Uma coisa fica clara nesse episódio da menina de 10 anos, estuprada pelo tio, que tem o direito ao aborto – por lei (e ainda pelos dois motivos permitidos por lei ao aborto no Brasil, por estupro e por risco de vida): o fanatismo desumaniza, enceguece, embrutece as pessoas.
Quando elejo qualquer dogma ou mesmo princípio (supostamente moral), acima do ser humano, quando é mais importante nos agarrarmos a uma ideia do que a uma vida, ao sofrimento de alguém… então demonstramos que perdemos a capacidade de sentir empatia e compaixão, por causa de uma abstração qualquer, da rigidez de um pensamento que não vê mais a realidade.
Por que essas pessoas fanáticas, que gritavam palavras de ordem contra o aborto a se realizar nessa criança estuprada, ferida, abusada e contra os médicos que estavam ali cumprindo a lei e cumprindo seu dever ético, por que – pergunto eu em nome do próprio Deus que elas evocam – por que não estavam na porta do estuprador, indignadas e revoltadas com tamanha brutalidade praticada contra uma criança de seus 6 aos 10 anos? Vale mais um feto que ainda não se desenvolveu do que uma criança viva, concreta, já encarnada (para usar a linguagem espírita), que vai carregar pelo resto da vida esse trauma inominável, essa dor de ter sido violada em sua integridade, em sua infância, em sua inocência?
O fanatismo é irracional, é violento, é monstruoso – esse fanatismo que já acendeu fogueiras, provocou linchamentos, deflagrou guerras “santas” e é incapaz de enxergar o outro, o ser humano e valorizar o princípio máximo ensinado pelo mestre, que essas pessoas dizem seguir: amar ao próximo como a si mesmo! Quem é o próximo, nesse caso? É a menina estuprada… ela é vítima de uma sociedade misógina, violenta contra a mulher, desde o seu nascimento, uma sociedade que perdoa estuprador e culpabiliza a vítima; que se insurge contra o aborto e sacrifica crianças que já nasceram, matando-as nas favelas (quando são negras e pobres, claro).
O espiritismo condena o aborto como interrupção de uma vida que está se dando na encarnação de um espiritismo. Entretanto, no Livro dos Espíritos, alerta-se que se deve abortar, quando a mãe está em risco de vida. Então, o princípio não é absoluto. A lei brasileira permite nesse caso o aborto e no caso de estupro e a jurisprudência também tem permitido nos casos de bebês anencéfalos.
Entretanto, devemos alertar para o seguinte, assim como em outras tradições espirituais, há também os fanáticos antiabortistas espíritas, que consideram crime qualquer aborto e que defendem que a mulher continue sendo criminalizada por isso. E nesse (des)raciocínio, podem esses fanáticos espíritas invocar a chamada lei do carma para essa criança estuprada. Como se Deus ou qualquer lei do universo pudesse ensejar ou permitir um crime dessa natureza – um homem estuprar durante 4 anos uma criança indefesa. Quem faz isso está infringindo qualquer lei humana ou divina e a vítima não deveria passar por isso por qualquer lei humana ou divina. É um crime que é fruto de uma sociedade milenarmente patriarcal e violenta. Nada pode justificar tal ato.
Mas há os espíritas progressistas, que embora, por uma questão de entenderem a importância do processo da encarnação, possam ser pessoalmente contrários à prática do aborto, nem por isso serão a favor de que a mulher seja criminalizada por isso.
Nesse caso, entretanto, o da menina estuprada, qualquer impedimento ao seu justo desejo de se livrar de um feto que foi consequência de uma violência inominável e de um trauma de que ela provavelmente jamais vai se libertar completamente na vida, não pode ser objeto de qualquer dúvida. Nem para espíritas, nem para católicos, nem para evangélicos, nem para ateus. Trata-se de um ato de humanidade. Que essa menina seja acolhida, tratada terapeuticamente e que possa sobreviver com um mínimo de sanidade a toda essa violência sofrida.
(1) PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL GGN, EM 17Q08Q2020
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