sábado, 1 de fevereiro de 2014

NEM ESPIRITISMO LAICO, NEM NOVA RELIGIÃO






Por Dora Incontri(*)



A posição de Kardec ainda não foi compreendida pela maioria e uma das provas disto está no debate ainda atual se o espiritismo é ou não é religião. Por um lado, estão os que se autodenominam espíritas laicos e que defendem a idéia de que Kardec jamais pensou o espiritismo como religião, mas apenas como ciência, filosofia e moral; do outro, estão os que defendem o chamado tríplice aspecto do espiritismo, ciência, filosofia e religião, mas agem e pensam como se o espiritismo fosse apenas mais uma religião. Estes constituem a maioria do movimento espírita brasileiro.

Analisemos a polêmica com cuidado, porque os dois lados têm suas razões e os dois lados cometem enganos. De fato, Kardec não quis estabelecer mais uma religião, no sentido comum do termo, (por isso, diz muitas vezes que o espiritismo não é religião), visto que o espiritismo não tem sacerdócio, templos, hierarquia institucional, dogmas de fé e nem rituais que o adepto deva seguir para dizer-se espírita. Qualquer pessoa que aceite os postulados espíritas e procure viver segundo a moral de Jesus pode se dizer espírita, mesmo que jamais tenha pisado num centro espírita ou assistido a uma reunião. Trata-se de uma convicção pessoal, de uma adesão livre, de que  ninguém está instituído para pedir satisfações ou exigir o cumprimento disto ou daquilo.


Nesse sentido, portanto, quando os espíritas laicos dizem que o espiritismo não é religião, estão certos. Mas seria melhor dizer: não é mais uma religião, nos moldes das religiões tradicionais.

Se Kardec promoveu esse desencantamento, essa crítica e esse esvaziamento hierárquico do universo religioso, guardou aquilo que lhe é essencial. O Livro dos Espíritos declara como a primeira das leis morais a lei de adoração a Deus. Essa adoração pode se manifestar no homem em forma de estudo das leis da natureza – portanto a ciência, como Kepler, Giordano Bruno, Newton e outros afirmaram, pode ser uma espécie de culto a Deus; e em forma de prática de amor ao próximo, na vida social, e, também e sobretudo, em forma de oração, de ligação afetiva do ser humano com a divindade. Ora, o amor ao próximo é a essência ética da maioria das religiões e a oração é um ato indubitavelmente religioso. Não há outra classificação para esse ato universal, por mais que o tornemos simples, espiritualizado, sem ritos, imagens, intermediações, templos, genuflexões ou gestos...

Além disso, é das religiões que nos vêm as experiências milenares de contato com a divindade, de manifestações mediúnicas e de revelações morais – grandes espíritos reencarnaram no seio das mais variadas religiões do planeta e exemplificaram uma ética elevada a partir da vivência religiosa. Assim, a religião é uma forma de ser e estar no mundo que não podemos simplesmente deixar de lado, porque constitui parte integrante da nossa consciência. Descendemos da divindade e foram as religiões que revelaram isso.

Portanto, falar em espiritismo laico – o que significa dizer um espiritismo destituído de qualquer ligação com o assunto religião – é um contrassenso e uma negação da obra de Kardec.

O laicismo nasceu no Ocidente como forma de protesto contra o domínio milenar da Igreja católica. Fala-se em escola laica, em Estado laico, como lugares institucionais que se consideram neutros do ponto de vista religioso e fora da tutela da Igreja. O espiritismo não é neutro em termos religiosos. Kardec critica, reavalia e recria a religiosidade humana, inaugurando uma nova forma de ser religioso, sem jamais negar essa dimensão do homem.

(*) Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita. Docente de pós-graduação pela Universidade Santa Cecília. Dirige em São Paulo, o Espaço Pampédia, um centro de educação e cultura, uma incubadora de ideias.


6 comentários:

  1. Mais um maravilhoso texto dessa estudiosa do Espiritismo! Parabéns Dora Incontri!

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  2. Não podemos mais deixar a Doutrina Espírita escondida nos Centros Espíritas. A Dora Incontri coloca toda o seu conhecimento e coragem para divulgar uma Doutrina que pode ajudar a sociedade a sair desse beco em que se encontra, querendo tirar vantagem com Deus. Parabéns à escritora Dora Incontri e ao Canteiro de Ideias por receber e publicar textos desse conteúdo e qualidade. Francisco Castro de Sousa

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  3. Kardec sendo pedagogo conhecia o "princípio da contradição" aristotélica, ou seja: "uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo". por isso ele afirmou: DOUTRINA FILOSÓFICA E MORAL. Boa leva de espíritas brasileiros confundiu "alhos com bugalhos".

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  4. Sensatas as argumentações da Dora. É tudo uma questão de palavras e é importante que não discutamos em torno das palavras simplesmente. Os espíritos muitas vezes disseram a Kardec, especialmente em O Livro dos Espíritos, que nos entendêssemos a respeito das palavras usadas, desde que não nos agarrássemos a elas. As pessoas historicamente criaram uma CISMA com a palavra RELIGIÃO como se fosse sinônimo de catolicismo ou protestantismo e querendo negar o passado reencarnatório por esses corredores de liturgias e dogmas geram essa confusão em torno da semântica. Roberto Caldas.

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  5. Este é´um artigo que se pode dizer que é "NOTA MIL"

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  6. De fato, esse questionamento está presente no meio espírita. Eu mesma passei por esse período conhecido como a mistura dos "alhos com bugalhos"... mas, com o estudo das obras básicas tudo fica mais claro, porque Kardec possui uma linguagem que não permite dupla interpretação. O problema dos inúmeros equívocos pode estar na imensa bibliografia que o espiritísmo oferece. Muitos preferem livros diversos as 5 obras que são realmente os pilares da nossa vivência espírita.

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