quarta-feira, 19 de junho de 2024

O ABORTO COMO QUESTÃO DE FÉ

 

Por Jorge Luiz

           A questão n.º 344, de O Livro dos Espíritos, afirma que o Espírito, como ser preexistente, une-se ao corpo no momento da concepção, mas não se completa senão no momento do nascimento. O grito, dizem os Espíritos, que então escapa de seus lábios, anuncia que a criança entrou para o número dos vivos e dos servos de Deus. Na questão n.º 358, os Espíritos são enfáticos: “Há crime sempre que transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá crime sempre que tirar a vida de uma criança antes do seu nascimento, pois impede uma alma de passar pelas provas a que serviria de instrumento o corpo que se estava formando.” Na questão seguinte, os Espíritos acrescentam que na hipótese em que a gestação ponha em risco a vida da mãe, sim, o aborto é admissível, considerando que: “Preferível é que se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.

            A psicologia pré-natal propicia conhecimentos que atestam a importância das condições ambientais favoráveis, principalmente, na relação mãe e bebê em todo o período gestacional. Joanna Wilheim, psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, atesta que essas condições se dão em três níveis: a do comportamento, a da fisiologia e a da via empática. O uso de quaisquer substâncias ingeridas, como álcool, fumo e drogas, afeta nocivamente o bebê. Diz Wilheim: “as perturbações emocionais maternas que nela provocam alterações neuro-hormonais, ou em sua pressão arterial, também irão repercutir sobre o estado neurofisiológico do feto, ou seja, seu estado emocional.”

            Wilheim, citando Edeltrud Meistermann-Seeger, no prefácio da sua obra A Caminho do Nascimento, diz: “A forma de amor dos pais e seu modelo de tensão e solução marcam os sonhos de cada ser humano. (...) sonhos podem trazer novamente esta constelação à tona, pois o sonhador estava presente no momento do encontro de seus pais na procriação, todos participaram do encontro e voltaram a participar dele durante a sua vida pré-natal.”

            Os avanços da ciência já são suficientes para a comprovação acerca da imortalidade da alma e da reencarnação, e, sobejamente, ratificam os postulados espíritas.

            As consequências espirituais do aborto são diversas. Para o Espírito abortado, é uma existência nula que terá a recomeçar. (Q. 357). As mulheres enfrentam consequências psíquicas (depressão, remorso, psicose grave), físicas (frigidez sexual e esterilidade da mulher), espirituais (obsessão, problemas perispirituais). Para o homem, seja estuprador ou não, passa também por consequências espirituais que se reportarão na vida seguinte.

            Roger Woolger (1944-2011), psicólogo junguiano inglês, através do poder terapêutico de regressão a vidas passas, relata vários casos clínicos de estupros e abortos ocorridos em vidas passadas que se refletem no presente com elevado grau de sofisticação moral e psicológica no qual é preciso considerável habilidade e paciência para deslindá-las (...).” Woolger revela que os laços que prendem os atores dessas tramas se replicam por várias encarnações.

            Não sobram dúvidas a respeito da perspectiva do aborto na visão do Espiritismo, obviamente, essa admissibilidade passa pela preexistência do Ser, considerando-se a imortalidade da alma e as vidas sucessivas do Espírito, presentes os avanços das ciências, o que ratifica a fé espírita como fé raciocinada, a qual enfrenta a razão em todas as épocas da Humanidade.

            Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2022, ocorreram no Brasil 73.024 estupros. A maioria das vítimas é menina: de cada caso, 7 foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Há uma subnotificação, segundo o mesmo anuário, pois estima-se que o número de casos de estupro no Brasil é da ordem de 822 mil, sendo que 6 de cada 10 vítimas são vulneráveis, com idade de 0 a 13 anos, vítimas de familiares ou conhecidos.

            A gravidez na adolescência já é um problema de saúde pública mundial especialmente relevante nos países em desenvolvimento – já que 95% dos partos adolescentes ocorrem nesses países – devido ao número crescente de jovens despreparados para a maternidade. São graves os próprios problemas que geram no contexto da família, já para os adolescentes, especialmente do sexo feminino, os prejuízos são mais sérios pela própria imaturidade dessas meninas. Quando se considera as gravidezes pelo estupro, essas implicações são muito mais severas.

            O projeto de Lei 1904/2024, de forma açodada no Parlamento brasileiro, não discute a descriminalização do aborto, mas sim a criminalização das vítimas – mulheres e meninas – e dos médicos. Para um País com desigualdade social profunda, por falta de acesso à moradia, à educação, com baixos salários, concentração de terra e renda, até pelo próprio processo de colonização e escravidão, isso é de um simplismo oportunista.

            O ponto principal nesse questionamento é que ele tem em sua gênese o fundamentalismo religioso, expresso em seu autor que é o deputado Sóstenes Cavalcante, pastor evangélico, teólogo e político brasileiro filiado ao Partido Liberal, um dos integrantes da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no Congresso Nacional, aliás, frente que só defende pautas de hábitos e costumes, de preferência, apoiadas no Antigo Testamento. A entrevista do deputado Cezinha (PSD-SP), que é pastor evangélico e contestou os dados estatísticos oriundos de pesquisas da jornalista que o entrevistava, respondeu que a “pesquisa dele é da Bíblia, da igreja evangélica.”

            Como o exposto até aqui é de enorme transversalidade de pensares e têm de ter uma agenda da sociedade para aprofundar essas decisões, não pode ser tratada de forma simplista como a que aborda esse projeto. Criminalizar as vítimas de um ato hediondo como o estupro é desumano; fundamentar o projeto na Bíblia é um delírio, ou mesmo insanidade, por isso fiz questão de, na qualificação dos deputados, inserir a condição de pastor. Fanatismo religioso, negacionismo, obscurantismo e  perversidade tomaram conta do Brasil. O pior está  por vir.

            Allan Kardec elabora, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, um verdadeiro tratado da fé; no seu capítulo XIX, ele o classifica em: fé religiosa, humana e divina. A que irá nos interessar é a religiosa, que ele classifica como raciocinada e cega.

            Sobre a fé cega, diz Allan Kardec: “A fé cega nada examina, aceitando sem controle o falso e o verdadeiro, e a cada passo se choca com a evidência da razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. Kardec reforça seu ponto de vista: “A fé necessita de uma base, e essa base é a perfeita compreensão daquilo em que se deve crer. Para crer, não basta ver, é necessário sobretudo compreender. A fé cega não é mais deste século (XIX).”

            O pentecostalismo de nossos dias não está no século XXI. É pautado no Antigo Testamento, e de forma pontual, naquilo que é claramente desaconselhado por Paulo, o apóstolo dos Gentios, que é a linguagem dos anjos, (dons de línguas) expresso naquele maravilhoso poema de Amor, ao escrever aos Coríntios (13:1 e 13), que sugiro a leitura integral: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.(...). Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.” Recentemente, postei um artigo sobre a glossolalia, os dons de línguas disseminados pelos pentecostalistas.

            Os dons de línguas (glossolalia), apregoando que as palavras desconexas proferidas pelo crente, “sob transe”, são a “presença do Espírito Santo”, para os pentecostais, é o fundamento maior para o encaminhamento a fim de que o profitente acesse a condição de pastor, em sua maioria. A partir daí o que se tem é uma interpretação enviesada da Bíblia, provocando o que os pentecostais denominam de “abusos espirituais”. Esse cenário é assustador diante da FPE e suas pautas fundamentadas em uma fé cega, tirana, obscurantista, que tem como pano de fundo um projeto de poder.

            Depois da fé, que se desencaminhou, sobram para os brasileiros a esperança e o amor (caridade), segundo Paulo.  A esperança brotou com a mobilização das mulheres que foram às ruas, em várias capitais do Brasil, protestar contra a criminalização das vítimas de estupro e dos profissionais de saúde praticantes de aborto, após 22 semanas de gestação, pautada pelo PL 1904.

            O Brasil chegou a um ponto sem retorno no quesito fanatismo religioso. Atrás deste fanatismo está um projeto de poder defendido por certas lideranças religiosas que, se concretizado, levará a sociedade brasileira a dias de trevas.

            Mais importante que a e a esperança é o amor, segundo Paulo; que ele (o amor) possa inspirar a sociedade brasileira a construir uma Nação crítica e que tenha um Parlamento que seja realmente a voz do povo e não as vozes da Bíblia, da bala, do agro e da indústria.

 

 

Referências:

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

_____________. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: Lake, 2007.

WILHEIM, Joanna. O que é psicologia pré-natal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

_____________. A caminho do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

WOOLGER, Roger. As várias vidas da alma. São Paulo: Cultrix, 1987.

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