Para os que acham a árvore masoquista
Ontem, em nossa oficina de educação para a
vida e para a morte, com o tema A Criança diante da Morte, com Franklin Santana
Santos e eu, no Espaço Pampédia, houve uma discussão fecunda sobre um livro
famoso e belo: A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Editora Cosac Naify).
Bons livros infantis são assim: têm múltiplos alcances, significados, atingem
de 8 a 80 anos, porque falam de coisas essenciais e profundas. Houve intensa
discordância quanto à mensagem dessa história, sobre a qual já queria escrever
há muito.
Para situar o leitor que não leu (mas
recomendo ler), repasso aqui a sinopse do livro:
“’A árvore generosa’ traz o clássico de 1964
que conta a história do amor entre uma árvore e um menino. A árvore é a amiga
amorosa que dá tudo ao menino, suas folhas, seus frutos, sua sombra. O menino
também ama a árvore, a grande companheira de todos os dias; sobe em seu tronco,
se pendura nos galhos, brinca de esconde-esconde. Até que vai crescendo, se
torna adolescente, depois adulto. E, pouco a pouco, deixa a amiga de lado.
‘Estou grande demais para brincar’, diz o menino, que então precisa de dinheiro
para comprar ‘muitas coisas’. A árvore fornece suas maçãs, para o jovem vender.
Depois seus galhos, para o homem construir sua casa. E a história acompanha o
passar do tempo até a velhice do homem – que até o fim, já bem velho e cansado,
é chamado de menino pela árvore.”
A história retrata uma relação de amor que,
de início, quando o personagem é menino, é recíproca, mas depois, quando
cresce, vai se tornando uma doação unilateral, pois a árvore dá, se dá, se doa,
fica feliz de se oferecer e se sacrificar pelo seu menino, mas o menino,
adulto, maduro, só tira, só recebe, sem lhe dar nada em troca. Mas sempre volta
para sua árvore e lhe pede mais. Quando ela não tem mais nada para dar e se
tornou apenas um toco e ele está velho e cansado, ainda ela lhe serve para ele
se sentar e se confortar. E ela se sente sempre feliz em se doar para o seu
menino.
O que ressalta à primeira vista na leitura é
a oferta irrestrita da árvore (generosa) e o egoísmo depredatório e indiferente
do menino, que cresceu, mas continua menino para sua árvore. Aliás, é
sintomático que ele continue até o fim do livro, sendo chamado de menino,
porque embora velho, ainda se comporta como um menino mimado, incapaz de
assumir uma responsabilidade de amor com quem tanto lhe deu. Ela cuida e ele se
descuida. Ela se oferece e ele vai embora. Ele volta e ela exulta, mas ele
volta apenas para pedir mais. Ela quer vê-lo feliz e não mede sacrifícios para
isso, ele se comporta de forma indiferente à dor que ela sente, ao vê-lo
partir.
Claro que o comportamento do menino é
revoltante, mas a atitude da árvore é divina. Uma atitude de amor pleno, de
entrega total, de esquecimento de si, pelo ser que ama. Uma atitude aliás muito
mal vista e mal compreendida no mundo atual, onde amor não pode incluir
sacrifício e renúncia, mas apenas troca calculada e medida.
Existe, é verdade, um único tipo de amor que
não comporta a entrega plena sem reciprocidade nenhuma: é o amor entre um
casal. Nesse campo, é preciso haver um equilíbrio, embora possa um dos dois,
que tiver maior maturidade espiritual, exercer uma doação maior. Mas se houver
um descompasso muito grande, dá-se a anulação e a exploração, a desvalorização
do outro. A reciprocidade do amor num casamento, numa relação a dois, é uma
necessidade para a sua sobrevivência. Fora isso, o amor pode se libertar de
qualquer espera de retorno, pode projetar a reciprocidade plena para a
eternidade – o amor fraterno, o amor de amizade, o amor pedagógico e,
sobretudo, o maior amor de todos, o materno (que não é exclusivo de uma mãe
para com o filho, podemos experimentar o amor materno com qualquer outro ser
humano), são amores que podem se soltar das amarras de cobrança e procurarem um
status de divindade.
Não foi esse, por acaso, o amor de Jesus? Não
é isso que propõe o cristianismo? Mais amar do que ser amado? Jesus, na cruz,
dizendo: perdoai-lhes Pai, porque não sabem o que fazem não é igual à árvore
entregando seus galhos para o menino egoísta? Qual o sentido desse amor? O amor
que se sacrifica, que se devota, que se entrega plenamente é o amor que toca o
outro, é o amor que fará um dia o menino crescer e amadurecer, sentir o quanto
foi amado e aprender também a se devotar assim.
Essa árvore, ao contrário do que alguns podem
pensar, não era masoquista, sobretudo porque a árvore ficava feliz em amar e se
doar. Ela era sábia e sabia que seu menino ainda era mesmo um menino e teria
muito o que aprender. Mas para ensiná-lo, não se nega, não recua, não
repreende, não põe limites ao seu amor. Simplesmente exemplifica o que é de
fato amar. Só se aprende o que é o amor pleno, recebendo esse amor de alguém.
Por isso, as leis divinas fizeram as mães (embora muitas delas ainda não
desenvolveram esse amor completo, e algumas até o renegam, mas ele está
imanente até mesmo nos animais, porque é emanação de Deus): sem a entrega total
de alguém que nos cuide e vele por nós nos primeiros anos de vida, não
sobreviveríamos… Essa necessidade absoluta com que viemos ao mundo revela um
momento na vida (poderá haver outros, em crises, doença, velhice e morte) em
que precisamos exatamente de uma árvore generosa, que não meça sacrifícios por
nós.
Mas o mundo contemporâneo tem grande
dificuldade de entender e aceitar isso. Muitos, ao lerem essa história, se
revoltam mais com a árvore, considerada tola, mole, masoquista, do que com o
menino, egoísta e indiferente – vale dizer, imaturo. Porque nem mais as mães
querem hoje ser árvores generosas! Estamos num mundo que despreza a entrega de
si mesmo e prega que todos devemos exercitar o “pensar primeiro em si”. Ou seja,
todo mundo tem é que se comportar como o menino. Mas se não houvesse árvores
generosas, pessoas que se entregam ao próximo, que se sacrificam pelo bem e
amam incondicionalmente, o mundo estaria ainda mais ressecado e vazio do que
está.
Podemos ainda dizer que a árvore mais
generosa do universo é Deus – amor infinito, irrestrito, pleno, o amor que
cobre a multidão de pecados. Quando passarmos a entender e sentir mais Deus
como amor pleno e não como um juiz punitivo, justiceiro, melhor compreenderemos
e vivenciaremos esse amor divino em nós. Quem se comporta como a árvore
generosa está aprendendo a ser mais perto de Deus. E os meninos mimados e
egoístas crescerão. E só o amor das árvores generosas poderá curá-los e
educá-los.
Texto emocionante. Só me resta agradecer à Dora o presente que ela me deu nessa prosa que mais pareceu versos tocando fundo na alma. Roberto Caldas
ResponderExcluirEXCELENTE TEXTO....PARABENS!!!!
ResponderExcluirMaravilhoso!
ResponderExcluirQue eu possa ser árvore generosa sempre!
Só o amor constrói!