Por Dora Incontri (*)
Vou começar a minha reflexão do dia das mães,
sobre maternidade e maternagem, relembrando a minha própria mãe. Quando ela se
foi, eu tinha 34 anos. Ela era uma grande parceira intelectual, uma mãe
presentíssima. Compartilhávamos conversas, ideias, ideais, livros lidos,
projetos a realizar. Apesar dessa ligação muito “cabeça” que tínhamos, quero
lembrar de um fato aqui que me introduz no tema de hoje. Até um mês antes de ir
para o hospital, onde faleceu dois meses depois, com câncer de pâncreas, ela
diariamente arrumava minha cama. Não que fosse uma mãe essencialmente
doméstica: fazíamos os serviços de casa em parceria, tínhamos uma pessoa que
nos ajudava, a Maria, que depois veio a se tornar para mim uma segunda mãe.
Minha mãe estudava, trabalhava, mas sabia que eu detestava arrumar a cama
(coisa de que até hoje não gosto) e ela nunca falhava em me oferecer esse gesto
de carinho diário.
Hoje tenho ouvido relatos de educadores e
diretores, de escolas públicas e particulares, de crianças pequenas que chegam
pela manhã na creche ou jardim da infância de período integral, com a mesma
fralda com que foram para casa, no dia anterior.
Um documentário, como Muito além do peso
(disponível gratuitamente no Youtube) mostra mães (e pais) totalmente
impotentes e perplexos diante de filhos pequenos com hipertensão, diabetes,
triglicérides e colesterol alto, por uma alimentação de nuggets, salgadinhos, batatas
fritas e toneladas de açúcar… Crianças que não sabem o nome de nenhum legume e
nenhuma fruta, que são viciadas em coca-cola e bolachas recheadas.
Esses são apenas algumas citações (cada uma
das quais mereceria um artigo específico), para demonstrar como a nossa
sociedade está negligente, incompetente e omissa em relação às crianças. E
depois querem puni-las por desrespeito, querem reduzir a maioridade penal,
querem impor limites e castigos…
O que está faltando hoje em muitos lares (de
todas as classes sociais) é o que Winnicott chamou de “maternagem”, aqueles
cuidados básicos, essenciais, necessários, que toda criança tem que receber. A
criança, principalmente nos seus primeiros anos de vida, tem necessidade de
total devotamento, cuidados plenos, amor incondicional. Depois desse primeiro
período, que vai até pelo menos 2 anos, ela ainda precisa continuar a receber
cuidados, ternura, presença atenta, embora já inicie seu processo de separação
da mãe, de autonomia e de construção de sua identidade.
Embora a Psicologia nos ensine que se a
maternagem não ceder à independência da criança no momento certo, o amor
materno pode se tornar opressivo e prejudicial ao desenvolvimento do ser
humano, ela também nos mostra que a negligência, o abandono e o não-preenchimento
desses cuidados básicos, que incluem afetividade e acolhimento, colo e carinho,
podem gerar lacunas psíquicas, que mais tarde poderão gerar graves distúrbios
mentais.
O termo maternagem – que são esses cuidados
maternos que toda mãe deveria dar, mas nem sempre dá, e que outra pessoa, que
não seja a mãe, também pode oferecer – na Psicanálise, refere-se também aos
cuidados que o terapeuta pode prestar ao seu paciente, de certa forma
resgatando a maternagem que o indivíduo deveria ter recebido na infância.
Podemos ampliar ainda mais essa palavra e
afirmar que todos nós em alguns momentos na vida, precisaremos de maternagem,
mesmo quando já nos sentimos adultos e maduros. A nossa criança interna,
carente e frágil, pode vir à tona e precisar de um colo materno e fraterno,
para nos acalentar. Por outro lado, todos podemos também oferecer maternagem
aos que estão à nossa volta, preocupando-nos com o bem-estar físico, psíquico e
emocional do outro.
Quando a sociedade desnatura a mãe
A maternidade é um dado biológico, uma
vinculação dada pela gestação, que pode continuar a se manifestar ou não em
forma de maternagem. Uma mãe que abandona o filho não pratica a maternagem. Ela
pode transferi-la para outra pessoa, no caso de uma adoção, ou emprestá-la ou ainda
partilhá-la, no caso de entregar o filho a uma babá ou a uma creche (onde
atualmente quase que se proíbe a maternagem, como se professoras de crianças
pequenas tivessem de ser apenas “professoras”, quando toda criança pequena
precisa o tempo todo de cuidados maternos). O pai também pode e até deve
exercer a maternagem.
O que se dá é que em nossa sociedade,
esfriada, individualista, competitiva, desumanizada, as pessoas estão
desaprendendo de serem maternas. Porque todos devem ser “produtivos” no sentido
econômico do termo. Não podemos nos dar ao luxo de cuidar de alguém, seja uma
criança, seja um doente, seja um idoso. Temos todos, homens e mulheres, de
trabalhar o tempo inteiro para “ganharmos a vida” e assim vamos perdendo a
vida, esvaziando-a de carinho, de afeto e de cuidados mútuos.
Está certo que a Psicanálise desencantou as
mães, mostrando-as como possíveis responsáveis por neuroses e psicoses, devido
ao apego excessivo, ao devotamento doentio; é certo que a mulher saiu para o
mercado de trabalho e não pode recuar da vida no mundo, dando sua contribuição
para a sociedade; é certo que não podemos mais idealizar a mãe como sendo
sempre um modelo de renúncia e abnegação – mas precisamos sim de sentimentos
maternos para vivermos em sociedade de forma saudável, amorosa e plena.
Lembro aqui do amorosíssimo Francisco de
Assis, que dizia aos seus companheiros, que eles se cuidassem mutuamente como
mães… Lembro de Pestalozzi, o grande educador que tratou pela primeira vez da
necessidade do afeto na educação e seus biógrafos reconheceram nele “um grande
coração maternal”. Lembro de todas as mães, do decorrer dos milênios e ainda
hoje, perdidas na multidão, que não saem nas matérias da Revista Veja, sobre
executivas bem-sucedidas, que parecem mulheres despersonalizadas de seu
estatuto feminino – lembro de todas as mulheres – dizia – que abriram caminhos
para que seus filhos crescessem fortes, saudáveis e pessoas de bem, pelo amor
com que se dedicaram a eles, pelo devotamento de sua presença… e lembro de
minha mãe, que intelectualizada, parceira de livros e ideias, e que não
suportava a idealização de uma “santa mãezinha”, não deixava de arrumar minha
cama e de cuidar de nosso bem-estar psíquico e físico, de que, sabemos, as
verdadeiras mães continuam a cuidar, mesmo do outro lado da vida…
O toque materno, a ternura, a preocupação com
o outro é que arranca a vida da aridez e do vazio. Quem teve o privilégio de
receber esses cuidados de sua mãe biológica, tanto melhor. Quem teve a sorte de
ser “maternado” por outras pessoas, em sua infância, adolescência ou encontrar
compensações maternas em suas relações atuais, ótimo. O que não podemos é
passarmos a vida sem nenhum tipo de doçura materna, sem nenhum colo que nos
aconchegue a alma.
Não é à toa que Maria, mãe de Jesus, é
venerada em todos os cantos do planeta. Ela representa espiritualmente esse
colo sagrado, acolhedor e pleno, no qual nos sentimos crianças de novo e
seguros de uma proteção confortadora.
Mas também devemos ter consciência de que
amadurecer, crescer, emancipar-se psiquicamente e espiritualmente, é sermos
capazes por nossa vez de oferecer colos, de ofertar cuidados maternos e de
sermos ternura no caminho de alguém.
(*) paulistana,
nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são
Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado,
doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP.
Bela e oportuna página!
ResponderExcluirSe já não fosse esperado, em se tratando de Dora, diríamos que é veemente e incontestável.
Everaldo - Viçosa do Ceará (CE)
Excelente texto !! Muito oportuno.
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