Um
documentário feito por alunos de Comunicação Social numa Universidade do Rio
Grande do Sul, defende o direito dos ateus e fala sobre a discriminação sofrida
por eles. Abaixo, uma reflexão que fiz a partir desse vídeo!
Por Dora Incontri (*)
A mais recente vitimização social é a dos
ateus – declaram-se perseguidos, incompreendidos e discriminados. Em primeiro
lugar, quero deixar claro, que reconheço a legitimidade do ateísmo e obviamente
advogo o direito de cada um crer ou descrer, da maneira que lhe aprouver, pois
nada há de mais sagrado do que a liberdade de pensamento.
Entretanto, um dos trabalhos a que me dedico
é o do diálogo inter-religioso e, poderia então acrescentar, o diálogo entre
religiosos e não-religiosos… Afinal, o eixo para uma sociedade mais justa,
plural e fraterna, está na convivência pacífica e respeitosa entre diversos
pontos de vista. Nesse sentido, portanto, temos que analisar o que nos afasta e
o que nos aproxima do diálogo, e isso deve ser feito por todos os
interlocutores.
Antes de mais nada, um diálogo tem que ser
honesto – o que chamo de honesto inclui não fazer generalizações simplistas.
Por exemplo: religiosos dizerem que ateus não têm moral. Ou, do outro lado,
ateus se referirem a Deus numa generalização pobre de seu conceito.
Explico-me: o que esses ateus do vídeo acima
estão combatendo (ou dizem descrer) é um deusinho bem vulgar, antropomórfico,
que anda pulando na boca de pastores fanáticos. Não é de jeito nenhum o Deus de
Platão, Aristóteles – que eram pagãos. Não é o Deus de Avicena – que era
islâmico, nem de Maimonides, judeu. Não é nem mesmo o Deus de São Tomás de
Aquino, cuja doutrina é oficial da Igreja Católica. É o deus dos inquisidores,
mas não é o Deus de Giordano Bruno, que foi queimado pela Inquisição, mas
aceitava um Deus cósmico, infinito.
O primeiro grande engano é considerar que
Deus é apenas um assunto de religião. Desde antes do advento do cristianismo, e
mesmo muito tempo depois da laicização da sociedade, Deus sempre foi um tema
recorrente na filosofia. Descartes, Spinoza, Leibniz – mais recentemente,
Bergson, Buber ou Scheler, têm concepções de Deus diferentes entre si e muito
distantes desse deusinho punitivo, vingador, que manda os ateus para o inferno,
esse deusinho que pregam os seguidores de um Edir Macedo da vida.
O outro grande engano é dizer que a ciência é
ateia. A ciência não pode se pronunciar – e nem se pronuncia – nem contra, nem
a favor de Deus, pois Deus nunca foi seu objeto de estudo e pesquisa. O que há
são concepções de universo e de mundo que se afinam ou não com uma dada
concepção de Deus. E o que há são cientistas ateus e cientistas não-ateus. Eis tudo.
E a ciência moderna, nascida justamente com os grandes astrônomos,
Copérnico, Galileu, Kepler, Giornado Bruno, não nasceu ateia, porque esses
pensadores consideravam que conhecer o cosmos, estudar as constelações,
enxergar a ordem matemática imanente no universo, era uma forma de decifrar
Deus, seu projeto cosmológico inteligente e articulado. Há cientistas
contemporâneos célebres que também são teístas – veja-se Albert Einstein e Max
Planck.
Portanto, não dá para discutir Deus
honestamente de forma maniqueísta:
De um lado: cientistas, filósofos, pensadores
progressistas, defensores da liberdade, personalidades “fortes” que não
precisam de apoio “sobrenatural” – ATEUS.
Do outro lado: religiosos, fanáticos,
conservadores, inquisidores, ingênuos, que precisam de uma muleta, que se
assemelha ao Papai Noel e ao coelhinho da Páscoa – TEÍSTAS (considerando-se
teísta qualquer um que tenha uma concepção de Deus).
Assim como não dá para fazer o inverso,
demonizar os ateus e santificar os religiosos!
O caso é que a intolerância, o dogmatismo, o
patrulhamento ideológico são males humanos, e vicejam nos teísmos, nos
ateísmos, em todos os ismos do mundo. Citemos o exemplo de dois autores
mencionados no vídeo em questão: Freud e Marx. Os dois, que deram contribuições
históricas importantes e algumas delas ainda atuais, eram campeões da
intolerância. Freud costumava excomungar violentamente os que se afastavam
algum milímetro da ortodoxia psicanalítica. Veja-se o caso de Jung. Marx não
era menos autoritário. Bakunin (ateu como Marx, mas um dos líderes do
pensamento anarquista) reclama do patrulhamento ideológico a que os anarquistas
foram submetidos durante a 2º Internacional. E não podemos nos esquecer o que
aconteceu com eles (os anarquistas) na Revolução Soviética – massacrados todos
pela intolerância bolchevique.
Com tudo isso, estou apenas querendo
demonstrar que se há religiosos fanáticos e intolerantes, há também ateus que
agem do mesmo modo. Basta estar no poder.
E por falar em poder, devo mencionar a seguir
o reduto da intolerância ateia no mundo contemporâneo: o mundo acadêmico. Se na
mídia, temos pastores vociferando contra “pessoas sem Deus no coração”, nas
universidades, intelectuais que ousam pensar Deus, mesmo de forma filosófica,
são estigmatizados e congelados. Eu mesma teria uma série de episódios a
narrar, mas não interessa aqui citar nomes e instituições. Poderia falar de
concursos, análise de publicações, pareceres sobre livros etc… em que minha posição
de espiritualista, teísta, espírita, foram razões explícitas ou implícitas de
discriminação e exclusão. Ou seja, se entre a população que ovaciona Padre
Marcelo e Edir Macedo, há um discurso demonizando ateus, entre a população
acadêmica – sobretudo na área de Filosofia (a despeito de filósofos de todos os
tempos terem discutido Deus), há uma atitude de ridicularização em relação aos
que propõem um conceito teísta de vida. É tão desrespeitoso e dogmático, alguém
se arrogar o direito de dizer que outra pessoa vai para o inferno, porque pensa
diferente, quanto considerar uma argumentação filosófica séria e honesta a
favor da existência de Deus, como uma patacoada imbecil sobre o coelhinho da
Páscoa!
Aliás, mencionei a intolerância de Marx e
Freud e poderia citar a de Nietzsche e de Heidegger, dentro dessa mesma linha
de raciocínio. O problema de todos esses autores foi justamente esse (e seu
pensamento é ainda predominante na academia): eles não se limitaram a propor
uma visão de mundo sem Deus, matar Deus, arrancar Deus da sociedade e do
coração humano. Eles pretenderam desqualificar qualquer pessoa que tenha uma
visão teísta do universo: para Marx, os que acreditam seriam alienados; para
Freud, seriam neuróticos (a religião é uma espécie de patologia psíquica); para
Nietzsche e Heidegger, seriam seres fracos, que não têm a coragem suficiente de
assumir que a vida não tem sentido, que o universo não tem causa… Convenhamos
que não é nada favorável ao diálogo e à convivência pacífica com o outro,
qualificar-se a sua posição filosófica ou religiosa, como alienação,
insanidade, fraqueza de caráter – em suma, burrice!
Outro aspecto mencionado no vídeo é a Ética:
é possível uma Ética sem Deus? Obviamente que sim. Qualquer pessoa que conheça
um pouco de Filosofia sabe que há diversas proposições éticas que não se
ancoram num conceito de Absoluto – por exemplo, a ética marxista, a ética
utilitarista, o humanismo ateu etc…
Mas, daí a dizer que os princípios que esses
cidadãos estão defendendo – como fraternidade, igualdade, respeito à vida ou
coisa que o valha – não estejam vinculados a nenhuma religião… é um
desconhecimento completo de História. Tomemos o conceito de igualdade, por
exemplo, esse mesmo defendido pelo marxismo e por todo o ideário dos Direitos
Humanos e das Constituições: antes de Jesus, que, para mim não é Deus, mas por
acaso também não era ateu, não havia em nenhuma sociedade, em nenhuma
filosofia, em nenhuma corrente religiosa, a ideia explícita de igualdade entre
todos os seres humanos, independente de religião, casta, raça… Essa igualdade
proposta pelo cristianismo (apesar de não praticada por muitos cristãos) deriva
de um conceito de filiação divina. Embora no decorrer dos séculos, a ideia
tenha sido secularizada e até usada na bandeira da Revolução Francesa, não se
pode negar sua raiz cristã. Aliás, um ateu honesto como André Comte-Sponville
admite que, embora ateu convicto, há uma impossibilidade histórica para ele, de
pensar fora da civilização cristã, na qual cresceu e foi educado, e de que
carrega os valores intrinsecamente. Então, embora os ateus digam que não, eles
podem adotar e praticar valores que estão enraizados sim numa tradição
religiosa, de que descendem. É impossível negar a própria origem. Então, melhor
é respeitá-la, assim como eles pedem respeito pela sua posição.
Nota:
Quem quiser conhecer mais profundamente minha posição a respeito de Deus,
recomendo meu livrinho de bolso: Deus e deus, recentemente reeditado pela
Editora Comenius.
(*) paulistana,
nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são
Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo.
Excelentes reflexões. Tanto o vídeo, como os comentários da prof. Dora Incontri, favorecem esclarecimentos significativos sobre os temas abordados.
ResponderExcluirImperdível!
Vigorosa argumentação!
ResponderExcluirNenhuma surpresa, quando o artigo vem de Dora Incontri.
Senti-me defendido, pois também já experimentei esse preconceito em meio acadêmico e a sensação é de "gelar" a qualquer.
Abraço a ela e aos leitores do CANTEIRO DE IDEIAS.
Everaldo Mapurunga
Viçosa do Ceará
Elucidativo, simples e plástico. Uma obra de arte. Roberto Caldas
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