(continuação)
O mundo da fé medieval era o que tentava ouvir Deus no silêncio da noite. O mundo moderno é o que não pode ouvir mais nada no barulho de nossos mercados e indústrias. Estranha fé a da nossa história, que quando queriam ouvi-la calou-se e quando poderia falar nossos sons abafaram.
É disto que se trata nosso mundo moderno: o capitalismo que faz do homem produto, mão-de-obra que vale pelo que produz, e não pelo fato de ser humano. Neste mundo, o mistério da natureza está dominado: o homem que não controla o raio, que não sabe fazer provisão de alimentos, que não domina a energia, não conseguirá produzir nem ter lucro. Se o mundo passado era o mundo do mistério, o mundo do desconhecido, o mundo moderno é o mundo das objetivações. Não há mistérios, não há temor. Há a vitória do conhecimento humano, mas, a bem da verdade, esta é a vitória da verdade técnica, instrumental, capitalista, para a dominação de homens por homens.
É de se notar, aliás, a diferença entre a representação de Deus dos cristãos medievais e nos cristãos modernos. Para um medieval, e para toda a teologia que ficou ligada a este tempo, para com Deus os homens têm uma relação de temor. O temor a Deus é um dos sinais característicos do cristão antigo. O cristão dos tempos modernos, ou mesmo os grandes racionalistas iluministas, por exemplo, não terão jamais uma concepção de Deus que os obrigue a manter uma relação de temor para com o criador. A ironia do povo que diz que Deus é pai e não padrasto seria grande crime para o mundo medieval, enquanto para nós modernos não passa de chiste.
Se fossemos homens medievais num mundo contemporâneo, lastimaríamos este mundo se fé ao qual desde os tempos modernos estamos acostumados. Há, aliás, muitos, em geral fundamentalistas, que insistem em criticar este mundo moderno pela ótica do passado. A Bíblia lida a ferro e fogo, a intolerância nos mais variados graus, fanatismos e reacionarismos, tudo isto é bem característico, no nosso mundo de hoje, de uma mentalidade que insiste em ser antiga, medieval.
O mundo moderno perde a fé por causa do seu racionalismo, mas esse racionalismo é também fruto de uma raiz mais funda, o próprio sistema produtivo capitalista. Neste sistema que nos conforma e nos rege até a atualidade, o homem não tem valores éticos mais altos, não tem moral, não tem liberdade verdadeira, não tem igualdade plena, e, portanto, está impossibilitado da verdadeira solidariedade, está impossibilitado de ser fazer verdadeiramente irmão do próximo, não consegue construir uma verdadeira fraternidade.
O sistema capitalista, tal qual o sistema medieval, é individualista. Os medievais, individualistas porque o reino dos céus se conquista individualmente, por meio da fé de cada um. Deus julga, para os medievais, indivíduos, almas autônomas. Os modernos, se já não estão mais impossibilitados de viver a vida boa na terra – pois o feudalismo já ruiu e a vida capitalista é tentadora -, continuam, mesmo assim, individualistas, mas ao seu modo. A vida boa é tentadora agora na terra mesmo, esta é também para poucos, para aqueles que conseguirem, para os indivíduos que se esforçarem ou tiverem sorte para tanto. O individualismo moderno é o individualismo da propriedade. O que se tem é só de si e não de todos. O que se ganha do trabalho é para o uso e o fruto individual, e não para a sociedade. Se os medievais ganhariam o reino de Deus isoladamente, egoisticamente, individualmente, os modernos ganham o reino da terra também gananciosamente, de maneira egoísta, de maneira individualista. O próprio sistema econômico capitalista nada mais é do que a chancela do egoísmo sob a forma da propriedade privada.
Neste mundo, quando menos mistérios, mais lucros, porque maior domínio sobre a natureza. Se o homem souber controlar o raio, não terá prejuízo em sua lavoura ou em sua indústria. Descobre-se que Deus não manda raio ao seu bel-prazer não porque a preocupação do homem seja desmascarar a divindade, mas porque quando mais desvendar a natureza mais lucro terá. O capitalismo dá à mentalidade humana uma perspectiva totalmente racionalista. Esta aposta no racionalismo iconoclasta, mas substitui o altar da fé pelo altar do mercado.
O Deus medieval, o Deus de Agostinho, era maldoso, barganhador, impiedoso, temerário, vingador etc. O Deus moderno é o mercado.
A escolha dos nossos tempos não é voltar a Agostinho ou nos resignarmos à nossa condição presente. Nossa escolha é a superação de tudo isso.
(continua)
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