Uma das principais objeções à doutrina da
Reencarnação é, dizem, que ela não consta ensinada na Bíblia. Mas estão errados
os que pensam assim. Pela língua e cultura helênicas é que muitos conteúdos da
Bíblia e dos Evangelhos chegaram até nós, donde ser fundamental, para um
resgate de muitas ideias e conceitos algo deturpados hoje em dia, o retorno aos
manuscritos antigos, ainda que sejam apenas cópias dos originais, estes, quiçá,
perdidos para sempre.
No
Brasil, o nome que superou todos os que empreenderam tal demanda ao grego, ao
hebraico, etc., a nosso ver, foi o do Prof. Carlos Juliano Torres Pastorino,
Docente do Colégio Pedro II e catedrático da Universidade Federal de Brasília;
Iatinista, helenista e exímio poliglota; diplomado em Teologia e Filosofia pelo
Colégio Internacional Santo Antônio Maria Zaccaria, em Roma, este insigne linguista
nasceu em 04/11/1910 no Rio de Janeiro, desencarnando em Brasília em
13/06/1980. Deixou-nos raras obras-primas de exegese, como Sabedoria do Evangelho (1964-1971, oito volumes) e La Reincarnaciòn En El Antiguo Testamento
(Revista SPIRITVS, 1964, versão castelhana do Prof. Angel Herrera),
infelizmente sem reedições modernas.
Quis Deus, porém, que estes recursos de
elucidação não ficassem estanques, e, no nosso caso, esforçamo-nos no sentido
de franqueá-los a todos, tão só com a preocupação de articulá-los ao esquema
doutrinário do Espiritismo, já que, como se sabe, nem toda a obra de Pastorino
atende ao programa kardeciano, o que se deve a suas incursões na Teosofia e no
Esoterismo em geral.
Não obstante, conta-nos o grande teólogo que são frequentemente
traduzidos por "ressuscitar" os verbos gregos egeirô (estar acordado, despertar) e anistêmi (tornar a ficar de pé, regressar), e que este último
encerra um sentido geralmente negligenciado pelos tradutores: o de
"reencarnar". Explica-nos o afamado autor de Minutos de Sabedoria que as Escrituras não falam em
"ressurreição dos corpos” ou "da carne", mas em anástasis ek tón
nekron, ou seja: "ressurreição dos mortos".
De posse destes esclarecimentos oferecidos
por uma autoridade linguística festejada como a do Prof. Pastorino, torna-se
relativamente fácil aos estudiosos das Escrituras identificarem os sentidos
negligenciados propositadamente pelos tradutores modernos, mais ainda se
utilizarem a chave que faculta a compreensão definitiva de obscuridades antes
insuperáveis: a Ciência Espírita,
Assim, se a ressurreição é dos mortos e não dos corpos, podemos deduzir existirem pelo menos três sentidos para o
"tornar a ficar de pé", o "regressar", pois quem
ressuscita, quem ressurge é o Espírito: 1o - Para o plano espiritual, quando
desencarna; 2o - Para o plano físico, quando reencarna; e 3o - Pela vidência ou
pelas materializações.
Do
primeiro sentido, o da ressurreição como desencarne, temos, na Codificação
Espírita, uma instrução do Espírito da Verdade que preceitua com clareza:
"... a morte é a ressurreição..." (O Evangelho Segundo o Espiritismo,
VI:5); isto é, com a morte do corpo, o Espírito liberta-se para o plano espiritual,
extrafísico. Tal o significado das palavras de Jesus: "... na ressurreição
nem se casam nem se dão em casamento, mas são como os anjos no céu" (Mt.
22:30); quer dizer, essa outra natureza não necessita de reprodução, pois não
está submetida à morte. Como disse Paulo de Tarso: "...a carne e o sangue
não podem herdar o reino de Deus" (1 Cor. 15:50).
Já do segundo sentido, o da ressurreição como
reencarnação, temos de Allan Kardec a seguinte afirmativa: "A Reencarnação
fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de Ressurreição" (Ob. Cit.,
IV:4). Isto o mestre lionês identificou naquele episódio em que os discípulos
dizem a Jesus que o povo pensa ser ele João Batista, Elias, Jeremias, ou algum
dos profetas que "ressurgiu” (cf. Lc 9:18-19), trecho que o Prof.
Pastorino, fazendo justiça a este sentido do verbo grego anistemi, traduziu por
"... um dos profetas dos antigos reencarnou
(cf. Sabedoria do Evangelho, 4o
volume, pg. 41). E realmente, à exceção de João Batista, morto havia pouco
tempo, a lógica da reencarnação autorizava essa crença do povo, que, em parte,
conhecia Jesus desde a infância (cf. Mt 13:55); logo não podia crer que era ele
um antigo profeta senão pelo Espírito, isto é, reencarnado.
Caso
se alegue confusão na mentalidade popular, o mesmo não se poderá dizer da
crença na reencarnação entre os doutos, porquanto Flávio Josefo, historiador
judeu (37-103 d.C), foi perempto ao
definir a profissão de fé dos doutores da lei, os fariseus: "Eles - diz
Josefo - julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um outro mundo e
recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas ou virtuosas; que
umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida e que outras voltam
a esta" (História dos Hebreus, Primeira Parte, Livro Décimo Oitavo,
Capítulo dois).
Outra prova da crença na reencarnação, com o
nome de ressurreição, está na Epístola aos Hebreus (11:35-36), onde se lê, na
versão Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1984: "Mulheres receberam os
seus mortos pela ressurreição; [alguns foram torturados], porque não queriam
aceitar o seu livramento por meio de algum resgate, a fim de que pudessem
alcançar uma ressurreição melhor; sim, outros receberam a sua provação por
mofas e por açoites, deveras, mais que isso, por laços e prisões" (trecho entre colchetes, da versão revista e
atualizada de Almeida, 1993)
Vemos
que mulheres, e não homens, receberam os seus mortos pela ressurreição,
pois elas é que podem gerar, em seus ventres, os corpos destinados à
reencarnação, ao ressurgimento dos desencarnados no plano físico. O autor chega
mesmo a falar em livramento, provação e resgate, termos que pressupõem a lei de
causa e efeito, a preexistência da alma e, por conseguinte, a reencarnação.
Quanto ao terceiro sentido, o de se considerar espíritos desencarnados
como seres que ressuscitaram, se deve à incompreensão dos fenômenos de natureza
mediúnica; nestes, os espíritos se apresentam à percepção extra-sensorial de
alguns encarnados, pela vidência, ou, doutra forma, à visão ordinária de qualquer
pessoa, através da materialização, ou ectoplasmia; nem todos, porém,
compreendem que não quer isso significar que hajam tais espíritos retornado à
vida na matéria carnal. Tal é o caso das aparições de Jesus após a sua morte,
e, sendo real a narrativa de Mateus (27:52-53), isso também se aplicaria a
muitas outras aparições, quando por ocasião da morte do Mestre.
A Bíblia judaica, que é o nosso Velho
Testamento, está cheia de referências a lei dos renascimentos. Os profetas
Ezequiel e Jeremias, inspirados em sua mediunidade apurada, desenvolveram
brilhantemente a temática da responsabilidade pessoal, negando a dita popular
que dizia que os pais comiam uvas verdes e os dentes dos filhos é que se
estragavam (Jr. 31:29); com isso, pode-se constatar que os profetas repudiaram
a doutrina deturpada do pecado original, que não era "hereditário",
mas relativo à individualidade de cada um.
No dizer dos profetas: "..de todo homem
que comer uvas verdes os dentes se estragarão" (Jr. 31:30); "...o
filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai a iniquidade do filho; a
justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso ficará sobre este"
(Ez. 18:20). Só a reencarnação dá sentido a tais postulados! Por isso Allan
Kardec identificou a crença vulgar no chamado pecado original como uma espécie
de intuição da existência das múltiplas experiências terrestres (A Gênese,
XI:46)
Podemos, desse modo, melhor entender o que
ensinam os próprios Dez Mandamentos: "eu, o Senhor teu Deus, sou Deus
zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos, na terceira e quarta
geração" in tertiam et quartam
generationem (Vulgata Latina, 1838). Como vemos, não está escrito:
"até a terceira e quarta geração" - o que confrontaria com o
ensinamento dos profetas -, mas 'na terceira e quarta geração” (Ex. 20:5); isto
é, quando já houve tempo o suficiente de o Espírito portador da iniquidade em
questão retornar, às vezes na própria descendência corporal, sendo, no caso, o
bisneto a reencarnação do bisavô, e assim por diante. Portanto, a lei de causa
e efeito (a "visita" de Deus) atinge a própria "alma que
pecar" (Ez. 18:20), e não outrem. Tal o motivo por que, conforme o
mandamento, a "visita" de Deus não se dá na primeira e segunda
geração, pois animadas por almas diferentes, cuja iniquidade não está em
questão, e que, com frequência, contemporâneas dos avós, não podem ser destes a
reencarnação. Deus não confundiria justiça com vingança.
Outro
dado interessante é que assim como os gregos criam que dos hades as almas dos
mortos retornavam à vida, o que incluíam num processo de ordem geral, que
chamavam palingenesia, ou palingênese (novo nascimento) os hebreus, igualmente,
criam que do scheol os mortos retornavam ao mundo material, o que a tradução
grega dos LXX (setenta) refere como anástasis (de anístêmi: tornar a ficar de
pé, regressar), expressão traduzida por "ressurreição". Está escrito:
"O Senhor é o que tira a vida e dá: faz descer ao scheol e faz tornar a
subir dele" (1 Sm 2:6). Embora tentem sufocar a antiga crença
reencarnacionista, traduzindo inúmeras vezes scheol por "sepultura",
tal intento restará sempre malogrado aos estudiosos esclarecidos.
Numa
passagem, por exemplo, do profeta Isaías, é descrita a entrada do rei de
Babilônia no scheol, onde outros reis mortos o reconhecem e dele passam a
escarnecer (Is. 14:9-16). Tais "mortos" (do hebraico refaim),
julgando que a futura descendência babilônica reincidiria nas mesmas faltas de
seus antepassados - os quais estavam ali, no scheol -, aconselham aos que
estavam na Terra seu morticínio: "Por causa da maldade dos pais, promovei
a matança dos filhos". O mais alarmante e revelador, contudo, é a certeza
que os levou a esse tétrico aconselhamento: "Não se tornem eles a levantar
para submeterem a terra e encherem de cidades a face da Terra" (Is.
14:21).
Ou
seja, ao suporem, ali no scheol, que os cruéis babilônicos não estavam
arrependidos do que haviam feito quando vivos, aqueles reis mortos avisam, pelo
profeta Isaías, que tais criminosos poderiam tornar a levantar-se, isto é, voltar em futuras gerações, repetindo
suas faltas antigas. Tanto assim é que muitos tradutores, nas suas deturpadas
versões bíblicas, suprimem o verbo auxiliar "tornem". O sentido da
palingênese, expresso no verbo anistêmi (composto de ana: 'para cima', ou 'de novo', ou 'para trás' e istêmi: 'estar de pé'), não fica então
patenteado; o verdadeiro sentido - isto é, o de que os espíritos não tornem a
subir, que os pais não tornem a levantar-se do scheol, pela reencarnação em
futuras gerações - resta completamente negligenciado.
¹ publicado originalmente na Revista Visão Espírita.
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