“Lembre-se de que o mal não merece comentário em tempo algum.”
André Luiz (Agenda Cristã, Capítulo 9, Nas conversações)
“21. Haverá casos em que convenha se desvende o mal de outrem?
É muito delicada esta questão e, para resolvê-la, necessário se torna apelar para a caridade bem compreendida. Se as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, nenhuma utilidade haverá nunca em divulgá-la. Se, porém, podem acarretar prejuízo a terceiros, deve-se atender de preferência ao interesse do maior número. Segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas. Em tal caso, deve-se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes.
– São Luís (Paris, 1860.)” Allan Kardec (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo 10)
Há muito tempo, percebe-se a predileção do movimento espírita institucionalizado febeano pela primeira citação em detrimento da segunda. E a motivação para essa troca de São Luís por André Luiz vem pela conveniência em manutenção do silêncio, mesmo que esse silêncio signifique cumplicidade com crimes de Estado, lesa-pátria, lesa-humanidade ou qualquer outro.
A afirmação de São Luís requer raciocínio, e esse aspecto costuma ser mais difícil, por causar polêmica: afinal, quando o mal divulgado pode salvar diversas pessoas? E até que ponto a pessoa que o divulga pode se comprometer com esse aspecto?
Nesse ponto, entra outra situação bastante delicada: a afirmação de André Luiz tem sido utilizada para empoderar covardes, pois, ao colocar os “pingos nos is”, corre-se o risco de censura ou mesmo uma fala corrente na atualidade: o cancelamento. Por conta disso, muitas pessoas escondem sua posição progressista ante dirigentes e palestrantes abertamente bolsonaristas e olavistas, por exemplo. E, nisso, convive-se hipocritamente dentro de instituições espíritas, que acabaram tornando-se comitês políticos em que não se pode discutir política – exceto se for para dizer amém ao desgoverno.
Por outro lado, esse aspecto que acaba sendo imposto dramaticamente a diverses irmanes nas nossas casas espíritas também pode trazer à baila um assunto que envolve a geopolítica.
Em 2006, Julian Assange inaugurou o sítio Wikileaks, tendo por objetivo divulgar documentos secretos, especialmente emitidos pelos Estados Unidos da América (EUA). Tal atitude acabou interferindo diversos interesses do Império Global – área de abrangência dos EUA. Entre os documentos, posteriormente, foram divulgados alguns que demonstraram a vigilância sobre, entre outras pessoas, a então presidenta Dilma Rousseff – o resultado já sabemos como ocorreu depois.
Edward Snowden, por sua vez, revelou ao mundo, em 2013, a maneira como um sistema de vigilância global é utilizado por diversas plataformas digitais via internet, comprovando o quanto nós somos vigiados nos mínimos detalhes – longe de ser teoria da conspiração, 1984, de George Orwell, tornou-se realidade, porém não pelo mundo socialista, mas dentro da área de abrangência capitalista, na qual estamos situados. Para quem quiser entender como esse sistema de vigilância funciona, basta assistir aos filmes Snowden (2016), Privacidade hackeada (2019) e O dilema das redes (2020), preferencialmente nessa ordem.
As abordagens espíritas costumam ser restritas a questões cotidianas, pessoais; contudo, cremos que também é necessária uma reflexão: ambos utilizaram, sem conhecimento espírita, a lógica de São Luís, não a de André Luiz; nossa atitude, geralmente alimentada pela imprensa corporativa, tem sido a de criminalizar ambos, já que Assange encontra-se preso sob acusações questionadas por terem sido apresentadas em circunstâncias estranhas pelo tipo de processo desenvolvido – há pessoas que comparam este caso com o lawfare sofrido por Lula em 2018 – e Snowden encontra-se exilado na Rússia desde que apresentou essas denúncias. Ambos pagam o preço de seguirem o que suas consciências determinaram e, de certa forma, seguir a lógica e o bom senso de avisar ao mundo das manipulações que todes sofremos sem o sabermos: governos são derrubados por “revoluções coloridas”, políticas são manipuladas, sempre com o objetivo de aumentar os ganhos e a área de influência do Império. E tudo isso com nossa ajuda, quando expomos nossos dados nas redes sociais.
E qual tem sido nossa atitude? Como teríamos agido nessas circunstâncias? Como agimos quando sabemos que alguém possui má intenção sobre outra pessoa ou sobre um grupo? Somos ou seríamos cúmplices ou lutamos ou lutaríamos contra esses malefícios?
Antes da conclusão deste breve artigo, temos de levar em conta a seguinte situação: a maior vítima de lawfare, ainda que historicamente essas circunstâncias ainda estejam sob investigação, foi Jesus de Nazaré: seguindo o raciocínio do professor e historiador André Chevitarese, especialista em Jesus Histórico, Jesus pregou o reino de Deus em meio à Judeia, sendo que o Império Romano se incomodou com o fato de já ter um reino estabelecido, tendo César como deus; e, assim como outros candidatos a messias, foi brutalmente assassinado, tornando-se o mártir que enxergamos atualmente como herói; para o Império Romano, ele foi criminoso pelo simples fato de questionar; os textos evangélicos, ainda que não sendo considerados documentos históricos, porém teológicos, demonstram que era uma figura incômoda aos interesses da elite judaica e do poder romano estabelecido na região. Jesus pagou o preço da sua coerência.
Seguindo o exemplo de Jesus, não podemos ter medo de enfrentar a hipocrisia de nossa sociedade, especialmente em se tratando de movimento espírita. Precisamos botar alguns dedos nas feridas a fim de evitar o risco de o movimento espírita tornar-se uma nova seita sem lógica nem bom-senso, tendo a figura de Kardec colocada hipocritamente como símbolo, assim como seitas cristãs utilizam a figura amorosa de Jesus para massacrar mentes e corações.
Quanto a Assange e Snowden, deixamos nossa solidariedade por seguirem suas consciências e revelarem ao mundo o que o sistema midiático tenta esconder: somos colônias de um Império global, vigiados 24 horas por dia de maneira disfarçada, alimentando o sistema de vigilância com nossas intimidades expostas e colaborando para a manutenção do status quo. Que a luta de Assange, Snowden. Kardec e Jesus não tenha sido em vão.
Olá, Filipe,
ResponderExcluirO Assange será indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Parabéns pelo texto! Jorge Luiz.