Uma causa com certos tipos de amigos não
precisaria de inimigos. Reduzir o nível de oportunidade do espiritismo ao seu
aspecto moral é mal conhecê-lo. A isso já bem respondera Kardec em seu artigo O
que ensina o espiritismo, no qual prova que, fora do ensinamento puramente
moral, os resultados do espiritismo não são tão estéreis quanto pretendem
alguns.[1] O mestre lhes é, por isso, um incômodo permanente, razão pela qual
sempre buscam levantar-lhe fraquezas, a fim de tentarem minar o poder que sua
obra, e só ela, tem de conferir ao espiritismo unidade consistente, afastando-o
das propostas em que vale quase tudo se em nome do “amor”. O pretenso erro mais
levianamente explorado é o suposto racismo de Kardec. Mas como poderia ser
propriamente um racista alguém que escreveu, por exemplo, isto:
“[...] o espiritismo, restituindo
ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da
inteligência sobre a matéria, faz que desapareçam, naturalmente, todas as
distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e
mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos
preconceitos de cor”.[2]
“[...] do estudo dos seres
espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem
idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem
para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das
fases da vida do espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral;
que em vista desse avanço o espírito pode sucessivamente revestir envoltórios
diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da
igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de
todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que
ensina o espiritismo.”[3]
Porém, deve-se considerar que, no século 19,
o conceito de raça tinha status de ciência, sendo a chamada branca, ou
caucásia, tida e havida por superior. Naturalistas e até abolicionistas
pensavam assim. O mais polêmico de todos os escritos pinçados por detratores de
Kardec sequer foi por ele publicado, em que dizia a certa altura:
“O negro pode ser belo para o
negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto,
porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos
instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a
evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito
fino”.[4]
No entanto, omite-se o parágrafo seguinte, em
que a pretensa condição superior daquela geração foi duramente relativizada
pelo mestre espírita, dando prova de que se tratava, nele, não de preconceito
ou discriminação, mas de uma inferência impregnada da opinião científica
daquele momento, tipicamente eurocêntrico:
“Daí o podermos, sem fatuidade,
creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode
ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes
com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas
não os tomarão pelos de alguma espécie de animais”.[5]
Parece mesmo que o inconveniente ao nosso
tempo foi Kardec ter usado um exemplo contemporâneo. Se escrevesse “homens da
caverna” em vez de “negros e hotentotes”, nada hoje se diria. Ou será que o
trabalho dos espíritos não aprimora os instrumentos de que se servem ao longo
de milênios? Isso, claro, não tem valor pontual. Uma pessoa “feia” não é dona,
a priori, de um espírito involuído, nem uma pessoa “bonita” é a encarnação de
um espírito necessariamente avançado. Kardec defendia, antes de tudo, que a
evolução dos espíritos opera a evolução dos corpos; ou serão mesmo casuais as
mutações adaptativas? Parte alguma têm os espíritos nisso?
“10. [...] o corpo é
simultaneamente o envoltório e o instrumento do espírito e, à medida que este
adquire novas aptidões, reveste um envoltório adequado ao novo gênero de
trabalho que deve realizar, assim como se dá a um operário ferramentas menos grosseiras,
à medida que ele é capaz de fazer uma obra mais delicada.
11. Para ser mais exato, é preciso
dizer que é o próprio espírito que modela o seu envoltório, adequando-o às suas
novas necessidades. Ele o aperfeiçoa, desenvolve e completa o seu organismo à
medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades; em uma
palavra, ele o talha de acordo com a sua inteligência. Deus lhe fornece os
materiais, cabendo a ele empregá-los. É assim que as raças mais adiantadas têm
um organismo, ou, se preferirem, uma ferramenta mais aperfeiçoada do que as
raças mais primitivas. Assim também se explica o cunho especial que o caráter
do espírito imprime aos traços fisionômicos e às linhas do corpo [...]
15. [...] Corpos de macacos podem
muito bem ter servido de vestimenta aos primeiros espíritos humanos,
necessariamente pouco adiantados, que tenham vindo encarnar na Terra, essas
vestimentas foram as mais apropriadas às suas necessidades e mais adequadas ao
exercício das suas faculdades que o corpo de qualquer outro animal. Ao invés de
ser feita uma vestimenta especial para o espírito, ele teria achado uma pronta.
Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser espírito humano, assim
como o homem, não raro, se veste com a pele de certos animais sem por isso
deixar de ser homem.
16. [...] pode-se dizer que, sob a
influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o
envoltório se modificou, embelezou-se nos detalhes, conservando sempre a forma
geral do conjunto. Os corpos aperfeiçoados, ao se procriarem, reproduziram-se
nas mesmas condições [...].”[6]
Outra objurgatória é a que costuma atingir o
presidente espiritual da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: São Luís.
Antes de tudo, saiba-se que, na S.P.E.E., era frequente os guias se comunicarem
por médiuns distintos e em épocas diferentes. A resposta de São Luís pode ter
sido vazada na forma infracitada por imperfeição do trabalho de um só desses
médiuns. Seria precipitado malsinar o espírito com base nessa única situação,
sem evidência de isso corresponder, nele, a um padrão inferior qualquer.
Na evocação do “negro Pai César”,[7] além do
mais, o médium atua como intermediário de dois espíritos: São Luís, que auxilia
nas respostas, e Pai César, submetido a essa ajuda. Existe a possibilidade de o
médium não ter filtrado bem os recados, ou os ter entrecruzado. A opinião, ao
demais, de que a brancura conferia superioridade é, ali, não de São Luís, mas
do Pai César, e ainda assim, não por conta da cor branca em si, mas das
relações de poder naquela sociedade.
O espírito chega a dizer que estava mais
feliz que na Terra porque seu espírito não era mais negro; isto é, por não
estar mais sujeito às humilhações aqui sofridas, não sendo o espírito rico ou
pobre, homem ou mulher, velho ou criança, negro ou branco. Todavia, numa
inesperada inferência, dada sua condição, afirmou o Pai César que os brancos
eram orgulhosos de uma “alvura” de que não eram a causa. Parece mais São Luís,
aí, do que Pai César.
De qualquer forma, causa estranhamento a resposta
ao n. 9: “[A São Luís]. – A raça negra é de fato uma raça inferior? Resp. – A
raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da
vossa”.[8] Agora já pareceu mais Pai César algo frustrado com sua encarnação
anterior do que São Luís, o qual responde assim à última pergunta de Kardec:
“12. [A São Luís]. – Algumas vezes
os brancos reencarnam em corpos negros? Resp. – Sim. Quando, por exemplo, um
senhor maltratou um escravo, pode acontecer que peça, como expiação, para viver
num corpo de negro, a fim de sofrer, por sua vez, o que fez padecer os outros,
progredindo por esse meio e obtendo o perdão de Deus”.[9]
Não há muito, apareceu “Nota Explicativa” da
Federação Espírita Brasileira repelindo qualquer possibilidade de inferência discriminatória
ou preconceituosa na doutrina espírita bem entendida; motivada foi, contudo,
por atuação do Ministério Público Federal. A F.E.B., data venia, sempre foi
mais dedicada a consignar notas que contestem Kardec, como a que corresponde à
Gênese, XV, 66, na qual defende o rustenismo no momento mesmo em que Kardec o
sepultava. Eis, pois, a nota da F.E.B. ao título da “Nota Explicativa”,
esclarecendo a situação da feitura da peça:
“Nota da Editora: Esta ‘Nota
Explicativa’, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem
por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em
alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela
sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na
doutrina espírita”.[10]
Dada a relevância do assunto, todavia, é de
se lamentar que as referências das citações da Revista Espírita nessa Nota
Explicativa febiana hajam sido registradas algo descuidadamente. Das cinco
citações diretas da Revista, nenhuma é vinculada ao tópico a que corresponde e
só duas indicam o mês, o que dificulta sobremodo encontrá-las, e às demais, nos
volumes de outras editoras. Por sinal, um dos textos foi reproduzido sem menção
ao número de sua página nas edições da própria F.E.B. e, ainda, reportando-se
ao mês errado. Onde se lê: “janeiro de 1863”, leia-se: “p. 87, fevereiro de
1863”:
“Nós trabalhamos para dar a fé aos
que em nada creem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os
outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem
distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa
palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de
fraternidade e deveres sociais”.[11]
Outro escrito significativo de Kardec a
respeito é o que passo a transcrever na sua íntegra, sem negligenciar o
parágrafo final, inexistente nas edições febianas e congêneres e, por
conseguinte, na sua citação constante da Nota Explicativa da F.E.B.:
“Com a reencarnação desaparecem os
preconceitos de raças e de classes, pois que o mesmo espírito pode renascer
rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou
escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça
da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte,
nenhum há que supere em lógica o fato material da reencarnação. Se, pois, a
reencarnação fundamenta sobre uma lei da natureza, o princípio da fraternidade
universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o princípio da igualdade dos
direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.
Os homens só nascem inferiores e
subordinados pelo corpo; pelo espírito eles são iguais e livres. Daí o dever de
tratar os inferiores com bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que
hoje é nosso subordinado pode ter sido nosso igual ou nosso superior, pode ser
um parente ou um amigo, e nós, por nossa vez, podemos vir a ser o subordinado
daquele que hoje comandamos”.[12]
Portanto, a acusação de racismo a Kardec e ao
espiritismo nunca poderá superar o vício do anacronismo. Sob esse ponto de
vista, Kardec não seria mais racista do que qualquer europeu de seu tempo,
porém, com esta vantagem soberba: se os erros da ciência de época o autorizaram
a crer em raças primitivas e que podemos nascer inferiores e subordinados pelo
corpo, a isso nunca deixou de contrapor a medida libertária do pensamento
espírita, isto é, pelo espírito somos iguais e livres, não somos homens ou
mulheres, crianças ou velhos, ricos ou pobres, brancos ou negros, o que o
acabou levando à defesa contundente, como se viu, da igualdade dos direitos
sociais de todas as criaturas humanas e da abolição dos privilégios de raças.
Com os avanços da biogenética, demonstrado
está não existirem genes raciais na espécie humana. Somos, claro, mais
evoluídos biologicamente que nossos ancestrais antropoides. Esta, a única
evolução, aliás, admitida pela ciência. Caso se fale numa evolução espiritual,
moral, ou mesmo cultural, é-se ignorado ou repreendido, porque o espírito, ou a
reencarnação, ainda são irrelevantes para a ciência, assim como Deus. Entretanto,
espíritas por definição, não podemos falar e pensar como agnósticos, ateus,
materialistas, niilistas. Se, por um lado, o espiritismo nos impõe acompanhar a
ciência naquilo que particularmente a esta diz respeito, é-nos interdito
negligenciar o próprio espiritismo no que a este compete exclusivamente.
Por isso, dizemos hoje, os espíritas, que não
há raças humanas, menos ainda inferiores ou superiores, de comum acordo nisto
com a ciência, mas igualmente afiançamos que, sim, os espíritos, mediante a reencarnação,
constituem os artífices da evolução biológica. As mutações que findam por
selecionar os mais aptos não são casualmente adaptativas. Como dizia o mestre
espírita por excelência:
“Um acaso inteligente já não seria acaso”.[13]
[1] Revista Espírita. Ago/1865.
[2] Revista Espírita. Out/1861. Discurso do
Sr. Allan Kardec. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 432.
[3] Revista Espírita. Jun/1867. Emancipação
das Mulheres nos Estados Unidos. F.E.B., 2007, 2.ª ed, p. 231.
[4] Obras Póstumas. Teoria da Beleza. F.E.B.,
2002, 32.ª ed., p. 168.
[5] Id., ibid.
[6] KARDEC. A Gênese, XI. Léon Denis Gráfica
e Editora, 2008, 2.ª ed., pp. 235/36 e 237.
[7] No francês: “le nègre Pa César”.
[8] Revista Espírita. Jun/1859. O negro Pai
César. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 245.
[9] Id., ibid.
[10] Revista Espírita. ANO I. 1858. F.E.B.,
2009, 4.ª ed., p. 537.
[11] KARDEC. Revista Espírita. Fev/1863. A
Loucura Espírita. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 87.
[12] KARDEC. A Gênese, I, 36. Léon Denis
Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Com base na 4.ª ed. francesa.
[13] O Livro dos Espíritos. Comentário ao n.
8.
Muito esclarecedor!
ResponderExcluirParabéns Sérgio!
Aleixo mais uma vez É CIRÚRGICO intervindo numa discussão que, se não cansativa, abusiva e míope. Só as mentes de compreensão muito parcial poderiam julgar o pensamento espírita excludente e depreciativo às diferenças. Roberto Caldas
ResponderExcluirDesconhecia que alguém atribuísse ao Mestre Lionês o caráter discriminador.
ResponderExcluirHá de tudo! A ignorância e a interpretação literal põem tudo a perder.
Mas a defesa, mui coerente e oportuna, coloca o assunto em pratos limpos.
Gostei.
Everaldo Mapurunga
Viçosa do Ceará