Por Dora Incontri (*)
Tenho uma tese que ainda vou desenvolver
melhor num livro ou em alguns artigos mais profundos: é a de que corremos o
risco de mergulhar numa nova Idade Média, claro, diferente da que foi. Mas há
sinais fortes e semelhantes à chamada Alta Idade Média que vai do século V até
mais ou menos o ano mil, período da desagregação do Império Romano e do
retrocesso da cultura, da civilização… Depois, a Baixa Idade Média não pode
mais ser considerada como um período de trevas, pois houve o nascimento das
Universidades, a retomada gradativa das cidades e do comércio, as catedrais
góticas, as línguas europeias, nascentes em poesia… e assim por diante.
O que indica esse risco de novo mergulho
medieval? A onda fundamentalista das religiões, deflagrando irracionalidade e
fanatismo; a desagregação da linguagem, da música, da arte em geral; o
desaparecimento da infância (veja-se o livro de Philippe Ariès, História Social
da Criança e da Família, demonstrando que na Idade Média, as crianças eram
adultas em miniatura e não eram vistas e tratadas como crianças, que é o que
está acontecendo hoje, quando a mídia e a propaganda fazem da criança um
pequeno, sensualizado e obeso consumidor!). Outro sinal de retrocesso é o
brotar do misticismo fácil, das seitas irracionais e de uma espiritualidade
light, indicando falta de consistência e conhecimento filosófico, podendo nos
levar a superstições já cientificamente superadas.
As circunstâncias são outras, as
características são outras, mas estamos caminhando a passos largos para o
eclipse da cultura, da razão, das conquistas civilizatórias dos últimos
séculos. É verdade que um pouco disso pode ser decorrência de um processo de
resistência e desagrado com a civilização predatória, instalada pelo
capitalismo. Mas o que se observa em grande escala (e não é só no Brasil, mas
no mundo todo) é um recrudescimento da ignorância, um analfabetismo filosófico,
literário, político, espiritual. A mediocridade está tomando conta.
Um dos sinais evidentes que observo
diariamente na internet é a circulação crescente de frases soltas, de
powerpoints coloridos, ralos e de autoajuda brega, de citações – que revelam
uma pseudocultura: superficial, falsa e emprestada. Fico impressionada de ver
quanta gente produz e reproduz fartamente frases que são atribuídas a Gandhi,
Platão, Pitágoras, Confúcio, Buda, Dalai Lama, Clarice Lispector, Carlos
Drummond, Saramago… e assim vai. Ou seja, líderes espirituais antigos e
contemporâneos, filósofos, literatos – todos originais, inteligentes e que
deram suas contribuições importantes à história, são colocados no mesmo saco de
superficialidade e besteirol. Quase nenhuma das frases que lhes são atribuídas
na internet é deles mesmos!! Mas ninguém consulta um livro, ninguém lê uma obra
de fato sobre a vida ou sobre o pensamento de nenhum deles. Todo mundo repete
frases prontas, pobres, vazias, como papagaios, sem nenhum compromisso com os
autores, sem nenhum espírito crítico, sem nenhum cuidado de veracidade! Ou
seja, estamos criando uma pseudocultura virtual, que consiste em repetir
pensamentos ralos, que não formulamos e que atribuímos a pessoas inteligentes,
que nunca disseram tais coisas. Nem pensamos e nem recorremos a quem de fato
pensou, para aprendermos a pensar. Vamos papagaiando frivolidades. Isso vale
para o Facebook, para os e-mails, para os blogs, para as apresentações que
circulam por aí!
É tudo rápido, descartável, superficial,
vazio…
Outro aspecto que revela a decadência da
cultura é o aviltamento da linguagem, a degeneração dos idiomas (mais uma vez,
o fenômeno não é só no Brasil). Neste texto mesmo haverá muitas palavras que
algumas pessoas nunca viram, porque seu vocabulário é cada vez mais reduzido.
Isso vale principalmente para os mais jovens. A língua é um instrumento
delicado, harmonioso, embora vivo e dinâmico, que se estrutura a partir da
expressão de um povo. Mas antes, essa expressão era tomada por cima. Ou seja, a
linguagem culta, literária era o padrão a servir de medida. Hoje, dá-se o
contrário. Ninguém mais conhece o padrão culto. As palavras são truncadas nas
mensagens, nos e-mails, nos textos; a correção gramatical ausentou-se
completamente – mesmo professores de português escrevem errado, não sabem onde
colocar uma crase, cometem deselegâncias na concordância! O vocabulário está
cada vez mais restrito, pobre, desgastado. O que isso significa? Quanto menos
palavras temos para nos expressar e quanto menos regras conhecemos e seguimos
para estruturar a linguagem, mais nosso pensamento se torna pobre, por falta de
capacidade de expressão; mais se torna feio, desajeitado, por falta de correção
na escrita. Ou seja, estaremos caminhando para os grunhidos da caverna?
Conhecer as fontes do que se cita,
certificar-se da autoria de um texto, expressar-se bem, elegantemente, com um
vocabulário farto – tudo isso faz parte de uma educação bem cuidada. E o
problema é justamente esse. Não temos educação: temos manipulação da TV, dispersão
na internet, excesso de jogos e msn e falta de livros, falta de conversas,
falta de conhecimento em geral.
Mas nem tudo está perdido! Não penso que a
internet seja um lugar demoníaco, que deva ser abandonado. Há sites, blogs,
escritos inteligentes, bem feitos. Basta saber buscar, escolher, selecionar. Há
ciência, filosofia, livros inteiros antigos e contemporâneos, já disponíveis no
universo virtual. E é fantástico poder entrar numa biblioteca internacional e
achar livros do século XVIII, XIX, XX, e baixá-los gratuitamente… poder entrar
num museu virtual e ver obras de arte antigas… poder se associar a um site como
Classics Online e ter acesso a 40 mil músicas de todos os gêneros! Poder
folhear pela manhã no I Phone, jornais do mundo inteiro!
Por outro lado, poder escrever um poema, um
bom texto, uma crônica e no mesmo instante colocá-los à disposição de milhares
de pessoas, num blog, num site, divulgando no Facebook, no Twiter…
Os recursos tecnológicos são fantásticos, as
possibilidades são infinitas! Nós é que temos de ter cuidado para não
mediocrizá-los, não torná-los uma distração tola e às vezes viciante!
Podemos e devemos fazer conscientemente nossa
resistência cultural e só divulgar coisas realmente consistentes, procurando
também fazermos algo pessoal, original e não apenas copiar o que outros dizem
que alguém disse! E mais do que tudo, não devemos abandonar os livros, porque
eles são ainda (embora nem sempre) a fonte da cultura mais profunda e mais
saudável a nosso dispor.
(*) Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e
escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia,
Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e
pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP.
Belíssimo texto da prof. Dora Incontri. Sua análise é objetiva e certeira. É de fundamental importância que adotemos postura de vigilância e resistência cultural ante o aviltamento dos valores da cultura e da linguagem que transitam no mundo virtual.
ResponderExcluirAnálise inteligente e muito bem pontuada, o que não é novidade, quando se trata da dedicada espírita que assina o texto. Concordo plenamente e me sinto representado. E aproveito para parabenizá-la, Dora, por seus livros didáticos, que vêm abrindo fronteiras e conquistando leitores. Refiro-me à série TODOS OS JEITOS DE CRER, parceria sua com Alessandro Bigheto.
ResponderExcluirEVERALDO COSTA MAPURUNGA
Viçosa do Ceará - Ceará
Um excelente texto para reflexão! Parabéns!!!
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