O movimento espírita tem uma tendência de procurar em obras psicografadas e em alguns tópicos deixados por Kardec e em obras posteriores, algumas supostas continuadoras e outras que resolveram contrariar postulados do filósofo do Espiritismo, as razões para tudo, mesmo que não tenham base lógica nem demonstrem bom-senso.
Um dos casos envolve a questão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), bem como a contaminação com o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH/HIV). Desde o surgimento do primeiro caso, há mais de quarenta anos, o drama da convivência com o vírus tem sido uma convivência com diversas formas de preconceito, fruto de diversas formas de ignorância, bem como a covardia de se lidar com esse assunto.
Há diversas obras e falas procurando relacionar a pandemia de HIV/Aids a uma espécie de freio à liberação sexual proporcionada pela filosofia hippie, com o amor livre (o jornalista Brian Mier garante que quem espalhou HIV pelo planeta foram missionários evangélicos atuando na África; infelizmente, não achei fonte para embasar tal afirmação; contudo, caso se comprove, demonstra que essa ideia é ainda mais abjeta e absurda, além de preconceituosíssima); no entanto, não se coloca que diversas outras doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis, herpes genital, entre diversas outras, têm assolado a humanidade em diversas épocas, muito antes do chamado amor livre tomar conta de um pequeno grupo de Espíritos encarnados. Além disso, o que dizer de pessoas que usam drogas injetáveis e mesmo aquelas que não embarcaram na onda hippie e foram contaminadas, seja por parceires a quem eram fiéis, seja aquelas que nasceram com o vírus a partir da contaminação dos pais? Até onde chega a crueldade dos estudiosos espíritas em tentar encaixar a lei de causa e efeito sob pontos de vista ainda desconhecidos com explicações que não se encaixam na lógica e no bom-senso.
Nessas situações, precisamos, inicialmente, dar a mão à palmatória e assumir que tudo o que conhecemos sobre esses temas têm limites, e que mesmo Espíritos que se comunicam sobre esses assuntos deveriam assumir o mesmo – ou, ao menos, deveríamos ter mais cuidado em sair publicando tudo o que vem deles, mesmo vindo de médiuns e Espíritos considerados sérios. A maior tragédia espírita está em não assumirmos e aceitarmos o limite de nossos conhecimentos.
Por exemplo: os setores conservadores e reacionários são radicalmente contrários à campanha pelo uso dos preservativos masculinos e femininos (vulgarmente conhecidos como camisinhas) por considerarem que ela seria um passaporte para promiscuidade – cheguei a ouvir dizer que o vírus seria menor do que os poros do preservativo; se assim o fosse, o número de contaminados seria muito maior do que o atual, já que os índices de confiança nesse instrumento chegam a 99% quando usado adequadamente – por exemplo, usando gel a base de água, observando-se não ficou ar na ponta, além de outros cuidados). Outros alegam que a energia da pessoa fica na outra por seis meses (existe algum aparelho que meça isso? Que energia seria essa? Até que ponto essa “troca” seria prejudicial? De onde saiu essa informação?), assustando mentes menos críticas.
Estamos com essas críticas querendo que todas as pessoas “caiam na gandaia” e tenham relações sexuais à vontade? Jamais! Queremos colocar as coisas no devido lugar, sem mitos nem histórias fantasiosas para justificar o conservadorismo das pessoas. A recomendação da autopreservação é totalmente válida; contudo, os argumentos conservadores jamais conseguiram impedir que as pessoas tivessem relações sexuais secretamente, estivessem elas solteiras ou consorciadas com quem quer que fosse. A rigor, os argumentos conservadores e reacionários estimulam que essas relações permaneçam secretas, impedindo um devido autocuidado e a manutenção de determinados preconceitos, como a ideia de que o melhor preservativo seriam as relações fiéis – durante muito tempo, as mulheres casadas estavam entre as principais vítimas do HIV; grande preservativo, não é mesmo?
O advento do HIV e da Aids permitiu que pudéssemos tocar nesse assunto com maior propriedade, que pudéssemos estudá-lo como se deve, ainda que esse debate seja interditado nos ambientes religiosos – inclusive, espíritas. Mesmo em ambientes educacionais, embora vivamos em um estado laico, esse conhecimento ainda é pouco difundido por conta da influência de lideranças religiosas, que tentam impor a ignorância como marca, em detrimento da saúde mental, emocional, psicológica e sexual de seus fiéis.
Além da educação sexual, que envolve práticas saudáveis, indo além da autopreservação com o uso de preservativos e outros procedimentos, também deveria envolver a pluralidade cultural envolvendo irmanes encarnades que estão na condição de soropositividade, ou seja, estão com o HIV em seu organismo. Independentemente da forma como contraíram, seja pela via sexual desprotegida, seja por contato com sangue que continha o vírus, seja porque nasceu com o vírus, todes devem ser acolhides com amor e carinho, e terem todo o seu potencial de evolução espiritual preservado sem quaisquer tipos de preconceito. São pessoas que trabalham e agem como quaisquer outros Espíritos encarnados, e devem ser acolhides como trabalhadores espírites caso o queiram.
O conhecimento adequado do HIV e da Aids permitem que soropositives possam conviver normalmente, namorarem, casarem, ter filhos e relações sexuais com quem quiserem, desde que tenham o autocuidado e sejam estimuladas a viverem com a autoestima elevada. Uma abordagem sobre relações sorodiscordantes seria muito interessante e, digo mais, importante para os devidos esclarecimentos. Nesse ponto, o movimento espírita deveria abordar esse assunto com amor, carinho e abrindo as portas para que todes se sintam à vontade. Seria importante se pudéssemos deixar tantos preconceitos de lado e abraçarem irmanes que certamente ainda se isolam por não se considerarem capazes de convier em sociedade por conta de preconceitos alimentados em nossa sociedade.
São nessas situações que devemos nos lembrar sempre das palavras do nosso amado mestre Jesus, conforme Kardec estuda no capítulo XI de O Evangelho Segundo o Espiritismo: “Tratai todos os homens como quereríeis que eles vos tratassem.” (Lucas, 6:31).
Muito oportuno, Filipe.
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