sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

ACERCA DO OPÚSCULO "ATITUDE DE AMOR"





Por Sérgio Aleixo(*)




O que dizer do opúsculo Atitude de Amor, de Wanderley S. de Oliveira, pelos espíritos Cícero Pereira e Ermance Dufaux, trazendo instruções de Bezerra de Menezes e Eurípedes Barsanulfo para a chegada da “era da maioridade das ideias espíritas”? Só mais um programa de subversão da ordem doutrinária kardeciana. A tática é das mais antigas — frases carregadas de chamadas moralizantes, que funcionam como senha cujo fim é ludibriar as inteligências menos afeitas aos conteúdos e alcances da obra de Kardec. Assim, os absurdos introduzidos no texto podem ser acolhidos pelas almas desprevenidas, que de nada desconfiam porque ali só veem exortações ao bem e ao amor, passando despercebida a grave e sintomática ausência da verdade.
O opúsculo elogia a “vitória” do Pacto Áureo, a reboque do Congresso Espírita Brasileiro de 1999, que lhe comemorou o cinquentenário. Entretanto, critica o “labirinto de obrigações no ramerrão [rotina] do centro espírita”, e reclama da falta de “renovação” e “arejamento cultural” no movimento organizado. Que incoerência! Pois o áureo pacto é que assegurou ao presidente da Federação Espírita Brasileira, à época, ser também o presidente do Conselho Federativo Nacional. Justo isso é que fomentou a situação de extremo “institucionalismo” hoje lamentada, sob inspiração constante do rustenismo, ardilosamente protegido pelo ato de 05/10/1949 (cf. arts. 1.º e 63 do Estatuto da F.E.B.), “a bula papalina” que expandiu na nossa seara “a primeira eclosão dos instintos vaticânicos”, como bem o disse já naqueles dias tristes Herculano Pires.

Afirma-se no opúsculo Atitude de Amor que Humberto Mariotti, Carlos Imbassahy, Deolindo Amorim, Herculano Pires e Cairbar Schutel, por exemplo, estavam presentes na tal palestra espiritual de Bezerra de Menezes; assim como, entre outros cerca de cinco mil espíritos, lá se encontravam (claro!) J.-B. Roustaing, E. Armond e até A. Zarur. Pura ficção! Não apenas porque este último mais não foi do que o próprio Roustaing reencarnado no séc. 20,[1] mas igualmente pela razão de que os cinco primeiros (Mariotti, Imbassahy [o pai], Amorim, Pires e Schutel) só se reuniriam aos demais (Roustaing, Armond e Zarur) para esclarecer-lhes o que de fato representa o espiritismo, porquanto, a julgar de seus livros, os três últimos, efetivamente, pouco entendiam de doutrina espírita. Não admira, pois, que Atitude de Amor advogue hoje, exatamente, as antigas teses dissolventes de Roustaing, Armond, Zarur e quejandos, defendendo que os centros espíritas deveriam formar “pólos de congraçamento ecumênico para os espíritas com diversidade de ideias”, “cooperativas de afeto cristão”, onde imperaria “o regime do mais livre pluralismo de concepções acerca dos postulados espíritas”, “pluralismo filosófico e doutrinário”, que resultaria da “redução do institucionalismo na administração” das casas espíritas. Em suma: uma nova Legião da Boa Vontade. Essa temeridade se justificaria pela suposta e urgente necessidade de os espíritas se habituarem a ter suas “certezas abaladas pelo conflito e pela permuta”, para que “ampliem a capacidade de enxergar com mais exatidão as questões que supõem ter sido esgotadas” e, desse estouvado modo, se livrem das “masmorras do autoritarismo institucional” e de “uma verdade exclusivista”, “atualizando conceitos”, “criando ensejos ecumênicos” e “uma atitude de alteridade”, o que conduzirá ao “ecumenismo” entre “as várias tendências da Seara”.
Combater o institucionalismo é uma coisa; tramar a morte lenta da doutrina espírita é outra muito diversa. Anote o estudioso atento que para Atitude de Amor qualquer concepção passa a ser parte do próprio espiritismo, à revelia da unidade doutrinária estabelecida pela obra de Kardec. Mesmo os postulados fundamentais desta obra clássica deveriam ser submetidos, imaginem, a um “pluralismo de concepções”. Na prática, então, para Atitude de Amor, tudo bem se entenderem que a reencarnação resulta de queda primordial do espírito na matéria, por castigo; tudo bem se preconizarem que o tal Espírito Regenerador inspirará especialmente o Papa católico a fim de que os fenômenos mediúnicos deixem de ser “fatos isolados, estranhos à ordem comum”, conforme fazem os rustenistas, por exemplo, porque, em nome do amor, da ética da alteridade, isso passa a ser espiritismo também; afinal, o que importa é ser pluralista e afetivo. Como se o único jeito de cultivar estas duas incontestes virtudes fosse diluindo a identidade doutrinária kardeciana do espiritismo. Como se as verdadeiras casas espíritas, que são orientadas pela ética evangélica, à luz da obra de Kardec, não se tornassem por este fato em “cooperativas de afeto cristão”. Que injustiça! Valha-nos o Espírito da Verdade!
Efeitos dessa bagunça ideológica muito mal fantasiada de Atitude de Amor foram as proposições antagônicas atribuídas a Eurípedes Barsanulfo, após pergunta que teria sido formulada por Ermance Dufaux, sobre a importância da assim chamada “pureza” doutrinária (prefiro “fidelidade” doutrinária). Inicia-se dizendo que “toda doutrina precisa ter identidade, e quando se defende pureza, nesse sentido, é uma ação necessária e justa”; todavia, finaliza-se desqualificando essa mesma ação tão necessária e tão justa, porque “a pureza filosófica desune” e só “a pureza do coração sublima”. Como se os que defendessem a “pureza” doutrinária jamais alcançassem por esta razão a graça da “paz interior” e do “coração sublimado”. A primeira excluiria os demais. Tese, aliás, dominante no opúsculo, que almeja, assim, a paralisação de toda e qualquer atitude analítica, crítica, por constituir prática de desamor que acarreta esta punição: o silêncio no Além. Sim! Por tal razão seria interdita aos espíritos dos “puristas” a comunicação mediúnica. Pueril esta hipótese e, ao demais, falsa. Mas o tal “Eurípedes” decreta, ameaçador e generalizante:

“A condição das almas que conheceram o espiritismo e galgaram a responsabilidade de formadores de opinião, detendo influência e poder de decisão, inteligência e visão ampliada, é a daquele servo da parábola dos talentos que enterrou o tesouro generoso concedido pelo Senhor, com medo das lutas que enfrentaria na ingente batalha consigo próprio”.

Todos os formadores de opinião, portanto, serão apenados pelo crime de bem conhecerem o espiritismo sem se omitirem ante a responsabilidade de comunicá-lo aos menos empenhados. Supõe-se, assim, que devem estes formadores de opinião lutar apenas contra si mesmos, amordaçados pelo medo de pecar. Como se a simples exposição da verdade em meios adversos, a exemplo do próprio Jesus, não ensejasse as mesmas lutas aos seus discípulos, sobretudo contra o comodismo da falsa paz interior, permeada de nossos costumeiros subterfúgios conscienciais, filhos diletos da lei do menor esforço. Discernir a verdade exige muito trabalho e sensibilidade; confundi-la não exige nada. No final, os que não atentam para isto não conseguem ser santos, nem sequer sábios.
Atitude de Amor ainda coloca nos lábios de Eurípedes este absurdo conceitual, mas que é consequência da tese estapafúrdia que o opúsculo veicula: “Imperioso que tomemos por base que espiritismo é toda forma de interpretação que possibilite ao homem a sua espiritualização e melhora nos campos do bem, sem almejar confiná-lo aos estreitíssimos catres ideológicos”. Qualquer proposta espiritualizante seria, então, espiritismo. E este? Afinal é ideologia tão estreita assim? Sobre isto, dever-se-ia citar o Kardec integral, moralizante e doutrinário a um só tempo, porquanto as duas coisas são complementares na proposta espírita bem compreendida:

“[...] os adeptos de tal modo aproveitaram o que o espiritismo até hoje ensinou, que nada mais tenham a fazer? [...] são tão perfeitos que de agora em diante seja supérfluo pregar-lhes a caridade, a humildade, a abnegação, numa palavra, a moral? Essa pretensão, por si só, provaria quanto ainda necessitam dessas lições elementares, que alguns consideram fastidiosas e pueris. É, entretanto, só com o auxílio dessas instruções, se as aproveitarem, que poderão elevar-se bastante para se tornarem dignos de receber um ensinamento superior. [...] uma ciência nova, que dá tantos resultados em menos de dez anos, não pode ser acusada de nulidade, porque toca em todas as questões vitais da humanidade e traz aos conhecimentos humanos um contingente que não é para desdenhar. Até que esses únicos pontos tenham recebido todas as aplicações de que são susceptíveis, e que os homens os tenham aproveitado, ainda se passará muito tempo, e os espíritas que os quiserem pôr em prática para si próprios e para o bem de todos não ficarão desocupados”.[2]

Ante a lucidez destas ponderações do mestre acerca de sua clássica obra, a que ficam reduzidas tão tresloucadas reivindicações de “renovação”, “atualização” e “arejamento”? Pois se está claro hoje que sequer bem conhecemos e, menos ainda, executamos a própria codificação kardeciana.
Ao término da palestra do tal Bezerra para cerca de cinco mil espíritos, assegura-se muito sintomaticamente: “J.-B. Roustaing foi um dos mais procurados para o abraço afetivo e a palavra amiga, cercado por amigos da Itália [terra de P. Ubaldi] e da França”.[3] Oras! Trata-se do primeiro subversor da ordem doutrinária espírita. Acusou Kardec muito ferinamente de ostracismo, ignorância e infalibilidade. Ousou até chamá-lo ironicamente de “chefe”, “mestre” de “um espiritismo de fantasia”. Bem o sabem os que puderam ler o antigo prefácio de Os Quatro evangelhos amputado pela F.E.B. há décadas.[4] Ali, o Dr. Roustaing e seus enfurecidos discípulos proclamam não apenas o seu cismazinho particular como encontram tempo para incentivar os demais cismas, em nome exatamente deste tipo de proposta ecumênica que dissolveria o espiritismo, e que agora é postulada por Atitude de Amor, em completo detrimento dos últimos esforços kardecianos de advertência contra as cisões na doutrina espírita. Kardec foi explícito quanto a isto e não há razão para desrespeitá-lo citando-o de forma manipulada. Vejamos o que realmente disse sobre o assunto o mestre lionês:

“Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. [...] seitas poderão formar-se ao lado da doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da doutrina, por efeito de interpretação dos textos”.[5]

Posto isto, como falar em “regime de livre pluralismo de concepções acerca dos postulados espíritas”, ou “pluralismo filosófico e doutrinário”, ou “ecumenismo” entre “as várias tendências da Seara”? Acaso faltam à clássica obra de Kardec a clareza e a precisão necessárias para uma unificação de nossas ideias e práticas? Ou nós é que nos entregamos a insubmissões injustificáveis em nome de uma vaidade irrefreável?
Na verdade, tudo o que Atitude de Amor pretende dispensa qualquer ingerência de outras doutrinas ou de seus respectivos adeptos na seara espírita, que já se esforça, sim, por praticar o Fora da caridade não há salvação, ainda que com as deficiências peculiares, aliás, a quaisquer movimentos humanos, os propaladamente ecumênicos, inclusive. O curioso é que esta proposta pseudoespírita de Atitude de Amor aparece colocada nos lábios de Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo e Ermance Dufaux, mas Roustaing, Ubaldi e Ramatis é que ali falam todo o tempo.
O Bezerra improvisado de Atitude de Amor não hesita sequer em elogiar a si mesmo: “Todos aqui, mormente os que se acostumaram à docilidade e ternura de meu coração [...]”. E ainda ousa assegurar que a “clareza e definição” de sua “fala” “são em obediência incondicional e servil a ordens maiores”, “em nome do Espírito Verdade”.[6] Para este Bezerra, tornar-se um tipo de salada mista new age salvaria o movimento organizado do “institucionalismo”. Completo equívoco! Uma coisa nada tem a ver com a outra. Para que chegue a “era da maioridade das ideias espíritas”, este comando de Bezerra é que deve ser obedecido, em tudo oposto ao “pluralismo filosófico e doutrinário” de Atitude de Amor, um aparente mea-culpa por ser exatamente a Bezerra que se deve a presença estatutária do rustenismo na F.E.B., instituição, aliás, pela qual ele continua propugnando ardorosamente, sob o lema duvidoso da “unificação”:

“Jesus nos trouxe a Verdade; Kardec, porém, nos trouxe a interpretação. Kardequizar é a legenda de agora! Kardequização da filosofia: discernimento; da fé: racionalidade. Kardequizemos para evoluir com acerto à frente do Cristo de Deus. Kardequizemo-nos na carteira de obrigações a que estamos transitoriamente jungidos: é a forma ideal de ascensão”.[7]

Na ocasião, o presidente da Federação “Rustenista” Brasileira censurou o espírito Bezerra de Menezes, afirmando que kardequizar seria sectarizar, exatamente neste tom ecumênico dissolvente de Atitude de Amor, que faz agora a propaganda de Roustaing ao mesmo tempo em que critica o institucionalismo da F.E.B. As criaturas voltaram-se contra o seu criador. Perigo maior à vista. Quando os “kardecistas” acomodados da F.E.B. acordarem, talvez seja tarde demais, e já faça parte do passado a morna dicotomia “Kardec versus Roustaing”, entendida apenas como “corpo físico versus corpo fluídico”, porque terá dado lugar a algo ainda pior: a transformação da F.E.B. num frankeinstein elebevista. O pluralismo deve ser cultivado no campo relacional do respeito mútuo, não propriamente na esteira da conceitualidade dos postulados, isto é, dos princípios espíritas, na qual nossa identidade doutrinária kardeciana desfila como diferença legítima e necessária, ali posta em movimento a duras penas pelo Gênio lionês, num regime, aliás, que prevê sua autocrítica, sem, contudo, tramar seu suicídio. “Ao invés de ser absorvido, o espiritismo absorverá”, disse Kardec; um absorver, porém, seletivo, e não sincrético. Nossa identidade, portanto, deve ser sustentada em momentos e espaços apropriados, num clima de coerência, sobriedade e equilíbrio, o que seria impossível ao influxo de aventuras experimentais que logo degenerariam em confusão e desorientação generalizadas, culminando na desaparição do espiritismo propriamente dito.


[1] Adepto do corpo fluídico de Jesus, comentarista bíblico prolífico, defendia o ideario do cisma rustenista no que postulava na LBV. Julgava-se a reencarnação de Allan Kardec; a LBV, supunha ser a quarta revelação. Sim, não duvido, Roustaing voltou, mas não se emendou.
[2] Revista Espírita. Ago/1865. O que ensina o espiritismo.
[3] Cf. atrás A queda do espírito e o problema das origens.  http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2009/12/o-espiritismo-rejeita-terminantemente-o_29.html
[4] Prefácio, 1920, pp. 47 e 72. Cf. ALEIXO. O Primado de Kardec. Parte III: http://oprimadodekardec.blogspot.com.br/2011/02/os-quatro-evangelhos-feb-1920.html, e Cap. 3. A Prova do Cisma Rustenista. http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-3-prova-do-cisma-rustenista.html
[5] Obras Póstumas. Segunda parte. Constituição do espiritismo. II e X.
[6] Cf. adiante Silvino Canuto Abreu, rustenista. http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2012/07/silvino-canuto-abreu-rustenista.html

[7] Kardec e Vida. Página aos espíritas. Médium: Francisco Cândido Xavier.


(*) Palestrante e escritor dedicado à doutrina espírita, ao kardecismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário