O QUE DIZ A DOUTRINA
Conforme sabemos, o termo “segurança pública” não se encontra na codificação; por outro lado, não temos livros nem textos mais recentes específicos tratando desse tema. Contudo, podemos pegar alguns indícios para nossa exposição começando por “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, em que Santo Agostinho nos lembra que estamos em um “Mundo de Expiações e de Provas” (Cap. 3, item 13), em que “...os numerosos vícios a que se mostram propensos constituem o índice de grande imperfeição moral.” Assim, nossa situação atual coloca-nos frente a frente à realidade espiritual em que nos encontramos. Todavia, se estamos em processo evolutivo, devemos encontrar meios de superar esses problemas.
Trazendo “O Livro dos Espíritos, comecemos com a “Lei de Destruição”, em seu tema “Guerras”
“742. Que é o que impele o homem à guerra?
“Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e transbordamento das paixões. No estado de barbaria, os povos um só direito conhecem: o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o de guerra é um estado normal. À medida que o homem progride, menos frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas. E, quando se torna necessária, sabe fazê-la com humanidade.””
A primeira pergunta: estamos em guerra? Podemos não tê-las abertamente declaradas, mas, quando alguém que está querendo abusar de seu poder ante alguém que considere mais fraco, seja assassino, ladrão, estuprador ou mesmo um agente do Estado acostumado a ultrapassar os limites da sua ação, podemos dizer que há conflitos localizados, que acabam gerando aquele quadro assustador descrito pelo anuário.
Assim sendo, temos, por parte dos criminosos, “Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e transbordamento das paixões.”; essa parte da resposta certamente envolve casos de assassinato e estupro, mas nem sempre envolveria o roubo e os agentes do Estado abusando de sua autoridade; para esses, resta a segunda parte: “... um só direito conhecem: o do mais forte.”.
Portanto, com base no que disseram os Espíritos a Kardec, podemos dizer que temos o transbordamento da paixão animal e/ou o reconhecimento de que se é o mais forte ante a vítima como sendo possíveis causas dos casos de violência, perturbação do estado de segurança pública.
Prossigamos para a pergunta seguinte:
“743. Da face da Terra, algum dia, a guerra desaparecerá?
“Sim, quando os homens compreenderem a justiça e praticarem a lei de Deus. Nessa época, todos os povos serão irmãos.””
Ou seja, é possível acabar com a violência, desde que se compreenda a justiça e se pratique a lei de Deus. Acontece que, de acordo com o próprio “O Livro dos Espíritos”, retornando um pouco, no “Capítulo I – Conhecimento da Lei Natural”, tema “Conhecimento da Lei Natural”, temos:
“621. Onde está escrita a lei de Deus?
“Na consciência.””
Se ficássemos com essa resposta apenas, teríamos um problema gravíssimo, pois todos os seres humanos teriam acesso à lei divina. Por que, então, não a praticam? Por isso, logo em seguida, Kardec pergunta:
“621. a) — Visto que o homem traz em sua consciência a lei de Deus, que necessidade havia de lhe ser ela revelada?
“Ele a esquecera e desprezara. Quis então Deus lhe fosse lembrada.””
Ora, se ela está na consciência, por que é necessário passar por um processo para o conhecimento da mesma? Ou se está na consciência, ou se deve passar por um processo para adquiri-la – ou despertá-la.
Talvez, a compreensão melhor desse assunto envolva outra pergunta, colocada pouco antes:
“619. A todos os homens facultou Deus os meios de conhecerem sua lei?
“Todos podem conhecê-la, mas nem todos a compreendem. Os homens de bem e os que se decidem a investigá-la são os que melhor a compreendem. Todos, entretanto, a compreenderão um dia, porquanto forçoso é que o progresso se efetue.””
Cremos que o melhor processo a ser colocado, nesse caso, pode ser chamado de educação moral.
Muitas vezes, esse processo é colocado dentro do âmbito religioso; no entanto, muitas vezes, por meio do conhecimento de algumas questões sociais e mesmo com leis civis, é possível realizar alguma forma de educação.
A maior dificuldade, a rigor, é realizar esse processo educacional sem o viés religioso – fato que também é um ponto delicado dentro da doutrina espírita, já que, no resto da América Latina, a doutrina tem um viés moral, somente aqui no Brasil trabalha-se com o viés religioso.
Outro ponto a ser colocado, dentro desse âmbito, é a existência pretérita de uma disciplina chamada “Educação Moral e Cívica”, a ser abordada no próximo artigo, com objetivo muito distante da educação moral em si; observando o texto dos Espíritos e a criticidade exemplificada pelo próprio codificador, a educação moral proposta por Kardec traz um exercício que envolveria não somente o autoconhecimento (conforme a famosa orientação de Santo Agostinho, na questão 919-a), mas também uma autoeducação profunda; no entanto, como conseguir esse procedimento em nível de citadino, estadual, nacional, continental, planetário? Se em nível individual, no meio espírita, é quase impossível, imagine em um nível tão abrangente?
Antes de tentar responder, avancemos um pouco. Passemos para a seção “O bem e o mal”:
“630. Como se pode distinguir o bem do mal?
“O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe é contrário. Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a lei de Deus; fazer o mal é infringi-la.””
Novamente, deparamo-nos com a questão da lei divina, que está na consciência de cada ser humano, mas que precisa ser despertada para que o ser humano a reconheça. Por isso, Kardec continua:
“631. Tem meios o homem de distinguir por si mesmo o que é bem do que é mal?
“Sim, quando crê em Deus e o quer saber. Deus lhe deu a inteligência para distinguir um do outro.””
Por mais que boa parte dos seres humanos creiam em alguma religião, é bem complicado imaginar que crentes possam aplicar a lei divina como se deve, visto as guerras em nome da religião ao longo da história, bem como a intolerância religiosa, denunciada tantas vezes. Assim sendo, resta-nos a segunda parte: o uso da inteligência.
Prossigamos:
“632. Estando sujeito ao erro, não pode o homem enganar-se na apreciação do bem e do mal, e crer que pratica o bem quando em realidade pratica o mal?
“Jesus disse: vede o que quereríeis que vos fizessem ou não vos fizessem. Tudo se resume nisso. Não vos enganareis.””
Aqui é um outro ponto bastante delicado: que tipo de tratamento quero receber ou não? E até que ponto o próprio indivíduo pode ser usado como parâmetro, levando em conta as diferentes culturas no planeta. Poderíamos utilizar o texto “Homem de Bem” (ESE, Cap. 17, item 3), bem como os capítulos 11 e 12 do ESE; mas, como atingir quem não é adepto da doutrina espírita?
Ainda assim, vamos trazer mais uma pergunta:
“633. Essa regra do bem e do mal, que se poderia chamar de reciprocidade ou de solidariedade, é inaplicável ao proceder pessoal do homem para consigo mesmo. Achará ele, na lei natural, a regra desse proceder e um guia seguro?
“Quando comeis em excesso, verificais que isso vos faz mal. Pois bem: é Deus quem vos dá a medida daquilo de que necessitais. Quando excedeis dessa medida, sois punidos. Em tudo é assim. A lei natural traça para o homem o limite das suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é punido pelo sofrimento. Se atendesse sempre à voz que lhe diz basta, evitaria a maior parte dos males cuja culpa lança à natureza.””
Em termos de individualidade, a resposta está perfeita; no entanto, em termos de sociedade, como lidamos com isso?
Os dados do anuário demonstram que há um trabalho muito grande a ser feito; o mal já ultrapassou os limites do que poderíamos considerar excesso, a ponto de termos determinados grupos oprimidos bastante identificados (jovens mulheres negras vítimas de estupro, homens jovens negros por assassinato, policiais negros com pouco tempo de serviço).
Não podemos nos esquecer da responsabilidade de quem está com a incumbência de agir supostamente para o cumprimento das leis. Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Capítulo 17 – Sede Perfeitos, item 9, “Os superiores e os inferiores”, o Espírito François-Nicolas-Madeleine, Cardeal Morlot chama a nossa atenção:
“(...)
Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for a sua extensão, desde a do senhor sobre o seu servo, até a do soberano sobre o seu povo, não deve olvidar que tem almas a seu cargo; que responderá pela boa ou má diretriz que dê aos seus subordinados e que sobre ele recairão as faltas que estes cometam, os vícios a que sejam arrastados em consequência dessa diretriz ou dos maus exemplos, do mesmo modo que colherá os frutos da solicitude que empregar para os conduzir ao bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou pequena; qualquer que ela seja, sempre lhe é dada para o bem; falseá-la em seu princípio é, pois, falir ao seu desempenho.
(...)”
Logo, quem está investido de qualquer grau de autoridade deve pensar na responsabilidade que tem, nas vidas que deve respeitar, no bem-estar social que deve promover. Até porque:
“(...)
O superior, que se ache compenetrado das palavras do Cristo, a nenhum despreza dos que lhe estejam submetidos, porque sabe que as distinções sociais não prevalecem às vistas de Deus. Ensina-lhe o Espiritismo que, se eles hoje lhe obedecem, talvez já lhe tenham dado ordens, ou poderão dar-lhas mais tarde, e que ele então será tratado conforme os haja tratado, quando sobre eles exercia autoridade.
(...)”
Ou seja, o mau uso da autoridade pode levar a sofrer as consequências da lei de talião; por isso, não deve fazer acepção de pessoas, independentemente de classe social, sexo, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, opção religiosa e mesmo se a pessoa está investida de outro grau de autoridade.
No próximo artigo, vamos pensar em algumas soluções possíveis.
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