sábado, 17 de agosto de 2024

A BÍBLIA: SACRALIZADA POR QUEM?

 

Por Jorge Luiz

            É sempre positivo adotarmos o apóstolo Paulo como divisor das consideradas antiga e nova alianças, ou seja, o que passou a ser conhecido como Antigo (A.T.) e Novo Testamento (N.T). Escreve Paulo aos Colossenses, 2:28: “Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo.”

            Paulo é didático e coloca a antiga aliança como tradição e fomentadora dos princípios elementares da sociedade pagã, à época, devendo ser abandonados, para que sejam observados  os princípios da Boa Nova, ensinados pelo Nazareno.

            O lado estranho é que Paulo não reconhece esses fundamentos como ditos por Deus, caso contrário, não teria feito essas recomendações. Ora, em outro momento, ele é mais enfático quando se dirige à comunidade de Coríntios, I Cor., 3:18-19): “Ninguém se engane a si mesmo. Se alguém dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se louco para se tornar sábio. Pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus.(...).”

Quanto às orientações às comunidades de Colosso e Coríntios, não tem como saber se foram observadas, todavia, é fácil de se constatar que não havia sacralidade no que permeava as experiências religiosas.

            A questão da divindade no contexto da tradição é que tanto Deus e o universo material são reais, mas, no entanto, separados. A Física Quântica, entretanto, segundo Amit Goswami, físico e escritor indiano-americano, é “a nova ciência que nos diz que o Universo, Deus e todos nós, seres humanos, não estamos separados: a separação entre Deus, o mundo e nós é uma aparência, um epifenômeno.” Nas palavras de Gowswami e sob apoio na Física Quântica, conclui-se que Deus (como suas leis) está em nossa consciência, questão n.º 621, em O Livro dos Espíritos (L.E.).

            Goswami faz  um apelo aos cristãos de coração jovial ao associar os ensinamentos de Jesus à Física Quântica, quando indagado se há uma realidade de identidade entre os dois. Ele responde: “fundamentalmente, são os mesmos. O Deus de Jesus e a consciência-Deus quântica são a mesma coisa.” Jesus diz, “como um eco com a física quântica, que a carne surgiu por causa do espírito e não o contrário.”

            Os Espíritos, na questão n.º 22”a” (L.E.), ensinam que a “matéria é o liame que escraviza o espírito; é o instrumento que ele usa, e sobre o qual, ao mesmo tempo, exerce a sua ação.” Na questão n. 27 (L.E.), os Espíritos apresentam a trindade universal – Deus, Espírito e Matéria, cuja dinâmica se atrela ao fluido cósmico universal (FCU). O Espiritismo, a Física Quântica e Paulo solapam o A.T. como Escrituras Sagradas.

                 A TORÁ

            Karen Armstrong, autora especialista em temas de religião, em particular sobre judaísmo, cristianismo e islamismo, afirma que após deixarem Jerusalém para o exílio babilônico, um jovem sacerdote, chamado Ezequiel, teve uma visão aterrorizante que, intuitivamente, sentiu que estava na presença de Jeová, que recebeu de uma mão estendida um rolo que estava inscrito com “lamentações, lamúrias e gemidos”. “Come este rolo”, que uma voz divina te ordenou, “alimenta-te e fica satisfeito com o rolo que estou te dando.” Quando o forçou garganta abaixo, aceitando a dor e a desgraça do seu exílio, Ezequiel descobriu que “seu gosto era doce como mel.” (Ez, 3:1-3).

Considerado profeta pelo Catolicismo, a sua mensagem muitas vezes se mostra aflitiva e incoerente. A ânsia pelo templo perdido pelos israelitas continuava e acreditavam que receberiam do “seu” Deus uma Escritura Sagrada. Apesar disso, os escribas carregavam consigo muitos escritos, mas não os consideravam sacrossantos. Lembrando que toda a tradição dos povos, à época, era oral.

Por volta do ano de 1000 a.C., os israelitas, entendendo que o sistema tribal não era mais adequado, formaram duas monarquias na região montanhosa da Cananeia: o reino de Judá do Sul, e o maior e mais próspero, o reino de Israel do Norte. No século VII, os estudiosos construíram uma narrativa coerente e atribuíram ao reino de Judá, o Deus denominado de “J”, “Jeová”, ao passo que o de Israel ficou conhecido como “E”, de “Eloim”. Mais tarde, diz Armstrong, as narrativas distintas foram combinadas por um editor para formar a história que constituiria a espinha dorsal da Bíblia hebraica.

As pessoas sempre se sentiram livres para alterarem os Escritos mais antigos, mas havia um cânone de livros sagrados prescritos.

Perto do final de 539 a.C., um grupo de exilados resolveu retornar a Jerusalém levando consigo nove rolos que traçavam a história de seu povo desde a criação até a deportação: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis, além de antologias dos oráculos e profetas e um livro de hinos, que incluía novos salmos compostos na Babilônia. Ela ainda não estava completa, mas os exilados tinham posse do esqueleto da Bíblia hebraica, segundo Armstrong. Conhecida como Lei da Pureza, a Torá é constituída dos seguintes livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio

            A ESCRITURA

                        Aqui se fixa o ponto essencial daquilo que viria a se tornar a “Escritura Sagrada”. Está no livro de Neemias, quando, a pedido do rei persa, por volta do ano 398 a.C., enviou Esdras, seu ministro para assuntos judaicos, a Jerusalém com a incumbência de impingir a Torá de Moisés como lei da terra. Profundo conhecedor da Torá, Esdras provavelmente formulara um modus vivendi satisfatório entre a lei mosaica e a jurisprudência persa. Aqui, as Escrituras passaram a constituir a “palavra de Deus” (Nm., 5-6): “Esdras ficou ali no estrado acima do povo, e todos olhavam para ele. Quando abriu o livro, todos se levantaram, e Esdras disse: “Louvem o Senhor, o grande Deus!” Todo o povo levantou os braços e respondeu: “Amém! Amém!” Aí se ajoelharam e, com o rosto encostado na terra, adoraram a Deus, o Senhor.”

             O ESPIRITISMO E A BÍBLIA

            Allan Kardec, nas considerações sobre a Bíblia – questão n.º 59 de O Livro dos Espíritos, afirma que a Bíblia “não é um erro, mas os homens se enganam na sua interpretação.”

            O mesmo Kardec, no qual os fatos e os princípios sobre os quais ele repousa se perdem na noite dos tempos, demonstra que a mediunidade é uma condição natural da espécie humana, já, pois seus traços são encontrados em todas as crenças e todos os povos, em todas as religiões, na maioria dos escritores sacros e profanos. Kardec acrescenta: o Espiritismo não os descobriu nem os inventou. Se as almas ou Espíritos podem manifestar-se aos vivos, é que isso está na natureza e, portanto, devem tê-lo feito desde os tempos imemoriais; também em todos os tempos e em toda parte encontra-se a prova dessas manifestações, que abundam, sobretudo, nos relatos bíblicos.”

            A distinção dos fatos espíritas da Doutrina Espírita é de fundamental importância para entender o que Kardec afirma. A partir das suas pesquisas diante dos fatos espíritas, com método científico, desenvolveu-se a sistematização da doutrina dos Espíritos.

            O professor e filósofo Herculano Pires, (1914-1979), em uma das suas principais obras que é o Espírito e o Tempo, torna compreensível a afirmação de Kardec, quando, apoiado no “método cultural” de antropólogos ingleses, que esquematizou os horizontes culturais nos quais o desenvolvimento humano pode ser analisado, ele idealiza a fase pré-histórica do Espiritismo como segue: horizonte tribal, agrícola, civilizado, profético e espiritual. Até o “horizonte profético” segue o “método cultural”. Já o “horizonte espiritual” é uma formulação nova exigida pelo Espiritismo, construído pela mediunidade.

            O que irá interessar para uma compreensão daquilo que se convencionou ler-se na Bíblia que Deus falou com o homem, é o “horizonte profético” ou “mediunismo bíblico”.

            No horizonte profético ocorre pela primeira vez a compreensão do monoteísmo quando o povo hebreu começa a admitir um deus-familiar de Abraão, Isaac e Jacó. A comunicação, que antes era realizada através da pitonisa através de palavras desconexas, agora passa a ser feita pelo “profeta hebreu, cheio de dignidade pessoal da sua missão divina, que não temia apostrofar os poderosos do tempo.” Continua Herculano: “A individualização da ideia de Deus, o conceito de um Ser Supremo, decorre da própria individualização humana.” O profeta se apresenta como um indivíduo em três dimensões: social, mediúnico e espiritual.

            Para os espíritas fica compreensível que as comunicações realizadas por aqueles chamados de profetas são as mesmas hoje realizadas pelos que Kardec denominou médiuns, que são os intermediários entre os dois mundos – físico e extrafísico.

Seria mesmo de se considerar Deus inimputável, diante de uma grandeza do Universo, formado de bilhões e bilhões de galáxias variadas de formas e tamanhos, revelar seus ensinamentos em um minúsculo ponto dessa grandeza, a um povo rude, cujos escritos se transformaram em letra morta e foram submetidos a todo tipo de adulteração, interpolação, ajustando aos conceitos das religiões através dos tempos, conflitando com o que Jesus afirmou: “Sois deuses!”¹; “Vós sois o sal da terra”²!; “Vós sois a luz do mundo”³.

            O que é mais surpreendente em todo esse cenário, segundo Armstrong, é que a interpretação exclusivamente literal da Bíblia, como a que se constata nos dias atuais pelos evangélicos, é coisa recente. Ela revela que durante séculos os judeus e cristãos apreciaram uma exegese extremamente alegórica e inventiva, insistindo na leitura inteiramente literal da Bíblia, a qual não era possível nem desejável.

            O que se pode concluir é que o medo imposto por Esdras, levou o povo a ter desespero e chorar, como está escrito em Neemias, 8:9 - “e por isso vocês não devem se lamentar nem chorar”, ainda persiste. Os líderes religiosos de hoje insistem que a Bíblia seja “sagrada” e é a “palavra de Deus”. Não foi Deus que a consagrou, e não teria motivo para isso, e sim os interesses de religiosos ao longo do tempo.

            O poeta e teólogo sufi persa Rumi (1207-1273) ensina que: “a todo momento, o mundo e nós somos renovados. No entanto, não temos consciência desta eterna renovação.”

            Deus está em nós e porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração.” (At, 17:28).

           

Referências:

ARMSTRONG, Karen. A Bíblia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

GOWSWAMI, Amit. Deus não está morto. São Paulo: Aleph, 2008.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2009.

_____________. Revista espírita – jan/1862. Brasília: Feb, 2004.

PIRES, J. Herculano. O espírito e o tempo. Brasília: Edicel, 1991.

 

¹ João, 10:34;

² Mateus, 5:13;

³ Mateus, 5:14.

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