Por Dora Incontri (*)
Todas as vezes que testemunho ou sofro alguma
ingratidão, lembro-me da passagem do Evangelho – aquela em que Jesus curou os
dez leprosos e só um voltou para agradecer. E ele perguntou: onde estão os
outros nove? Essa história nos indica que a ingratidão é algo comum,
majoritário, no comportamento humano. Estatisticamente, 90% daqueles que Jesus
curou, não mostraram gratidão.
Observando esse fenômeno, proponho-me aqui a
examinar as motivações psicológicas da ingratidão.
Quando alguém está precisando de ajuda – seja
porque está doente, com dificuldades financeiras, solitário, deprimido, em
qualquer situação de crise ou mesmo que essa crise seja um status permanente,
desde a infância – é um momento, uma fase, ou até uma existência inteira, até
então, de fragilidade e de carência. Para o orgulho humano, precisar do outro,
tem algo de humilhante – ainda que aquele que ajude (como o caso incontestável
de Jesus) esteja ajudando com total desprendimento e sem nenhum desejo de recompensa.
Obviamente que este estado de desprendimento e desapego dos resultados é algo
bastante raro no mundo, tão raro quanto a gratidão.
Ora, quando a pessoa que recebeu a ajuda,
seja em forma de dinheiro, apoio, solidariedade, incentivo, colo… – se vê numa
situação melhor, de maior segurança, de retomada de sua autonomia, até de
euforia, porque conquistou posições e patamares antes impensáveis (muitas vezes
com o próprio esforço sim, mas a partir da ajuda recebida) – então, a pessoa
não quer mais se lembrar daquele instante de fragilidade, quer negar para si
mesma que precisou um dia de apoio, quer atribuir todas as suas conquistas
apenas a si mesma, aos próprios méritos. Não quer dividir o sabor da vitória,
relembrando um momento em que estava “por baixo”. Então, nega o benfeitor,
esquece-o, até pode agredi-lo e eliminá-lo simbolicamente, porque é humilhante
para o seu status atual, fazer referências a um estado anterior de carência.
Então, faz aquilo que o ditado popular tão pitorescamente expressa: “cospe no
prato que comeu”.
A coisa se agrava mais quando existe uma
forte relação afetiva entre aquele que ajudou e aquele que foi ajudado – seja
este um filho, um irmão, um amigo íntimo, um parente distante ou próximo.
Porque então, a ajuda pode ter sido carregada de forte dose de afetividade,
preocupação com o outro, desejo profundo de felicidade e superação das
dificuldades do ser amado. Nesse caso, o ingrato precisa esquecer duplamente do
benfeitor – o benefício prestado e a afetividade entregue. E é então que a
ingratidão pode doer mais profundamente, porque se tratou não apenas de um
benefício, mas de uma entrega de si. Episódios assim também se encontram na
vida de Jesus, como a traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos
mais próximos, no momento da crucificação. No caso dos leprosos, Jesus não
tinha uma intimidade com eles. Com os discípulos, eram amigos queridos. Nessa
configuração, a pessoa não quer apenas esquecer do benfeitor, para não lembrar
de um momento de fragilidade, ela quer se desobrigar de qualquer retribuição
concreta ou afetiva com a pessoa que foi determinante para suas realizações,
superações e conquistas – sejam elas de ordem material, intelectual ou moral.
Quer se sentir livre de compromissos com quem ficou para trás, porque tais
compromissos, que implicariam muito mais do que simplesmente reconhecer o
benefício, mas também num cuidado com o outro (como o caso de pais, irmãos,
amigos), são uma quebra na fruição de suas conquistas. Por exemplo, o indivíduo
recebeu toda a formação dos pais, todo o empenho pelas suas realizações, todo o
carinho doado (claro, com os limites e defeitos possíveis de todas as relações
humanas) e quando ele se vê numa situação de bem-estar, conquista e euforia,
não deseja ver o estorvo da fragilidade alheia – agora no caso, dos pais –que
estarão por sua vez num momento de carência. Voltar atrás e olhar para os
benfeitores, amá-los, cuidar deles, ter compromissos, é turvar o momento de
segurança presente, é abrir brechas para o afeto fluir, no meio da vaidade das
conquistas.
Assim, podemos concluir que o que atrapalha a
gratidão em todos os casos é o orgulho – de não se admitir que se esteve já em
situação difícil – e o egoísmo – de não querer interromper o gosto da
conquista, com a preocupação, o cuidado e a dedicação ao outro.
Agora, analisemos toda a questão do ponto de
vista daquele que ajuda. Que motivações podem levar a pessoa a fazer um bem a
quem esteja em situação de carência ou precisão? São motivações sempre nobres,
puras e elevadas? Até que ponto podem também estar contaminadas de orgulho e
egoísmo? E pode essa possível contaminação na atitude do benfeitor provocar ou
reforçar a ingratidão?
O ideal de um ato moral – como também aponta
o Evangelho e a interpretação espírita da ética cristã – é o desinteresse. Esse
desinteresse deve ser financeiro, pessoal, afetivo. Ou seja, é preciso fazer o
bem, sem nada querer, esperar ou desejar de volta. A coisa porém não é tão
simples. Primeiro, porque ao fazer o bem, experimenta-se naturalmente um bem-estar
interno (hoje comprovado até através de pesquisas que mostram que dar, doar,
ajudar libera sensações agradáveis para quem faz). Então, ao fazermos o bem,
queremos nos sentir bem? Sem dúvida que sim! E isso eu chamaria – repetindo uma
definição que ouvi do meu terapeuta – de um egoísmo saudável. Afinal, Jesus
disse que deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos. Ou seja, todos os seres
humanos buscam prazer, felicidade, bem-estar e isso é natural. Ora, muito
melhor que esse bem-estar seja provocado por um fazer bem do que por um fazer
mal ou por qualquer tipo de vício autodestrutivo.
Apesar disso, considero que num nível mais
elevado de doação, o indivíduo dá apenas e somente pelo bem do outro, sem
pensar na própria felicidade. É certamente o caso de Jesus, ao morrer na cruz,
como oferecimento de um exemplo para a humanidade.
Mas a questão não fica nesse ponto. Quando
nos encontramos diante de alguém que está em situação de necessidade, os nossos
sentimentos de empatia e compaixão podem ser ativados e nos lançamos a uma ação
benéfica para o outro. Até aí, ótimo.
Mas podem surgir também sentimentos (às vezes inconscientes) de
superioridade e de prazer por estarmos numa posição de generosidade, de vaidade
por “sermos tão bons”! Então, o ato de ajuda carrega algo de humilhante para o
outro, sim. Porque podemos nos situar num patamar de cima, onde o outro que
recebe, se sente de fato esmagado pela nossa oferta. Se a pessoa não tiver
alternativa nesse momento, isso poderá depois gerar uma forte repulsa pelo
benfeitor. E tudo isso está muito bem descrito no Evangelho. O problema é que
bons impulsos podem ser manchados por esses sentimentos negativos – então há de
fato um bem praticado, houve um momento de solidariedade sincera, mas depois o
orgulho apareceu para estragar as coisas.
Outra forma de contaminar o gesto de ajuda
está na cobrança de retorno, que pode ser uma cobrança sutil ou explícita, pode
aparecer na forma de expectativa silenciosa ou de um “jogar na cara” ofensivo.
A forma não explícita gera mal-estar no beneficiário e a explícita provoca
justa revolta. Há inclusive pais e mães que praticam fartamente essa forma
explícita, humilhando filhos, por terem cumprido o que pais e mães devem fazer
– doarem-se inteiramente. Então, o ato do bem ou o amor doado estão claramente
aprisionados nas garras do egoísmo.
Essas manchas no ato de doar não eximem
aquele que recebe do sentimento de gratidão, sobretudo se há um vínculo amoroso
envolvido no processo; assim como a ingratidão não exime o benfeitor de continuar
fazendo o bem; porque é preciso compreender que estamos em processo de
aprendizagem evolutiva e ainda quando queremos praticar o certo e queremos
elevar nossos sentimentos, eles ainda se deixam macular por nossos atavismos
milenares. Há que se ter maturidade e compreensão mútua para entendermos as
nossas fraquezas e as do outro. Há também que se considerar que nossos papéis
de benfeitores e beneficiados se alternam no decorrer da vida. Todos temos
fases, momentos de fragilidade (basta lembrar de como chegamos e como partimos
no mundo). Todos temos oportunidade de ajudar alguém em outros momentos. Ora
somos necessariamente carentes, ora podemos ser generosos. Refletindo sobre
tudo isso, haverá mais oportunidades de superação e de caminharmos para formas
superiores de sentir e fazer.
Há porém algo mais sutil ainda, quando se
trata de um benefício e uma ingratidão entre dois seres que se amam
intensamente – e não posso deixar de imaginar que foi o que Jesus sentiu ao
perguntar pelos outros nove leprosos que não voltaram, que embora não tivessem
intimidade com Jesus, o Mestre não lhes era alheio em seu amor por todas as
criaturas. A sua pergunta revela que ele não ficou indiferente ao fato. É que
quando se pratica um bem ou muitos bens a um ser amado e a pessoa incorpora
esse bem em sua vida e depois rejeita asperamente o irmão, a mãe, o amigo que
lhe foi alicerce de ascensão e realização, o que se pode experimentar é uma
profunda dor pelo outro. Jesus lamenta a ingratidão dos leprosos, como se
entristece pela fraqueza de Judas e de Pedro. Mesmo se o nosso eu estiver já
desprendido de toda mágoa e suscetibilidade – o que requer obviamente um
trabalho bastante cuidadoso – podemos nos entristecer porque o ser amado está
agindo de maneira tão acintosa e ingrata, por ele mesmo. Esse sentimento será
entremeado de compaixão, sem falsa superioridade. Pode-se entretanto ainda
misturar tais impulsos, enquanto estamos a caminho: mágoa com compaixão,
tristeza pelo outro, com esperança de recompensa…
Enfim, tudo isso são aprendizados que nos
competem assumir em nossa jornada evolutiva. E, tinha Kardec razão ao dizer que
as duas únicas e maiores chagas da humanidade são o orgulho e o egoísmo.
Estejamos atentos a isso!
(*) jornalista, educadora e escritora. Suas
áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo.
Texto muito esclarecedor em relação ao sentimento de ingratidão por parte de quem o sofre , e ao orgulho por quem (ou porque) o exibe .
ResponderExcluirAline Loiola