O público que lotou o salão do centro de convenções do Andreas Hermes Akademie, em Bonn, compunha-se de alemães, em sua maioria. Como tem ocorrido nos eventos da AME-Internacional por toda a Europa, o público local já supera em muito o de imigrantes brasileiros. Nas palestras com aspecto científico, divulgação do ideal médico-espírita, uma palavra não era bem-vinda: religião.
Se a religiosidade do povo, no Brasil e nas Américas, manifesta-se nas
várias formas de expressão religiosa, com a multiplicidade de cultos, na
Europa, o materialismo tornou-se o senhor das mentes, as religiões tradicionais
perderam não apenas a supremacia, mas também se tornaram sinônimo de crendice e
motivo de repúdio pelos homens de ciências, letras e cultura.
Na prática médica, o materialismo apresenta-se por meio da valorização
da doença como soberana, em detrimento do doente subalterno ao sistema de
conhecimento médico, que lhe permite focar o ser apenas como aquele que carrega
um órgão, ou mais, que necessita de tratamento.
No modelo médico ocidental, que tem fundamentação baseada no modelo
biomédico, materialista, o homem perdeu sua integralidade; o médico tornou-se
míope; e é capaz de enxergar apenas uma parte, uma porção do todo que se
apresenta.
Detendo-se na porção que enxerga, deduz que o restante é secundário, que
o todo é o pouco que vê, que as manifestações que percebe decorrem das
alterações que detectou.
Inegável é a contribuição do modelo
biomédico para o avanço da Ciência Médica. Graças a essa concepção, epidemias
são facilmente detectadas e rapidamente vencidas. Reduziu-se o número de mortes
na infância e, por isso, ampliou-se a expectativa de vida. Em um texto de
enorme lucidez, o biólogo americano, Dr. Richard Lewontin (Lewontin,
R, The Triple Helix: Gene, Organism, and Enviroment, 2000, Harvard Press
International), critica o modelo
biomédico, que é reducionista, e prognostica sua morte por esgotamento, pois já
ofereceu o que poderia, mas já não é capaz de dar ao homem novos horizontes do
pensar, a começar pela definição do que é vida.
O modelo médico materialista, que lança seus últimos estertores, clama
por uma nova concepção do homem, uma visão que permita novos ganhos de
conhecimento. A proposta teórica de um modelo mais amplo em oposição ao modelo
tradicional foi lançada pelo Dr. George Engel, quando definiu o modelo
biopsicossocial (Engel, G. L.,
The Need for a New Medical Model: A Chalenge for Biomedicine, 1977, Science,
vol 196, number 4286, pag 129-136). O trabalho original e revolucionário de Engel foi a culminância de uma
vida dedicada a modificar a forma como a Medicina enxergava o homem. Em artigo
datado de 1960 e publicado na revista Psychosomatic Medicine, Dr. Engel questiona
se o Luto é uma doença (Is Grief a Disease? é o nome do artigo), definindo que
fatores psicológicos e sociais provocam doença e prescindem de uma alteração
bioquímica prévia. Alterações bioquímicas correspondendo a alterações orgânicas
constituem base para classificar uma doença, segundo o modelo biomédico
materialista.
Se o Dr. Engel desafia a Medicina demonstrando que desajustes
psicossociais provocam doença, o Dr. Herbert Benson, desde a década de 1960,
demonstrou o oposto, que comportamentos mentais positivos e práticas de
espiritualidade, como a ioga, podem curar doenças. Dr. Benson é diretor do
Instituto Benson-Henry do Massachusetts Medical Hospital.
O conceito biopsicossocial de Engel foi ampliado pela Dra. Dana King (King,
D. E., Faith, Spirituality, and Medicine: Toward the Making of the Healing
Practitioner, 2000, The Haworth Spiritual Press), com a percepção de que o homem é também um ser
espiritual, e complementado por Sulmasy, (Sulmasy, D. P, A
Biopsychosocial-Spiritual Model for the Care of Patients at the End of Life,
The Gerontologist, 2002, Vol. 42, Special Issue III, 24–33) que fez proposição antropológica da
dimensão espiritual do ser.
Os modelos de compreensão do homem que ampliam o modelo biomédico não
descartam seu papel, não desprezam o conhecimento gerado, apenas trazem novo
modo de enxergar; a correção da miopia materialista pelo uso das lentes que
permitem perceber que somos muito mais do que um amontoado de células e
processos enzimáticos.
Um ser que adoece não tem apenas tecidos, células, processos
bioquímico-hormonais alterados, ou danificados. A dimensão do adoecer envolve
outros níveis, como o social-familiar, que vai desde seu papel de alguém
engajado em um sistema produtivo, ao aspecto de membro de uma família e que se
relaciona socialmente. O aspecto psicológico do doente ante a doença, sua
reação ante o processo mórbido que o domina naquele momento, a influência
direta do psiquismo sobre os sistemas bioquímicos e a repercussão de seu estado
psicológico sobre o nível social, também deve preencher a nova visão do homem,
segundo a proposta de Engel.
A contribuição da dimensão espiritual, na visão dos autores que
propuseram adição ao modelo de Engel, apresenta-se de maneira notável no
processo do morrer. O homem é o único ser vivo que tem a capacidade da
transcendência e de pensar na morte e no morrer. Robert Salomon, filósofo
americano, definiu espiritualidade como toda ação que permite ao homem a
transcendência, independentemente de crença ou falta de crença, de religiosidade
ou de agnosticismo (Solomon, R. C., Espiritualidade para céticos: Paixão, verdade
cósmica e racionalidade no século XXII, 2003, Ed. Civilização Brasileira).
Em 1968, temporalmente ainda distantes das propostas revolucionárias que
foram iniciadas pelo artigo de Engel em 1977, mas sintonizados com as propostas
tanto dele quanto de Benson, um grupo de médicos espíritas paulistas recebeu a
incumbência de fundar uma associação médico-espírita. Quem formulou o convite
foi o Dr. Bezerra de Menezes, espírito, que apontava desde aquela época que a
empreitada tinha uma missão arrojada, ou seja, livrar a medicina do
materialismo reinante, oferecendo uma nova visão do homem. Nascia ali o modelo
médico-espírita.
O modelo médico-espírita não despreza os conhecimentos adquiridos com os
modelos conhecidos, mas não se detém na miopia e enxerga além da visão ampliada
por Engel, King e Sulmasy e é mais desafiador que a proposta de Benson. No
modelo de compreensão do homem, que é oferecido pelo Espiritismo e aplicado
diretamente na Medicina, o conceito de vida é eminentemente espiritual e não
pertinente a funções biológicas. Isso implica ampliar a percepção de que
nascimento e morte, fenômenos biológicos, são secundários e dependentes do
conceito de vida, fenômeno espiritual. O ser que se apresenta ao médico não é
um complexo biopsicossocioespiritual, mas um complexo fenomênico espiritual com
repercussões biopsicossociais.
O modelo médico-espírita permite perceber de modo diferente as leis
irracionais das doenças, que se manifestam a desagrado da falta de compreensão
do homem, leis essas que nem sempre são constantes, mas que se modificam a
depender do doente. Por ser o homem um fenômeno espiritual, é imperativo aos
fenômenos biológicos do nascimento e da morte, traz a linha de regência do
corpo no qual se manifesta, conforme experiências pregressas e necessidades
atuais que lhes são próprias, únicas, daí a multiplicidade de manifestações e
evolução das doenças crônicas.
Além do mais, consegue enxergar que o homem espiritual, sobrevivente à
morte, ainda é capaz de interferir nas esferas biológicas de outrem, promovendo
a cura ou provocando doenças, conforme leis de simpatia e afinidades
espirituais.
O salão do hotel em Bonn, como os vários salões europeus que receberam
eventos da AME-Internacional, ouviram experiências do modelo médico-espírita,
que preconiza o mais espiritual de todos os atos do homem na Terra: a prece.
Ansiosos por respostas além dos sufocantes questionamentos e anseios
materialistas, puderam se emocionar com o preito de gratidão a Deus, ao final
do evento, acendendo em muitos a chama viva de uma nova fé, a fé no homem
espiritual.
Esse é o papel da AME-Internacional, esse é o desafio: ser um dos braços
do Espiritismo na vitória contra o materialismo, por amor à Humanidade.
¹ AME - Associação Médico-Espírita Internacional.
Para quem não compareceu ao 21º ENESE o texto do Jorge Daher (GO) oferece uma pequena noção do que foi o evento. A abordagem da dor e o sofrimento (Por que sofremos?) sob a ótica espírita, contou ainda com a participação de Francisco Cajazeiras (CE), Ricardo Santos e Ligia Melo (AL).
ResponderExcluir