Como se estabelecer no imaginário a personalidade de Jesus, na condição de guia e modelo da Humanidade – questão nº 625, de O Livro dos Espíritos (O L. E.)? O padrão de moral de Jesus deve ser, necessariamente, a mansidão e o assistencialismo, assim como de Francisco C. Xavier, Irmã Dulce e Madre Teresa de Calcutá? Ou estaria mais próximo de Gandhi ou Allan Kardec? Quem sabe integrava grupo que hoje é conhecido como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)?
A condição de Jesus como revolucionário sempre me exerceu certo fascínio. A historicidade de Jesus fortaleceu ainda mais esse fascínio. A leitura de alguns volumes do estudioso bíblico norte-americano, John P. Meier, Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico (5 volumes), aguçou essa percepção. E a recente leitura de O Jesus Histórico, do teólogo irlandês John Dominic Crossan, causou-me estupefação. Não me sobraram dúvidas com a pesquisa do historiador marxista britânico, reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século X, Eric Hobsbawn (1917-2012), editado com o título Bandidos, que consolidou essa minha visão e que balizará os argumentos deste ensaio.
O leitor, decerto, está entendendo o assunto como um escândalo ou mesmo heresia, quem sabe uma “forçação de barra”. Fundamental compreender-se a etimologia da palavra bandido, que se origina do italiano bandito, que quer dizer homem “banido”, “posto fora da lei”. O sentido moderno da palavra data fins do século XV. É necessário que se entenda que o “bandido”, em todas as dimensões, é um produto da própria sociedade, a qual define os papéis. Ninguém nasce bandido. Allan Kardec, ao comentar a questão nº 685 “a”, momento em que ele fundamenta a educação espírita como conjunto de hábitos adquiridos, é claro a esse respeito:
“Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos, deve-se admirar das consequências desastrosas desse fato? Quando essa arte for conhecida, compreendida e praticada, o homem seguirá no mundo os hábitos de ordem e previdência para si mesmo e para os seus, de respeito pelo que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar de maneira menos penosa os maus dias inevitáveis.”
O Brasil, com as suas profundas mazelas sociais, transformou-se em uma “máquina” de produzir bandidos, até se chegar ao termo de se defender que “bandido bom é bandido morto”, mesmo nas hostes espíritas.
Fundamental entender que o bandido social surge sempre do campesinato, e não pode existir fora de ordens socioeconômicas e políticas que possam ser assim desafiadas, alerta Hobsbawn, e nem há necessidade de se utilizar de armas ou violência.
Hobsbawn, a partir do ponto de vista social, divide-o em três fases, ressaltando que o que difere as duas primeiras fases para a terceira é a fome, mesmo nas sociedades pré- capitalistas. Lembrem-se do “pão nosso de cada dia...”
1. Sociedades anteriores aos bandidos passam a fazer parte de sociedades com classes e Estado;
2. Sua transformação a partir da ascensão do capitalismo, local e mundial;
3. Sua longa trajetória sob Estados e regimes sociais intermediários.
A terceira fase, na qual nos encontramos, os sindicatos e os patronatos, principalmente nos círculos urbanos, desarticularam o poder de mobilização dos trabalhadores, ao impor o empreendedorismo e a meritocracia como condição de sobrevivência.
Hobsbawn assegura que o banditismo social desapareceu, sendo hoje um fenômeno social do passado. O mundo moderno o matou, substituindo-o por suas próprias formas de rebelião primitiva e de criminalidade.
Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo marxista, jornalista, crítico literário, linguista, historiador e político italiano, admite que “a luta de classes se confunde com o banditismo, a chantagem, o incêndio premeditado de florestas, a mutilação do gado, o sequestro de mulheres e crianças e os ataques contra repartições municipais.
É necessário que se reflita sobre a visão que a sociedade guarda do MST, que recentemente foi considerado pelo Presidente da República como terrorista. Em algum momento na história a sociedade foi esclarecida sobre o tear social que é o Movimento dos Sem Terra? Por acaso foi dito que eles, através de campanha de solidariedade, distribuíram cerca de 6 mil toneladas de alimento e 1.150.000 marmitas para pessoas e famílias inteiras em situação de fome e insegurança alimentar em todas as grandes regiões do país? Que através de convênios com universidades eles formam trabalhadores e dependentes em Direito, Medicina Veterinária, Agronomia? Claro que não: são simplesmente terroristas.
Vê-se que os bandidos sociais – considerem o MST – corrigem erros, desagravam as injustiças e, assim agindo, eles facultam um entendimento de que é possível construir uma sociedade mais justa e equitativa, entre os homens em geral, destacadamente, entre os ricos e os pobres.
O banditismo social constitui um fenômeno universal – diz Hobsbawn – encontrado em todas as sociedades baseadas na agricultura (inclusive nas economias pastoris) e compostas principalmente de camponeses e trabalhadores sem terras, governados, oprimidos e explorados por alguém (senhores, cidades, governos, advogados ou até mesmo bancos).
As religiões foram e continuam sendo, também, aparelhamento ideológico das lutas de classes, em qualquer ideário político-partidário. Leia-se Otto Maduro, (1945-2013), venezuelano, filósofo e sociólogo da religião:
“Não é (nem mesmo sobretudo) a <<boa vontade>> ou a <<sorte>> de um grupo de crentes – ou líderes religiosos – que vai definir o desenvolvimento e o resultado de sua ação religiosa. É principalmente (e sobretudo) a estrutura da sociedade em que eles atuam que definirá quais pontos de sua ação são viáveis (e quais – por mais que sejam procurados – são simplesmente impossíveis); é a estrutura social que condicionará os resultados mais prováveis de sua ação (ainda que esses sejam profundamente repudiados e cuidadosamente evitados pelos agentes religiosos.”
Jesus não é, não fundou e nem quis isso. Allan Kardec, da mesma forma. Doutrina Espírita não é religião, contudo, alguns adeptos são assim, religiosos. Kardec definiu os espíritas como livres-pensadores, portanto, não se permitem ser manipulados pelos controladores dos poderes institucionais.
O banditismo social guarda muitas particularidades com a vida de Jesus. Na teoria e na prática, os bandidos sociais morrem pela traição, ainda que a polícia possa reivindicar para si o triunfo. Outro aspecto é o prognóstico médio da vida dos líderes do grupo de bandidos sociais: 26 anos. Aos 30 teriam que se assentar, constituir família. É importante lembrar que Jesus foi crucificado entre dois bandidos, e se conta que um era o bom ladrão (bandido social) – e o outro era mau – venerado pela Igreja Católica como São Dimas e pela Igreja Ortodoxa como Rakh. Não deixa de ser um resíduo maniqueísta.
Jesus é um pacifista, viveu a incondicionalidade do amor em sua pujança. O entendimento hoje é de que Judas não o traiu, mas esperava reação disruptiva de Jesus, situação idêntica de Pedro ao desembainhar a espada (por que a espada?). Jesus já havia advertido para oferecer a outra face em caso de agressão.
As fontes históricas são escassas a esse respeito. Flávio Josefo, (37 d.C.) historiador e apologista judaico, faz referência a um incidente onde Tiago, irmão de Jesus, e alguns outros, foram acusados de transgressão à lei e entregues para serem apedrejados. Eusébio de Cesareia, (265/339 d.C.), bispo de Cesareia, considerado o primeiro historiador do Cristianismo, é mais detalhista sobre esse episódio, realçando que Tiago foi escolhido pelos apóstolos para o assento episcopal em Jerusalém.
Esses fatos são sugestivos para se compreender a aproximação de Jesus com o movimento campesinato-revolucionário.
Polêmica à parte, é para se considerar essa característica principal de Jesus. Ela se torna mais realizável em nós, tendo-o como guia e modelo, do que considerá-lo como Deus, pois é irrealizável, distante. Através do ativismo social (defina-se assim), realizaremos o reino dos Céus em nós e nos tornaremos deuses. Não foi ele que disse: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”?
Pensar Jesus em uma dimensão humana não é tarefa fácil, já que o inconsciente do cristão está marcado de forma indelével com a sua condição mito-teológica-dogmática, estando presente a partir de uma estratificação rígida, daí o mistério da fé.
Este é um ensaio espírita que não fere em nada a fé espírita. Para os seguidores do espiritismo, Jesus é um irmão de caminhada há anos-luz de evolução moral e que encarnou para ensinar uma nova forma de relacionamento entre os homens.
Fosse Jesus um bandido social, o que não pode deixar de ser considerado, a sociedade humana já teria encontrado caminho mais sedutor para a felicidade, mesmo não sendo deste mundo. Óbvio que não seríamos apascentados como rebanho de muares, seguidores de um mundo virtual, onde compartilharíamos a solidão e o vazio existencial.
O banditismo (concepção contemporânea) religioso-igrejeiro, sequestrou o Cristo, em nome de Jesus.
Mais de dois mil anos de cristianismo, desconfigurado e levianizado, que somente produziu conflitos e sangue, o que sobra de Jesus é um espectro de exploração da fé e de fiéis; sobra um cristianismo vazio, enquanto religião. Introjectá-lo a partir dos Evangelhos é deixa-lo de procurar nos templos religiosos e plasmá-lo com bandido (conceito étimo) social, calejando as mãos junto aos desafortunados da terra, para a construção de um mundo mais justo e igual.
Referências:
CESAREIA, Eusébio. História eclesiástica. Rio de Janeiro, 1999.
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. São Paulo, 2015.
JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. Rio de Janeiro, 1990.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo, 2000.
MADURO, Otto. Religião e luta de classes. Rio de Janeiro, 1981.
MEIER, John P. Um judeu marginal. Vol. 1. Rio de Janeiro, 1993.
Excelente.
ResponderExcluirOlá, Fernando!
ExcluirGratidão!
Jorge Luiz
Belo artigo, atual, realista e condizente com o Espiritismo, parabéns Jorge, pela lucidez e pela bela escrita!
ResponderExcluirOlá, Alexandre!
ExcluirGratidão pelas palavras de incentivo. Estamos juntos.
Jorge Luiz
Muito bom, Jorge,muito grata pelas lúcidas reflexões sobre uma visão mais consciente, realista e condizente com a postura de um ser justo e esclarecido como foi Jesus, já à época em q aqui esteve, palmilhando o solo terreno com os espoliados e aviltados de então - como ainda agora aos milhões.
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