Esta tentativa de fundação de uma moral
universal e meramente racionalista escapava da lógica das religiões. O cristianismo,
que até então conhecia uma vertente antiga – católica – e uma vertente nova –
protestante, reformada, não cabia nos estatutos da ciência e da filosofia
moderna. A Bíblia ia perdendo espaço, já não se encaixando mais na biblioteca
das verdades humanas. As misturas platônicas e aristotélicas da moral católica
também não tinham respaldo algum da ciência. A liberdade cristã apregoada pelos
protestantes, se libertava a razão individual de alguma subordinação heterônoma
à hierarquia do Vaticano, por sua vez ainda insistia na crença cega na palavra
das Escrituras.
Neste quadro, a moral universal apregoada pelo Iluminismo representou grande avanço. Não mais uma norma que venha de fora do indivíduo – nem por meio da hierarquia da Igreja mas também nem por meio de revelações ou sagradas escrituras, que de resto, sabia bem a filosofia iluminista, eram históricas e humanas – mas sim uma norma que viesse de dentro do indivíduo, de sua própria disposição e vontade.
Esta moral racionalista, autônoma e não heterônoma, é o que inspira por exemplo Kant na sua concepção de imperativos categóricos. Inspirou não só essa vertente kantiana, mas também, por exemplo, na tradição francesa, de uma crença na racionalidade humana e na harmonia da natureza e do universo que se pode ver, dentre outros, no próprio Voltaire e em Rousseau. Pestalozzi, o grande pedagogo do Iluminismo, aluno de Rousseau e professor de Kardec, passou a este grande parte da esperança posterior de Kardec numa moral universal racional e institucional.
Todas as quebras que os séculos XIX e XX impuseram ao modelo iluminista de uma moral racional e universal não quebram, no entanto, o caráter asséptico do Iluminismo e do século das Luzes: as atuais grandes incertezas que beiram o projeto de uma moral racional universal não reabilitam, de forma alguma, a moral passadista das religiões. Se é duvidoso dizer respeito de uma lei moral universal a todos os povos e tempos, nem por isso volta a estar legitimada a religião.
Os impasses no plano moral, na atualidade, encontram-se exatamente nesse contexto: vencida a etapa da crença religiosa, resta uma tentativa de moral da razão, empreendida a partir do século XVIII, mas cujos pressupostos são débeis. Vencer, por meios racionais e não teológicos, a própria ilusão da razão, é a tarefa de nossos tempos.
A fraternidade, este último lema da bandeira dos iluministas franceses, parece ter entrado quase a contrabando nas revoluções daquele tempo, e até hoje é problema insolúvel para a filosofia. Lembra os incensos dos religiosíssimos passados, foi tema de moralismos, e, mal foi desapropriada do campo da religião para o da razão, daí foi despejada por este novo senhorio.
Por ter sido a fraternidade abandonada pela filosofia contemporânea, não parece que os debates de nosso tempo sejam debates morais, no sentido de uma moral racional, mesmo que exclua-se por antecipação as moralidades religiosas e fanáticas. Até o avanço kantiano e o neo-kantiana nos séculos XIX, já com Hegel ou Marx, fez da moral um problema de compreensão materialista. O século XX, seja em qual ramo for – psicanálise, filosofia, linguística – não há de considerar o problema da moral como um problema só individual ou então como um problema a priori da razão humana.
É preciso reconhecer que a maior parte da filosofia destes tempos contemporâneos tem passado ao largo do problema moral, ético, fazendo parecer, por causa disso, que a questão moral só conheceu uma vertente totalmente ultrapassada, a religiosa, e uma praticamente ultrapassada, a individualista racionalista iluminista. No entanto, embora fora da moda, ainda se arrasta para os tempos do marxismo, do existencialismo, da virada linguística da filosofia, o problema ético da humanidade.
Fonte: Cristianismo Libertador, Alysson L. Mascaro, editora Comenius.
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