quinta-feira, 10 de outubro de 2024

MORTE E APEGO: ESTÁGIOS DA EVOLUÇÃO

 

Por Jorge Luiz

 

“Se vida é, da alma, a escravidão que a humilha,/Treva que envolve a estrada que palmilha;/Se morte é a mutação de sua sorte/E a volta sua, livre, à luz perdida/Por que esse apego que se tem à vida?/Por que esse medo que se tem da morte?”

            Os versos acima foram extraídos do soneto Eterno Enigma, de autoria de Índio do Prado, que confronta de forma racional a realidade dos fenômenos vida e morte ante o ser. Não há fonte bibliográfica que comprove a sua origem ou não, mediúnica, pelo menos, não consegui encontrar. O soneto foi musicado por Tarcísio Lima e gravado pelo Grupo Ame, aqui de Fortaleza (CE).

            O soneto apresenta o retrato fidedigno do enfrentamento e visão da morte no comezinho das nossas vidas. Não se pode perder de vista que em nossas vidas de relações somos submetidos a ritos e rituais que sofrem interditos e imprevistos, como se chegar atrasado ou adiantado a um compromisso; ao trabalho; deixar de embarcar em uma viagem seja em transportes rodoviários ou aéreos. Isso é o cotidiano.

            Interessante é que quando ocorre uma tragédia coletiva, como a das Torres Gêmeas, no 11 de setembro de 2001, ou mesmo no recente acidente aéreo da empresa VoePass, esses imprevistos são sempre requisitados. Quando se “escapa” da desencarnação, esses fatos são considerados uma ação divina, um “livramento”, o que, forçosamente, leva-se a considerar que os que desencarnaram foram condenados por Deus à sentença de morte. Na realidade, inconscientemente, nessas expressões comuns nos acidentes, há a sensação do desejo do indivíduo em vencer a morte e tornar-se imortal no corpo físico.

            A morte, que antes era algo muito restrito aos amigos e familiares, agora é compartilhada socialmente, e até espetacularizada pela mídia e se elabora uma catarse perante a dor alheia, e o que se torna necessário negá-la como experiência cotidiana. São aspectos reforçadores desse medo, pois na morte, apresenta-se a nossa miserável finitude. “A ideia da morte é rechaçada veementemente pelo homem moderno, uma vez que está na contramão dos avanços civilizatórios, tornando-se um impedimento para a ideia humana onipotente de que podemos “dominar” o mundo com nossa racionalidade.” (Franco, 2010).

            Allan Kardec, comentando a questão n.º 738 “b”, em O Livro dos Espíritos, assim se expressa:Venha por um flagelo a morte, ou por uma causa comum, ninguém deixa por isso de morrer, desde que haja soado a hora da partida. A única diferença, em caso de flagelo, é que maior número parte ao mesmo tempo. Se, pelo pensamento, pudéssemos elevar-nos de maneira a dominar a Humanidade e abrangê-la em seu conjunto, esses tão terríveis flagelos não nos pareceriam mais do que passageiras tempestades no destino do mundo. (Kardec, 2000).

            Só existem dois determinismos em nossas vidas: nascimento e morte.

         Kardec, dissertando sobre o medo da morte, pontua que “apegando-se ao exterior o homem só vê a vida do corpo, quando a vida real é da alma. O corpo estando privado de vida, tudo lhe parece perdido e ele se desespera. Se, em lugar de concentrar o seu pensamento nas vestes exteriores, ele o dirigisse para a verdadeira fonte da vida, para a alma, ser real que sobrevive a tudo, lamentaria menos o corpo, fonte de todas as misérias da vida.” (Kardec, 2004).

            O psicólogo John Bowlbi, com base em conceitos psicanalíticos, desenvolveu a Teoria do Apego, que segundo ele, ao nascermos, buscamos imediatamente algum vínculo para garantir a sobrevivência. O comportamento foi verificado na relação de algumas espécies de macacos. A teoria desenvolvida serve para nossas relações na fase adulta, e é nela que me apoio para teorizar, que é esse apego o gerador do medo que temos da morte, diante da perda dessa segurança dos laços afetivos gravados. Ainda teorizando, considero que a morte, na compreensão dos renascimentos do Espírito, é estágio evolutivo à medida que se desapega dos afetos e das coisas. “O amor por esta ou aquela pessoa chama-se avaritia, que não é o desejo de acumular ou a repugnância em gastar, como exprime nossa palavra avareza. É a paixão ávida pela vida, tanto por seres como por coisas, e mesmo por seres que hoje acreditamos merecerem um apego ilimitado, mas que passavam então por aquilo que fazia desviar de Deus”. (Ariès, 1977). Na relação familiar, simbolizada pelo apego à mãe, é que ocorre a transição do apego ao amor condicionado, em direção ao amor como requinte dos sentimentos, que interromperá os ciclos dos renascimentos, porquanto, da morte. O apego, portanto, é remanescente instintivo que trazemos do processo de individualização do princípio inteligente, na fase animal, mais precisamente, em algumas espécies de símios (Rhesus). Quem sabe, a morte não seja uma “hipótese" para o desapego!

            Mudando completamente a forma de encarar a vida e a morte, o Espiritismo espera que os espíritas não temam a morte. A vida futura é real e não uma abstração. A mediunidade consolida o intercâmbio entre os dois mundos, cujos aspectos que os envolvem já são admitidos pela ciência.

“A dúvida sobre o futuro já não tendo mais lugar, a preocupação com a morte deixa de ter razão. Esperamo-la tranquilamente, como uma libertação, como a porta da vida e não como a do nada”. (Kardec, 2004)

            A compreensão espírita da morte, presentes os renascimentos como desdobramentos das existências pretéritas, longe de ferir a suscetibilidade dos que não partilham dessas convicções, mostra que a desencarnação constitui fenômeno natural onde se reconhece a dor da saudade, a tristeza diante da partida do ente que retornou à Pátria Espiritual, não o transformando em sofrimento mórbido, mas material provacional que se deve sublimar pelo amor, ante a ausência física e as implicações dela decorrentes.

 

Referências:

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva, 1977.

FRANCO, Clarissa de. A cara da morte. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

_____________. O céu e o inferno. São Paulo: Lake, 2004.

 

 

 

2 comentários:

  1. Leonardo Ferreira Pinto13 de outubro de 2024 às 19:43

    Brilhante artigo Jorge. Como sempre

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  2. A morte, como oposto a vida, é uma questão fundamental para os que estudam o Espiritismo. Não podemos viver em constantes comunicações com os espíritos e acreditar que a morte é o fim de tudo. Outra questão que precisam nos concentrar é a do cotidiano. Felizes são as culturas que reverenciam seus antepassados, pois não possuem tempo para sofrer perdas. Parabéns pelo texto Jorge Luiz

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