Por Dora Incontri (*)
Hoje se deu uma cena em nosso café da manhã,
que me levou a tecer essas reflexões e voltar ao blog, de que andei distante
alguns meses, por excesso de trabalho.
Estávamos em família, na presença de meus
sobrinhos, discutindo a questão do vegetarianismo e do veganismo, com prós,
contras, dificuldades de adesão, perspectivas futuras etc. E então, bem nesse
momento da conversa, adentrou na sala meu gato branco, Gorki, por quem sou
apaixonada, e provocou uma gritaria generalizada e o choro do meu sobrinho
pequeno. Triunfal e desafiador, Gorki carregava um filhote de passarinho
agonizante. Um passarinho que víamos por aqui nos últimos dias, em cima do
muro, alimentado pela mãe. Por alguns minutos, o bichinho se debateu entre os
dentes de Gorki e depois morreu.
Grande comoção entre todos. Compaixão,
repreensão ao gato, que apenas cumpria seu instinto de caça.
Mas, em cima da mesa, tínhamos peito de peru
(que vem também de uma ave)…
Então pensei na distância evolutiva que nos
separa do gato e considerei que de fato devemos superar rapidamente esse
instinto de caça, que nos assemelha aos felinos, tão belos, mas que ainda vivem
sob o jugo do determinismo biológico e não no plano da liberdade, como nós,
humanos.
O que se dá é que o ato brutal da morte – e o
que é pior, da tortura que envolve a vida inteira dos animais explorados pela
indústria alimentícia – está distante dos nossos olhos. Não vemos, como vimos
hoje no café da manhã, o bichinho se debatendo para morrer. O produto nos chega
ao prato já disfarçado. Depois de ter passado por inúmeros processos,
compramo-lo numa embalagem que em nada lembra um matadouro – o que nos impede
muitas vezes de tomar consciência do que estamos comendo. Ninguém hoje ali no
café da manhã poderia imaginar comer o passarinho agonizando aos nossos olhos.
Todos nos vimos possuídos de compaixão e náusea. E no entanto, estávamos
comendo um produto que veio da carne de centenas de aves abatidas, que passaram
por uma agonia muito mais cruel e prolongada do que a experimentada ali pelo
pássaro, caçado por Gorki.
Hoje, graças à internet, às redes sociais,
aos vídeos no youtube, às campanhas virtuais, podemos diminuir essa distância
que existe entre aquilo que comemos e a origem dessa comida. Matadouros,
indústrias alimentícias frequentam aos montes nossas páginas, provocando a
indignação de muitos. Assim, vemos que cada vez mais pessoas no mundo tem se
comovido com o sofrimento dos animais e tem se engajado em movimentos de
abolição da carne na dieta humana. Está crescendo essa consciência a olhos
vistos. Mas há outros tantos que zombam, riem e se refugiam em bifes
sangrentos, afirmando que a carne se alimenta da carne.
Se um dia foi necessário, mas não
absolutamente imprescindível do ponto de vista biológico (porque nosso
intestino longo indica que somos naturalmente herbívoros), que nos
alimentássemos da matança de animais, hoje sabemos cientificamente que não
temos precisão de carne para sobrevivermos fortes e saudáveis. Ao contrário, a
carne – sobretudo a vermelha e sobretudo essa carne industrializada cheia de
hormônios e antibióticos – é mesmo prejudicial à saúde.
Já estamos a milhares de anos de nossa
entrada no reino humano e continuamos exercendo nosso instinto de caça. Mas é
verdade que, nesses milhares de anos, aprendemos também a cuidar. E cuidamos
(embora muitos ainda torturem, abandonem e até os comam) de gatos, cachorros,
passarinhos, cavalos… Nossa atitude em relação aos animais revela bem nosso
estado evolutivo. Caçadores brutais aprendendo pouco a pouco a cuidar dos
outros seres vivos. Estamos no meio do caminho, mas urge avançar com mais
afinco na direção de superar os instintos felinos, para assumirmos nossa
posição de humanos cuidadores.
É verdade que o caminho é difícil: o atavismo
da carne, o cheiro do sangue ainda atrai a muitos. Há ainda tantos nesse mundo
que não se satisfazem apenas com o sague dos animais, mas ainda se embriagam
com o sangue humano, nas guerras, nos massacres, nos assassinatos individuais
ou em massa.
E o instinto de caça não se manifesta
tampouco apenas na matança de animais: quando vemos homens estuprando mulheres
ou pedófilos roubando a inocência da infância – todos esses gestos, que povoam
fartamente nosso mundo, revelam o quanto de brutalidade existe ainda nos seres
humanos.
O que poderia então nos levar a um mundo em
que essa selvageria toda passasse a ser um pesadelo do passado? O que fazermos
para caminhar firmemente na direção do cuidar, superando a fase da caça?
A resposta como sempre está na educação
A nossa educação é, como sempre costumo
dizer, um processo de dessensibilização. As crianças que hoje presenciaram a
morte do passarinho ficaram extremamente compadecidas e tocadas. O mais novo
ficou mais chocado. O mais velho menos. Esse mais velho, anos atrás, me disse
que eu não deveria nunca jogar chicletes nas ruas, porque os passarinhos
poderiam se confundir, pensando que fosse algo realmente doce e enroscarem o
bico no chiclete, morrendo de fome ou sufocados. Na semana passada, flagrei-o
querendo jogar o chiclete no jardim e perguntei: você não me disse que não era
para fazer isso? Resposta: “eu não estou ligando muito mais para isso”.
O que faz com que a criança “não ligue mais
para as coisas” diante das quais ela costumava se mostrar sensível, indignada,
curiosa, perguntadeira, engajada? É justamente esse processo de escolarização
que mata a sensibilidade, embota a compaixão, cala a indagação e abafa a
investigação.
Claro, de um lado o embotamento provocado
pela escola, do outro a excitação dos instintos de caça, agressividade e posse,
através de certos filmes, jogos, propagandas na TV… e de outro ainda, o
despertar do atavismo milenar que todos trazemos de um passado de violência e
dominação… e estão feitos o homem e a mulher (embora mais o homem) insensíveis,
competitivos, caçadores, que tratam o outro – ser humano ou animal – como coisa
a ser conquistada, destruída, devorada.
Há um lado divino em todos nós que se
manifesta na primeira infância – são raras as crianças, que por um ímpeto do
passado ou por uma violência sofrida agora, se mostram insensíveis. Esse lado
divino, que chora com a morte de um passarinho, tem que ser mantido,
estimulado… Esse lado divino não poderia sucumbir, e sucumbe, numa família
negligente, apenas preocupada com valores materiais; numa escola seca,
competitiva; numa sociedade de consumo em que a própria criança nada vale,
porque nos interessa apenas fazer dela um consumidor obeso e desejante…
A criança que mantivesse a sua compaixão
pelos animais, a criança que fosse estimulada em sua sensibilidade diante da
natureza, a que fosse garantida uma formação sólida, crítica e consciente –
essa criança será, sem nenhum sacrifício, vegetariana.
É para isso que esperamos caminhar!
¹ postado originalmente em 17.06.2014, no blog www.doraincontri.com
(*)paulistana,
nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são
Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado,
doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP.
Viva aos vegetarianos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ...é triste gostar de comer uma carne que é derivada do sofrimento. :( ............barreiras a superar!!!!!!!! Grande artigo e belo felino!!
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