Por Dora Incontri (*)
Um dos pontos polêmicos e contraditórios,
presentes nas obras espíritas, é a questão das almas gêmeas. Kardec nega
terminantemente a sua existência. Léon Denis e Emmanuel falam que as há. Sempre
tive uma postura estritamente kardecista de negar também. Mas ultimamente tenho
meditado no assunto e cheguei a algumas conclusões um pouco mais matizadas, que
não podem se encerrar apenas no sim ou no não.
Explico-me. Não, não pode haver almas gêmeas
no sentido de metades, de seres que se complementam. Isso fere um dos
princípios básicos da filosofia espírita, que enxerga com muita ênfase a
individualidade (não individualismo) do espírito. Aliás, esse e outros aspectos
da visão espírita têm um diálogo surpreendente e fecundo com as ideias de Erich
Fromm. Ele também aponta como uma necessidade evolutiva da espécie, e de cada
ser humano em particular, o processo de individuação. As relações saudáveis e
plenas, portanto, seriam para ele, aquelas em que duas pessoas inteiras, se
amam, sem complementaridade, nem submissão, nem perda da identidade de nenhuma
das duas. Nesse sentido, portanto, e talvez seja esse o que Kardec entende, não
há almas gêmeas – duas metades que se procuram na eternidade e que se encontram
e não podem estar uma sem a outra. Isso significaria que há uma falta a ser
preenchida, uma lacuna no ser, que não pode ser inteiro, sem outro ser. De
fato, essa ideia revela um aspecto de romantismo exarcebado e místico e que se
distancia da racionalidade (que vem desde a Grécia e perpassa a cultura
judaico-cristã – raízes em que o espiritismo se mantém). A razão anda junto com
o princípio da identidade. A razão define, individua, afirma a identidade dos
seres. Sócrates e Platão, que têm ideias reencarnacionistas e visão de mundo
portanto espiritualista, foram os primeiros a definir o conceito do ser, aliás
como alma independente do corpo. As teorias panteístas, por exemplo, são bem
menos racionais e quebram com a lógica da identidade, lógica que é socrática,
platônica e artistotélica. Que é cristã e que é espírita. Quando Fromm segue
por essa linha, também se ancora nessa tradição. Aliás, ele revive os clássicos
da filosofia. A psicologia ocidental, com todas as suas práticas terapêuticas,
está igualmente radicada no princípio da singularidade de cada um, o que no
fundo revela a identidade do ser.
Então, em que sentido poderíamos entender, se
é que há esse sentido, a existência de almas gêmeas? Eu diria que num sentido a
posteriori e não a priori. Ou seja, não há almas que foram criadas pela metade
e estão à procura de sua outra metade. Mas há almas que seguiram tanto tempo
juntas, em milênios de convivência, cumplicidade, amor (mesmo passando por
momentos de distanciamento e conflito naturais em seres imperfeitos), que se
identificam mais plenamente uma com a outra do que com outros seres amados.
Intimidade, construção conjunta e até quedas e desvios e retornos em sintonia,
que proporcionam uma sintonia fina, maior e mais profunda do que com outros
seres também afins.
E agora outra questão: essas almas “gêmeas”
no sentido amplo da palavra, tiveram relacionamentos sexuais, no sentido
terreno? Podem ter tido, mas não só. Aliás, uma constante que tenho observado
em reuniões mediúnicas, em que se manifesta junto a espíritos renitentes,
aquela alma que é capaz de os tocar, e que geralmente foram espíritos, que já
passaram por diversas condições de relacionamento nos séculos. Já foram
esposos, irmãos, pai, mãe, filho, filha… de modo que o amor parece assumir
todas as dimensões possíveis e ao mesmo tempo transcender o amor carnal, porque
esse nível de sintonia está além do exercício da sexualidade terrena.
Outra pergunta ainda: casais que vemos no
mundo são almas gêmeas? Rarissimamente, acredito. Porque se forem, têm uma
sintonia muito grande. Alguém pode ser casado com alguém, com amor e
compromisso, com as dificuldades naturais de uma convivência mútua e com
felicidade relativa, mas a alma mais afim pode vir na forma de um filho, por
exemplo, ou nem estar encarnada.
Pode ser ainda que nem todos tenham almas
gêmeas, mesmo nesse sentido amplo, porque pode ser construção de alguns
espíritos, resultado de algumas experiências específicas. O universo é livre e
as almas vão evoluindo no amor, através de múltiplas vivências.
Na sociedade contemporânea, a
descartabilidade das relações, a ênfase no prazer carnal e a rara busca de
identificações mais profundas de alma para alma, acaba por deixar as pessoas
mais solitárias e mais sedentas de um amor verdadeiro. Isso pode muitas vezes
obstruir o fluxo do amor num sentido mais profundo, pode impedir que vejamos
nossas almas gêmeas (aquelas que mais se identificam essencialmente conosco,
porque se estamos vivendo na superfície, estamos longe de nós mesmos também) ou
pode também bloquear a comunicação mental e emocional com possíveis almas
gêmeas nossas que estejam em outros pontos do universo e que mandam
vibratoriamente seu amor por nós.
Quanto mais vivermos com lucidez espiritual,
autoconhecimento, em sintonia com nossa essência divina, mais saberemos
distinguir (e portanto não querer) relações de superfície, apenas baseadas em
paixões e impulsos primários, e mais saberemos encontrar a pérola de nossas
almas. E se ela não estiver por aqui, poderemos ter relacionamentos também
amorosos, verdadeiros e responsáveis, mas sempre teremos uma nostalgia oculta
da falta de alguém.
(*) paulistana,
nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são
Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado,
doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora
da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia
Espírita. Coordenadora geral da Universidade Livre Pampédia.
fonte: http://doraincontri.com/about/
100% de sensatez.
ResponderExcluirTenho para mim que se Kardec lesse, corroboraria em gênero, número e grau.
Que Dora e o Canteiro de Ideias continuem nos enriquecendo com essas pérolas.
Essa Dora é aDORÁvel!
ResponderExcluirESTE TEMA É MUITO POLEMICO, ALMAS GEMEAS. SE EXISTE OU NÃO AINDA NÁO CHEGAMOS A UMA RESPOSTA FINAL. , HÁ MOMENTOS NO DIA A DIA DA NOSSA ENCARNAÇÃO, QUE VEMOS CASAIS QUE PARECEM ALMAS GEMEAS, EXISTEM FILHOS , AMIGOS E ETC, PORTANTO É UM ASSUNTO MUITO RICO E POLEMICO DENTRO DO NOSSO ESPIRITISMO KARDECISTA.
ResponderExcluirBRUNO FILHO