Por Dora Incontri (*)
Dois fatos nessas últimas semanas deflagraram
essa minha reflexão a respeito de uma tendência cada vez mais forte em nossa
sociedade – eu a chamaria de tendência repressiva, autoritária, policialesca. A
ideia de que tudo deve se resolver com punição, violência, coerção, sempre fez
parte da história da humanidade. Vejam-se as prisões cruéis, as penas de morte,
as torturas, as ameaças de inferno das religiões, as inquisições etc…
Entretanto, nos últimos séculos, há muitos pensadores, defensores do direito, educadores,
humanistas, que trabalharam com ideias mais elevadas, com propostas mais
misericordiosas, com princípios mais humanos! Mas há momentos em que os
partidários da “porrada” gritam mais alto que os defensores do humanismo, dos
direitos humanos, do respeito à dignidade, do diálogo como forma de resolução
de conflitos e como método de ação social. E considero que no Brasil estamos
hoje atravessando uma fase dessas. Um retrocesso, portanto.
Duas cenas me impressionaram. A primeira foi
a presença da polícia numa escola infantil, chamada por uma professora em
Piracicaba, para uma criança de 3 anos, porque ela estava mordendo e chutando!
E a outra, a repressão violenta da polícia em cima dos alunos da USP. O pior é
que no caso de Piracicaba, a diretora da escola não disse nada, a polícia foi
até a escola e a criança foi levada à delegacia. E o pior é que no caso da USP,
centenas de pessoas no Facebook (inclusive muitas cristãs, espiritualistas e
espíritas!!) gostaram, apoiaram e fizeram publicidade do método de “bater nos
baderneiros, nos maconheiros” ou coisa que o valha!
Outra notícia grave que está percorrendo a
internet (e com o apoio de muitos) é a proposta de mudança do ECA (Estatuto da
criança e do adolescente) para criminalizar as agressões e “desrespeito” dos
alunos aos professores!
Esses sintomas revelam algo muito grave em
nossa sociedade: acreditamos muito mais na polícia, na repressão, na punição –
leia-se vingança social – do que na educação. Colocar a polícia em cena em
locais onde se pretende fazer educação é declarar a falência da própria
educação! Tratar crianças e estudantes como bandidos (por mais que estejam
agredindo e se revoltando – então temos que descobrir as causas dessa revolta e
tratá-las – a educação é justamente para isso!) é mostrar que não acreditamos
na força do diálogo, da construção de personalidades autônomas e pensantes, que
não damos o mínimo valor ao que uma boa educação – quando cultivada – consegue
fazer: trazer à tona o divino que existe em todas as criaturas, para que elas
sejam melhores…
A atribuição de responsabilidade criminal a
crianças e adolescentes já acontece, embora não se assuma isso, porque
comparecem em condição humilhante diante de juízes, quando deveriam ser
orientadas em terapias, assistidas socialmente e trabalhadas afetivamente, para
se recuperarem dos traumas que passaram nas ruas, com os abusos e violências
recebidas, com o abandono dos familiares. Mas a sociedade não está satisfeita:
quer a diminuição da maioridade, quer criminalizar agressões dentro da escola!
E o que a sociedade faz pelas crianças? Que estímulos positivos dá? Que
educação oferece em escolas públicas que mais parecem presídios que escolas?
Aliás, deveria ser o contrário: os presídios deveriam mais parecer escolas e
não escolas parecerem presídios. Isso revela o quão pouco fazemos pela
educação. Quando pensarmos em todos os níveis, mais em educação que punição,
mais em investimento no que é positivo do que em repressão ao que é negativo,
mais em oferecer alternativas de vida, de aprendizagem, de esperança e sonho,
do que impor limites, regras, amarras… então estaremos de fato contribuindo
para a melhoria da escola, das crianças, dos jovens, das universidades e da
sociedade em geral.
Façam-se das escolas lugares com boa música,
com flores, com natureza, com professores estimulados, bem renumerados,
capacitados, amorosos… Façam-se escolas com teatro, poesia, com cores, com
escolha livre de projetos interessantes e não com aulas mortas, em classes de
40 pessoas, diante de uma lousa… Façam-se escolas onde de fato se aprenda, com
computadores, com midiatecas bem equipadas, com laboratórios, material didático
farto e de ponta… Façam-se escolas com corais, orquestras, grupos de dança… E
não haverá mais problemas de disciplina, evasão, agressão… Há diversas
experiências no Brasil e no mundo que demonstram isso!
Façam-se universidades onde se recupere a
espiritualidade e onde se discutam questões existenciais (vi várias pessoas
dizendo que os maconheiros deveriam ser presos – mas o que se oferece em termos
de sentido existencial, em estímulo de vida, a uma juventude que só vê
nihilismo nas faculdades e consumismo na sociedade?)… Façam-se universidades,
onde se aprenda a dialogar e a pensar, onde se pense mais socialmente… Façam-se
universidades que deem perspectivas de trabalho, de transformação da sociedade
e não se faça tudo apenas para encaixar o indivíduo robotizado num mercado
desumano… E os jovens terão outros ideais do que esses que apoiam a polícia
dentro da universidade e do que esses que se entopem de bebida e drogas!
Quando tivermos essas escolas e essas
universidades, dispensaremos polícias, repressões e punições – porque quando
bem estimulado, quando despertado para o melhor que traz dentro de si, pela
arte, pela espiritualidade saudável (não pela religião fanática), pelo amor
recebido de verdadeiros mestres, o ser humano mostra a sua divindade e
desenvolve suas potencialidades de maneira harmoniosa e útil, para si e para o
mundo!
Entendamos que a violência, a punição, a
repressão, humilham, causam mais revolta, pioram o ser humano, que se já está
em crise, se torna um bicho acuado. Ao passo que o diálogo, o respeito, a
confiança, a construção paciente e humana de um processo pedagógico restaura a
integridade da pessoa e a torna melhor.
Lembro aqui da experiência maravilhosa de
Padre Flanagan nos Estados Unidos, nas décadas de 30 e 40, com a construção da
Cidade dos Meninos (Boys’ Town), até hoje existente (hoje Girls’ and Boys’
Town). Nos primeiros 10 anos, passaram por lá 4 mil meninos, considerados
delinquentes, alguns já com crimes cometidos, e qual foi o índice de
recuperação dessas crianças? 100%. O método usado: amor, liberdade, confiança.
Os meninos geriam a cidade, elegendo prefeitos em assembleias; havia oficinas,
música, religiosidade plural (estimulava-se que cada um praticasse a religião
própria). Não havia muros, as portas ficavam abertas, não havia guardas,
policiais, celas, punições… Havia a possibilidade de construir uma nova vida,
sob a liderança de um padre amoroso, que dizia: “Não há meninos maus! Há má
educação, maus estímulos, más companhias!”.
O problema fundamental dos repressores é que
eles não acreditam na bondade humana. São amargos, pessimistas, não creem que o
amor possa despertar o anjo que mora em nós, mas acham que a violência tem que
reprimir o bicho que somos. No entanto, se essas pessoas, que assim pensam (e
são muitas) se autodenominam cristãs, deveriam lembrar-se de algumas palavras
de Jesus:
“O reino de Deus está dentro de vós!” e “Vós sois deuses” – isso significa que
todos temos uma bondade essencial que precisa ser tocada e despertada.
“Perdoai setenta vezes sete!” e “Misericórdia quero, não sacrifício!” –
quanto mais isso se aplica com uma criança, um adolescente, que estão
começando, que precisam de afeto, orientação e compreensão!
“Deixai vir a mim os pequeninos, porque deles
é o Reino dos Céus” – Jesus disse que era preciso nos fazermos como crianças
para entrarmos no Reino, isso significa uma primazia da inocência, da pureza e
da bondade natural da criança. Se ela agride, se está desajustada, ela está
reagindo a uma situação negativa, está com um problema que tem que ser
resolvido amorosamente. Ela não é má, não está endiabrada (como querem as
professoras evangélicas, que andam fazendo exorcismo dentro das escolas
públicas – isso será objeto de outro artigo), não é uma peste!!! Ela precisa de
amor e ajuda.
“Amai os vossos inimigos e fazei bem aos que
vos perseguem”. O que isso significa? Essa é a essência da mensagem de Jesus:
combater o mal com o bem e não nos tornando piores que os agressores. Acender
uma luz para dissolver as trevas e não nos tornando inquisidores dos que
achamos que estão errados (e às vezes nem errados estão!).
Fica então essa mensagem, que é de Jesus, de
Gandhi, de Buda, de Confúcio, de Francisco de Assis e dos grandes educadores,
como Comenius, Pestalozzi, Eurípedes… O dia em que acreditarmos na força do
amor, da bondade, do diálogo e da compaixão, deporemos nossas armas internas e
vamos arar os corações com instrumentos de paz!
¹ publicado originalmente em 16.11.2011 - http://doraincontri.com/2011/11/
(*) jornalista, educadora e escritora. Suas áreas
de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem
mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP.
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