Essa foto marcou a semana passada o Brasil: bebê tomando água com maizena para matar a fome |
O material distribuído pela Federação Espírita Brasileira (FEB) em seu Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita (ESDE) baseia seu trabalho de assistência social (considerado caridade) na seguinte passagem bíblica, que abre o capítulo XV de O Evangelho Segundo o Espiritismo:
O último julgamento — 31Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. 32E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, 33e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 34Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: 'Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. 35Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. 36Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me'. 37Então os justos lhe responderão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? 38Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? 39Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver?' 40Ao que lhes responderá o rei: 'Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes'. 41Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. 42Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber. 43Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes'. 44Então, também eles responderão: 'Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos?' 45E ele responderá com estas palavras: 'Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer'. 46E irão estes para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna". (Fonte: Bíblia de Jerusalém)
Nela, temos a caridade física, procedimentos de assistência social (doação de alimentos, bebidas, roupas), bem como as de assistência espiritual (acolhimento, visitas a doentes e presidiáries). Essa atitude meritória, organizada institucionalmente, ajuda a diminuir a situação calamitosa provocada pelo sistema capitalista; no entanto, a missão do Espiritismo vai muito além de sanar temporariamente a fome, que é um aspecto estrutural.
Há algumas semanas, foi divulgada, nas redes sociais, uma pessoa gritando em meio aos prédios exatamente a frase que dá título a este artigo. Seria fácil simplesmente indicá-lo a uma instituição espírita e incluí-lo em um programa de atendimento; no entanto, quando precisei indicar uma família que estava nessa condição, a resposta foi que não haveria condições de ajudá-la porque estava já com cadastro encerrado.
Com a atual crise da economia brasileira – crise para trabalhadores e desempregades, pois determinados setores estão enriquecendo com a proteção dada a grandes fortunas – o número de necessitades aumentou absurdamente; basta andar pelas ruas de grandes e médias cidades para esbarrar em pedintes e morares de rua. Por mais que espíritas, católiques e outras agremiações religiosas dediquem-se a alimentar essas pessoas, a crise nas classes populares somente tende a aumentar se não houver mudança estrutural.
Para culminar com essa situação, um dos poucos instrumentos que evitava uma calamidade ainda maior foi retirado: o Bolsa-Família. Testemunhei diversas pessoas em hostes espíritas atacando esse instrumento alegando que se dava dinheiro a quem não merecia, além de outros argumentos de quem jamais viveu em um lugar popular e não sabe o que é a vida em um local sem saneamento básico nem oportunidades para ter outras formas de vida. Muitas de nossas recomendações são baseadas em nossa visão burguesa, não levam em conta o ponto de vista de quem nasceu na periferia e não recebe outras oportunidades, sendo discriminado quando decide andar fora de seu círculo – haja vista quando entram em praças, shoppings centers, igrejas e (por que não dizer?) casas espíritas quando não em dias de atendimento às classes populares.
Uma das maiores contribuições para o questionamento do sistema capitalista está em O Livro dos Espíritos em diversas passagens, que deveriam receber maior atenção nossa. Todas as citações vêm da Parte Terceira (Leis Morais). Comecemos com as questões 704 a 707:
704. Tendo dado ao homem a necessidade de viver, Deus lhe facultou, em todos os tempos, os meios de o conseguir?
“Sim, e se ele os não encontra é que não os compreende. Não seria possível que Deus criasse para o homem a necessidade de viver sem lhe dar os meios de consegui-lo. Essa a razão por que faz que a Terra produza de modo a proporcionar o necessário aos que a habitam, visto que só o necessário é útil; o supérfluo nunca o é.”
705. Por que nem sempre a Terra produz bastante para fornecer ao homem o necessário?
“É que, ingrato, o homem a despreza! Ela, no entanto, é excelente mãe. Muitas vezes, também, ele acusa a natureza do que só é resultado da sua imperícia ou da sua imprevidência. A Terra produziria sempre o necessário, se com o necessário soubesse o homem contentar-se. Se o que ela produz não lhe basta a todas as necessidades, é que ele emprega no supérfluo o que poderia ser aplicado no necessário. Olha o árabe no deserto. Acha sempre de que viver, porque não cria para si necessidades factícias. Desde que haja desperdiçado a metade dos produtos em satisfazer a fantasias, que motivos tem o homem para se espantar de nada encontrar no dia seguinte e para se queixar de estar desprovido de tudo, quando chegam os dias de penúria? Em verdade vos digo, imprevidente não é a natureza, é o homem, que não sabe regrar o seu viver.”
706. Por bens da Terra unicamente se devem entender os produtos do solo?
“O solo é a fonte primacial donde dimanam todos os outros recursos, pois que, em definitivo, esses recursos são simples transformações dos produtos do solo. Por bens da Terra se deve, pois, entender tudo de que o homem pode gozar neste mundo.”
707. É frequente a certos indivíduos faltarem os meios de subsistência, ainda quando os cerca a abundância. A que se deve atribuir isso?
“Ao egoísmo dos homens, que nem sempre fazem o que lhes cumpre. Depois, e as mais das vezes, devem-no a si mesmos. Buscai e achareis: essas palavras não querem dizer que, para achar o que deseje, basta que o homem olhe para a terra, mas que lhe é preciso procurá-lo, não com indolência, e sim com ardor e perseverança, sem desanimar ante os obstáculos, que muito amiúde são simples meios de que se utiliza a Providência para lhe experimentar a constância, a paciência e a firmeza.” (grifos nossos)
Os grifos ressaltam o quanto egoísmo tem atrapalhado o debate sobre esse tema dentro da doutrina espírita, já que orgulhosamente afastamos o questionamento ao sistema capitalista. Vejamos agora a questão 717:
717. Que se há de pensar dos que açambarcam os bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, com prejuízo daqueles a quem falta o necessário?
“Desprezam a lei de Deus e terão que responder pela privações que houverem causado aos outros.”
Se nós não debatemos, somos cúmplices desse sistema. Até porque, conforme a questão 806:
806. É lei da natureza a desigualdade das condições sociais?
“Não; é obra do homem e não de Deus.”
a) — Algum dia essa desigualdade desaparecerá?
b) “Eternas somente as leis de Deus o são. Não vês que dia a dia ela gradualmente se apaga? Desaparecerá quando o egoísmo e o orgulho deixarem de predominar. Restará apenas a desigualdade do merecimento. Dia virá em que os membros da grande família dos filhos de Deus deixarão de considerar-se como de sangue mais ou menos puro. Só o Espírito é mais ou menos puro e isso não depende da posição social.” (grifos nossos)
É nosso papel lutar para mudar essa situação absurda, em que irmãos de jornada passam por todas as privações possíveis e imagináveis – além de situações que fogem à nossa capacidade de assimilação, já que o ser humano consegue se superar na crueldade, na exploração do homem pelo homem.
Para fecharmos este artigo, que já está bastante longo, fica aqui a sugestão de adoção da resposta à pergunta 930 que, ao lado de “Fora da Caridade não há Salvação”, deveria ser nosso lema:
930. É evidente que, se não fossem os preconceitos sociais, pelos quais se deixa o homem dominar, ele sempre acharia um trabalho qualquer, que lhe proporcionasse meio de viver, embora deslocando-se da sua posição. Mas, entre os que não têm preconceitos ou os põem de lado, não há pessoas que se veem na impossibilidade de prover às suas necessidades, em consequência de moléstias ou outras causas independentes da vontade delas?
“Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.” (grifos nossos)
Ante tanta hipocrisia feita em nome do Cristo, como o combate à corrupção que derrubou um governo próspero e trouxe de volta o país ao mapa da fome; enriqueceu banqueiros e empresários já abastados; estimulou a luta contra “moinhos de vento”, como ideologia de gênero e a ditadura comunista que nunca houve no Brasil – pelo contrário, a ditadura foi capitalista com inspiração nazifascista e apoiada por grupos religiosos; já passou da hora de botarmos os pés no chão e identificarmos que o principal inimigo da humanidade se chama capitalismo e as suas diversas nuances, que conquistam e mobilizam a ponto de considerarmos natural irmãos de jornada passando fome. Os Espíritos dizem: não é natural, e é nosso papel resolver esse drama da vida real.
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