Por Sérgio Aleixo(*)
O que dizer do opúsculo Atitude de Amor, de
Wanderley S. de Oliveira, pelos espíritos Cícero Pereira e Ermance Dufaux,
trazendo instruções de Bezerra de Menezes e Eurípedes Barsanulfo para a chegada
da “era da maioridade das ideias espíritas”? Só mais um programa de subversão
da ordem doutrinária kardeciana. A tática é das mais antigas — frases
carregadas de chamadas moralizantes, que funcionam como senha cujo fim é
ludibriar as inteligências menos afeitas aos conteúdos e alcances da obra de
Kardec. Assim, os absurdos introduzidos no texto podem ser acolhidos pelas
almas desprevenidas, que de nada desconfiam porque ali só veem exortações ao
bem e ao amor, passando despercebida a grave e sintomática ausência da verdade.
O opúsculo elogia a “vitória” do Pacto Áureo,
a reboque do Congresso Espírita Brasileiro de 1999, que lhe comemorou o
cinquentenário. Entretanto, critica o “labirinto de obrigações no ramerrão
[rotina] do centro espírita”, e reclama da falta de “renovação” e “arejamento
cultural” no movimento organizado. Que incoerência! Pois o áureo pacto é que
assegurou ao presidente da Federação Espírita Brasileira, à época, ser também o
presidente do Conselho Federativo Nacional. Justo isso é que fomentou a
situação de extremo “institucionalismo” hoje lamentada, sob inspiração
constante do rustenismo, ardilosamente protegido pelo ato de 05/10/1949 (cf.
arts. 1.º e 63 do Estatuto da F.E.B.), “a bula papalina” que expandiu na nossa
seara “a primeira eclosão dos instintos vaticânicos”, como bem o disse já naqueles
dias tristes Herculano Pires.
Afirma-se no opúsculo Atitude de Amor que
Humberto Mariotti, Carlos Imbassahy, Deolindo Amorim, Herculano Pires e Cairbar
Schutel, por exemplo, estavam presentes na tal palestra espiritual de Bezerra
de Menezes; assim como, entre outros cerca de cinco mil espíritos, lá se
encontravam (claro!) J.-B. Roustaing, E. Armond e até A. Zarur. Pura ficção!
Não apenas porque este último mais não foi do que o próprio Roustaing
reencarnado no séc. 20,[1] mas igualmente pela razão de que os cinco primeiros
(Mariotti, Imbassahy [o pai], Amorim, Pires e Schutel) só se reuniriam aos
demais (Roustaing, Armond e Zarur) para esclarecer-lhes o que de fato
representa o espiritismo, porquanto, a julgar de seus livros, os três últimos,
efetivamente, pouco entendiam de doutrina espírita. Não admira, pois, que
Atitude de Amor advogue hoje, exatamente, as antigas teses dissolventes de
Roustaing, Armond, Zarur e quejandos, defendendo que os centros espíritas
deveriam formar “pólos de congraçamento ecumênico para os espíritas com
diversidade de ideias”, “cooperativas de afeto cristão”, onde imperaria “o
regime do mais livre pluralismo de concepções acerca dos postulados espíritas”,
“pluralismo filosófico e doutrinário”, que resultaria da “redução do institucionalismo
na administração” das casas espíritas. Em suma: uma nova Legião da Boa Vontade.
Essa temeridade se justificaria pela suposta e urgente necessidade de os
espíritas se habituarem a ter suas “certezas abaladas pelo conflito e pela
permuta”, para que “ampliem a capacidade de enxergar com mais exatidão as
questões que supõem ter sido esgotadas” e, desse estouvado modo, se livrem das
“masmorras do autoritarismo institucional” e de “uma verdade exclusivista”,
“atualizando conceitos”, “criando ensejos ecumênicos” e “uma atitude de
alteridade”, o que conduzirá ao “ecumenismo” entre “as várias tendências da
Seara”.
Combater o institucionalismo é uma coisa;
tramar a morte lenta da doutrina espírita é outra muito diversa. Anote o
estudioso atento que para Atitude de Amor qualquer concepção passa a ser parte
do próprio espiritismo, à revelia da unidade doutrinária estabelecida pela obra
de Kardec. Mesmo os postulados fundamentais desta obra clássica deveriam ser
submetidos, imaginem, a um “pluralismo de concepções”. Na prática, então, para
Atitude de Amor, tudo bem se entenderem que a reencarnação resulta de queda
primordial do espírito na matéria, por castigo; tudo bem se preconizarem que o
tal Espírito Regenerador inspirará especialmente o Papa católico a fim de que
os fenômenos mediúnicos deixem de ser “fatos isolados, estranhos à ordem
comum”, conforme fazem os rustenistas, por exemplo, porque, em nome do amor, da
ética da alteridade, isso passa a ser espiritismo também; afinal, o que importa
é ser pluralista e afetivo. Como se o único jeito de cultivar estas duas
incontestes virtudes fosse diluindo a identidade doutrinária kardeciana do
espiritismo. Como se as verdadeiras casas espíritas, que são orientadas pela
ética evangélica, à luz da obra de Kardec, não se tornassem por este fato em
“cooperativas de afeto cristão”. Que injustiça! Valha-nos o Espírito da
Verdade!
Efeitos dessa bagunça ideológica muito mal
fantasiada de Atitude de Amor foram as proposições antagônicas atribuídas a
Eurípedes Barsanulfo, após pergunta que teria sido formulada por Ermance
Dufaux, sobre a importância da assim chamada “pureza” doutrinária (prefiro
“fidelidade” doutrinária). Inicia-se dizendo que “toda doutrina precisa ter
identidade, e quando se defende pureza, nesse sentido, é uma ação necessária e
justa”; todavia, finaliza-se desqualificando essa mesma ação tão necessária e
tão justa, porque “a pureza filosófica desune” e só “a pureza do coração
sublima”. Como se os que defendessem a “pureza” doutrinária jamais alcançassem
por esta razão a graça da “paz interior” e do “coração sublimado”. A primeira
excluiria os demais. Tese, aliás, dominante no opúsculo, que almeja, assim, a
paralisação de toda e qualquer atitude analítica, crítica, por constituir
prática de desamor que acarreta esta punição: o silêncio no Além. Sim! Por tal
razão seria interdita aos espíritos dos “puristas” a comunicação mediúnica.
Pueril esta hipótese e, ao demais, falsa. Mas o tal “Eurípedes” decreta,
ameaçador e generalizante:
“A condição das almas que conheceram o
espiritismo e galgaram a responsabilidade de formadores de opinião, detendo
influência e poder de decisão, inteligência e visão ampliada, é a daquele servo
da parábola dos talentos que enterrou o tesouro generoso concedido pelo Senhor,
com medo das lutas que enfrentaria na ingente batalha consigo próprio”.
Todos os formadores de opinião, portanto,
serão apenados pelo crime de bem conhecerem o espiritismo sem se omitirem ante
a responsabilidade de comunicá-lo aos menos empenhados. Supõe-se, assim, que
devem estes formadores de opinião lutar apenas contra si mesmos, amordaçados
pelo medo de pecar. Como se a simples exposição da verdade em meios adversos, a
exemplo do próprio Jesus, não ensejasse as mesmas lutas aos seus discípulos,
sobretudo contra o comodismo da falsa paz interior, permeada de nossos
costumeiros subterfúgios conscienciais, filhos diletos da lei do menor esforço.
Discernir a verdade exige muito trabalho e sensibilidade; confundi-la não exige
nada. No final, os que não atentam para isto não conseguem ser santos, nem
sequer sábios.
Atitude de Amor ainda coloca nos lábios de
Eurípedes este absurdo conceitual, mas que é consequência da tese estapafúrdia
que o opúsculo veicula: “Imperioso que tomemos por base que espiritismo é toda
forma de interpretação que possibilite ao homem a sua espiritualização e
melhora nos campos do bem, sem almejar confiná-lo aos estreitíssimos catres
ideológicos”. Qualquer proposta espiritualizante seria, então, espiritismo. E
este? Afinal é ideologia tão estreita assim? Sobre isto, dever-se-ia citar o
Kardec integral, moralizante e doutrinário a um só tempo, porquanto as duas
coisas são complementares na proposta espírita bem compreendida:
“[...] os adeptos de tal modo aproveitaram o
que o espiritismo até hoje ensinou, que nada mais tenham a fazer? [...] são tão
perfeitos que de agora em diante seja supérfluo pregar-lhes a caridade, a
humildade, a abnegação, numa palavra, a moral? Essa pretensão, por si só,
provaria quanto ainda necessitam dessas lições elementares, que alguns
consideram fastidiosas e pueris. É, entretanto, só com o auxílio dessas
instruções, se as aproveitarem, que poderão elevar-se bastante para se tornarem
dignos de receber um ensinamento superior. [...] uma ciência nova, que dá
tantos resultados em menos de dez anos, não pode ser acusada de nulidade,
porque toca em todas as questões vitais da humanidade e traz aos conhecimentos
humanos um contingente que não é para desdenhar. Até que esses únicos pontos
tenham recebido todas as aplicações de que são susceptíveis, e que os homens os
tenham aproveitado, ainda se passará muito tempo, e os espíritas que os
quiserem pôr em prática para si próprios e para o bem de todos não ficarão
desocupados”.[2]
Ante a lucidez destas ponderações do mestre
acerca de sua clássica obra, a que ficam reduzidas tão tresloucadas
reivindicações de “renovação”, “atualização” e “arejamento”? Pois se está claro
hoje que sequer bem conhecemos e, menos ainda, executamos a própria codificação
kardeciana.
Ao término da palestra do tal Bezerra para
cerca de cinco mil espíritos, assegura-se muito sintomaticamente: “J.-B.
Roustaing foi um dos mais procurados para o abraço afetivo e a palavra amiga,
cercado por amigos da Itália [terra de P. Ubaldi] e da França”.[3] Oras!
Trata-se do primeiro subversor da ordem doutrinária espírita. Acusou Kardec
muito ferinamente de ostracismo, ignorância e infalibilidade. Ousou até
chamá-lo ironicamente de “chefe”, “mestre” de “um espiritismo de fantasia”. Bem
o sabem os que puderam ler o antigo prefácio de Os Quatro evangelhos amputado
pela F.E.B. há décadas.[4] Ali, o Dr. Roustaing e seus enfurecidos discípulos
proclamam não apenas o seu cismazinho particular como encontram tempo para
incentivar os demais cismas, em nome exatamente deste tipo de proposta
ecumênica que dissolveria o espiritismo, e que agora é postulada por Atitude de
Amor, em completo detrimento dos últimos esforços kardecianos de advertência
contra as cisões na doutrina espírita. Kardec foi explícito quanto a isto e não
há razão para desrespeitá-lo citando-o de forma manipulada. Vejamos o que
realmente disse sobre o assunto o mestre lionês:
“Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma
condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da doutrina
sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique
imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se
prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça
sempre. [...] seitas poderão formar-se ao lado da doutrina, seitas que não lhe
adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da doutrina, por
efeito de interpretação dos textos”.[5]
Posto isto, como falar em “regime de livre
pluralismo de concepções acerca dos postulados espíritas”, ou “pluralismo
filosófico e doutrinário”, ou “ecumenismo” entre “as várias tendências da
Seara”? Acaso faltam à clássica obra de Kardec a clareza e a precisão
necessárias para uma unificação de nossas ideias e práticas? Ou nós é que nos
entregamos a insubmissões injustificáveis em nome de uma vaidade irrefreável?
Na verdade, tudo o que Atitude de Amor
pretende dispensa qualquer ingerência de outras doutrinas ou de seus
respectivos adeptos na seara espírita, que já se esforça, sim, por praticar o
Fora da caridade não há salvação, ainda que com as deficiências peculiares,
aliás, a quaisquer movimentos humanos, os propaladamente ecumênicos, inclusive.
O curioso é que esta proposta pseudoespírita de Atitude de Amor aparece
colocada nos lábios de Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo e Ermance
Dufaux, mas Roustaing, Ubaldi e Ramatis é que ali falam todo o tempo.
O Bezerra improvisado de Atitude de Amor não
hesita sequer em elogiar a si mesmo: “Todos aqui, mormente os que se
acostumaram à docilidade e ternura de meu coração [...]”. E ainda ousa
assegurar que a “clareza e definição” de sua “fala” “são em obediência
incondicional e servil a ordens maiores”, “em nome do Espírito Verdade”.[6]
Para este Bezerra, tornar-se um tipo de salada mista new age salvaria o
movimento organizado do “institucionalismo”. Completo equívoco! Uma coisa nada
tem a ver com a outra. Para que chegue a “era da maioridade das ideias espíritas”,
este comando de Bezerra é que deve ser obedecido, em tudo oposto ao “pluralismo
filosófico e doutrinário” de Atitude de Amor, um aparente mea-culpa por ser
exatamente a Bezerra que se deve a presença estatutária do rustenismo na
F.E.B., instituição, aliás, pela qual ele continua propugnando ardorosamente,
sob o lema duvidoso da “unificação”:
“Jesus nos trouxe a Verdade; Kardec, porém,
nos trouxe a interpretação. Kardequizar é a legenda de agora! Kardequização da
filosofia: discernimento; da fé: racionalidade. Kardequizemos para evoluir com
acerto à frente do Cristo de Deus. Kardequizemo-nos na carteira de obrigações a
que estamos transitoriamente jungidos: é a forma ideal de ascensão”.[7]
Na ocasião, o presidente da Federação
“Rustenista” Brasileira censurou o espírito Bezerra de Menezes, afirmando que
kardequizar seria sectarizar, exatamente neste tom ecumênico dissolvente de
Atitude de Amor, que faz agora a propaganda de Roustaing ao mesmo tempo em que
critica o institucionalismo da F.E.B. As criaturas voltaram-se contra o seu
criador. Perigo maior à vista. Quando os “kardecistas” acomodados da F.E.B.
acordarem, talvez seja tarde demais, e já faça parte do passado a morna
dicotomia “Kardec versus Roustaing”, entendida apenas como “corpo físico versus
corpo fluídico”, porque terá dado lugar a algo ainda pior: a transformação da
F.E.B. num frankeinstein elebevista. O pluralismo deve ser cultivado no campo
relacional do respeito mútuo, não propriamente na esteira da conceitualidade
dos postulados, isto é, dos princípios espíritas, na qual nossa identidade
doutrinária kardeciana desfila como diferença legítima e necessária, ali posta
em movimento a duras penas pelo Gênio lionês, num regime, aliás, que prevê sua
autocrítica, sem, contudo, tramar seu suicídio. “Ao invés de ser absorvido, o
espiritismo absorverá”, disse Kardec; um absorver, porém, seletivo, e não
sincrético. Nossa identidade, portanto, deve ser sustentada em momentos e
espaços apropriados, num clima de coerência, sobriedade e equilíbrio, o que seria
impossível ao influxo de aventuras experimentais que logo degenerariam em
confusão e desorientação generalizadas, culminando na desaparição do
espiritismo propriamente dito.
[1]
Adepto do corpo fluídico de Jesus, comentarista bíblico prolífico, defendia o
ideario do cisma rustenista no que postulava na LBV. Julgava-se a reencarnação
de Allan Kardec; a LBV, supunha ser a quarta revelação. Sim, não duvido,
Roustaing voltou, mas não se emendou.
[2]
Revista Espírita. Ago/1865. O que ensina o espiritismo.
[3]
Cf. atrás A queda do espírito e o problema das origens.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2009/12/o-espiritismo-rejeita-terminantemente-o_29.html
[4]
Prefácio, 1920, pp. 47 e 72. Cf. ALEIXO. O Primado de Kardec. Parte III:
http://oprimadodekardec.blogspot.com.br/2011/02/os-quatro-evangelhos-feb-1920.html,
e Cap. 3. A Prova do Cisma Rustenista.
http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-3-prova-do-cisma-rustenista.html
[5]
Obras Póstumas. Segunda parte. Constituição do espiritismo. II e X.
[6]
Cf. adiante Silvino Canuto Abreu, rustenista.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2012/07/silvino-canuto-abreu-rustenista.html
[7]
Kardec e Vida. Página aos espíritas. Médium: Francisco Cândido Xavier.
(*) Palestrante e escritor dedicado à doutrina espírita, ao kardecismo.
(*) Palestrante e escritor dedicado à doutrina espírita, ao kardecismo.
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