz pelo caminho, implorando ao anjo da guarda me
protegesse. Aliás, se estou aqui escrevendo esta história, deve ser por conta
dessa ajuda silenciosa, porém, constante.
Neste
período comecei a ser ameaçada por um homem, que disparava atrás de mim,
falando palavras que eu nunca antes imaginei existir, mesmo sabendo o quanto
eram baixas, tenebrosas e ameaçadoras.
Foram
tantas corridas, largando cadernos pelo caminho, a fim de conseguir maior
velocidade, que cheguei a desistir dos estudos naquele ano. Eu sabia que a
qualquer momento poderia ser pega por algum maluco, sem conseguir voltar para
casa.
Nesta
época, meus pais moravam num sítio, no interior do Estado, então ficava com
minha avó. Não tinha ninguém para me acompanhar pelo caminho.
Foi
quando minha irmã, já casada, me convidou para ir morar numa pacata cidade do
interior, com seus até então 20.000 habitantes. É verdade que os sons
rotineiros de sapos e grilos de lá me eram entediantes, porém me sentia mais
segura para andar pelas ruas, o que, por si só, já fazia tudo valer a pena.
Apesar
das perdas doloridas, tais como o afastamento de amizades, escola e parentes,
aceitei.
Lá
completei meus 16 anos. Quantos sonhos numa mente juvenil! Queria conhecer um
rapaz especial, do tipo príncipe encantado, namorar, poder viver em paz.
Durante o dia, trabalhava no banco como auxiliar de aplicações, estudando à
noite, numa escola não tão boa como a que estivera matriculada, anos antes. Sem
problemas!
Foi
quando conheci aquele que seria meu primeiro marido. Moço jovem, com seus vinte
e dois anos, irmão de uma amiga. Logo percebi que ele tinha um temperamento
forte, mas ainda assim me trazia flores, bombons e muitas juras de amor. Que
mais eu poderia querer? Hoje sei que muito, muito mais, claro! Porém, lá ia eu
enfiando a perna numa das arapucas abertas do caminho.
Comemoramos
o terceiro mês de namoro e uma notícia bombástica chegou aos meus ouvidos: meus
pais iriam se mudar para o Acre. E queriam que eu fosse junto com eles, lógico.
Implorei, me deixassem morando com a minha irmã, porém, meu pai, homem
tradicional, nascido na década de 20, com sua vida orientada pelo lema: “filha
minha só sai da tutela do pai se for para a tutela do marido” – disse que eu só
ficaria, se estivesse casada.
Não
pensei duas vezes. Preparei o possível e me casei, em dois meses, apenas.
Realmente,
saí da tutela de um homem, para a tutela de outro, só que bem pior.
Nos
primeiros meses, engravidei da minha primeira filha. Depois disso, uma nova
sentença masculina ecoava em mês ouvidos: “Mulher minha não trabalha nem
estuda…Fica apenas em casa, cuidando das coisas e dos filhos!”
Num
primeiro momento, não tive forças para mudar isso. Nem sabia que seria
possível, aliás.
Na
primeira grande discussão, um susto: sacou uma arma, apontou na minha direção,
dizendo que se eu fosse embora, me mataria.
Foi
quando, ainda grávida, apanhei dele pela primeira vez. Foram vários tapas,
porque ousei dizer que ele não poderia falar mal dos meus pais. Na segunda vez,
porque não quis manter relações sexuais no final da gravidez. Por último, com
minha filha ainda pequena, pois o acordei no meio da noite. Estava roncando
alto demais e minha filha tinha o sono muito leve.
Chorei
“para dentro”, jurando ser aquela a última vez.
Fiquei
com diversas marcas roxas, que me deram força para alterar os rumos.
Dois
anos depois, com minha filha na escola em meio período, consegui convencê-lo de
que iria trabalhar com a irmã dele, como sacoleira. Consegui algum dinheiro
emprestado, peguei meu carro e segui para São Paulo. Comprei duas sacolas
cheias de roupas e voltei, indo na casa das clientes, vendendo a mercadoria.
Dali a dois anos já conseguia me sustentar. Saí de casa, e nunca mais voltei
para lá. Deixei tudo para trás: casa, herança, objetos, tudo! Mas levei minha
dignidade e minha filha. Era só do que precisava.
Hoje,
olhando para trás, percebo a ação nem sempre positiva dos homens em minha vida,
empurrando-me para situações incontroláveis, quando vistas sob a ótica de uma
menina.
Já
amadurecida pelos anos e experiências, hoje sei que só me tornei quem sou por
causa do que vivi. Entretanto, também sei que não precisaria ser assim… Existem
mil caminhos para a maturidade, mais leves e amorosos. Se consegui me livrar
das arapucas armadas, foi porque existe e já existia em mim aquilo que hoje a
Psicologia chama de resiliência. Muitas vezes vi minha mãe dando a volta por
cima, com força, com garra impressionante! Isso deve ter me inspirado, para
além do que ela possa imaginar.
Se
existe algo ainda a comentar é que sim – o mundo continua machista. As mulheres
ainda enfrentam diversos desafios apenas por serem mulheres. Ganham menos,
trabalham mais, enfrentam preconceitos e perseguições. A mídia ainda produz
psicopatas nas ruas e nos bares – Homens que veem as mulheres como simples
objetos, pedaços de carne animada apenas para o sexo. Os homens ainda controlam
as coisas por aí. São reconhecidos com maior rapidez no meio acadêmico e fora
dele. Têm a palavra, o poder social.
E
nós, mulheres, o que temos?
Muito
mais que eles! Pena que ainda não nos demos conta disto!
Temos
os filhos que formarão o mundo de amanhã. Temos o poder de ensiná-los que
justiça se faz em todos os lugares, com todos os seres. Podemos ajudá-los a
entender que a mulher tem direitos, muitos direitos, assim como eles, e que
precisam ser respeitadas, cuidadas e honradas, como eles desejam ser.”
(*) jornalista,
educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia,
Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em
Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora da Editora Comenius e
coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
Sabe, acho que nós mulheres precisamos de coragem e bom senso para tomarmos decisões na vida. Lógico , a experiência conta sabiamente nas mudanças,essas que só dependem de nós.
ResponderExcluirEu,mulher...ainda acredito com foi deixado no artigo acima,os desejos precisam ser refinados de sentimentos. Talvez assim possamos ser admiradas como ser,como pessoa que possui sentimentos. Apesar que uma boa parte não valoriza -se como mulher.
E será bem possível que eu fique sozinha ,pois acredito que somos mais que carne. Essa mesma que uma grande maioria valoriza. Que quando chega o inverno , parece perder o valor e o ser que faz parte da mesma é engolido pela solidão. Mas também acredito que um pouco de sensibilidade,mude todo esse trajeto.
Márcia.
Dora Incontri, sempre oportuna.
ResponderExcluirInstrutivo texto.