25.09.2014 - ANIVERSÁRIO DE 100 ANOS DE NASCIMENTO DE JOSÉ HERCULANO PIRES
Por Dora Incontri (*)
Fotos de Herculano Pires (1914-2014) |
Lembranças
da adolescência
Escrever sobre o mestre Herculano é para mim
um dever e um deleite, pois o despertar de minhas propostas existenciais nesta
vida se deu sob a sua influência. Eu o admirava com fervor durante minha
infância e adolescência, a ponto de ficar horas prestando atenção nas
conversas que mantinha com a multidão de pessoas que frequentava sua casa,
bebericando o café de D. Virgínia. Esta, sempre muito preocupada, queria me
arranjar outras crianças para brincar, queria me dar alguma tarefa mais de
acordo com minha idade… mas eu teimava em ficar na sala, embora fosse grande
amiga da neta Regina, com quem costumava me entreter.
Desde os 11, comecei a receber poemas
psicografados. Herculano os escutava, me estimulava e orientava. Aos 13 anos,
já estava decidida a me tornar escritora como ele. E ele me indicava livros,
discutia poetas de que gostávamos. Lembro-me de ele dizer o quanto apreciava
Cecília Meirelles. Falávamos dos escritores russos – outra paixão – sobretudo
Tolstoi, de quem ele tinha um retrato no escritório. Para fazer par, eu mandei
enquadrar um de Dostoievski, que lhe dei de presente de aniversário. Atento à
minha sede de aprender, o mestre me fazia dedicatórias esperançosas nos livros
que me dava. Aos 14 anos, fez-me um fantástico poema, A Hora de Dora. Uma
resposta a uma incipiente poesia que eu fizera em sua homenagem, cheia daquele
ardente amor filial. Nele, Herculano procurava me trazer para a realidade
presente, pois eu era muito fixada em recordações espontâneas de vidas
passadas:
Dora
cisma à luz da aurora
Musas
cantam céu em fora.
Dora,
Dora, por que chora?
Na
distância a lua agora
Fria
e trêmula descora,
Baço
espelho a Dora enflora
Tempo
antigo a Dora adora,
Dora
sonha, rememora…
Ora
às musas Dora ora
Morre
a lua em cada aurora,
Toda
aurora é cor de amora.
Canta
agora, Dora, Dora,
Da
poesia a voz sonora
Canta
e exalta a nova Dora
Céu
em fora terra em flora
Na
pletora de outra hora.
Dora
é Dora em cada hora,
Integrada
tempo em fora
Aos 15, inaugurei minha mediunidade de
psicofonia, numa reunião mediúnica dirigida por ele. Como eu era novata, fez
questão ele próprio de conversar com os três Espíritos que recebi logo na
primeira vez. Depois do terceiro, mandou que eu saísse da mesa, porque já
bastava para começo. Não me esqueço da doçura firme com que falava com os
Espíritos mais difíceis, nem da vibração de amor, com que suas palavras vinham
carregadas.
A participação nas reuniões mediúnicas,
dirigidas por Herculano, durou muito pouco. Logo em seguida, fui morar na
Alemanha, com minha família, pela segunda vez. Então, em janeiro de 1979, meu
irmão mais novo, Luis, ficou com hepatite em pleno inverno europeu. Apavorados
com a possibilidade de os médicos alemães, como era de praxe, isolarem o menino
num hospital de doenças infecto-contagiosas, viemos às pressas para o Brasil,
para que ele fosse tratado em casa. Foi a oportunidade de nos despedirmos de
Herculano.
No início de março, no dia 4, fomos lhe fazer
uma visita, meus pais, meu irmão, já curado, que Herculano chamava de Luigino,
e eu. Ele estava com muita dificuldade de enxergar, com uma catarata avançada.
Nas dedicatórias que nos fez, os emes tinham muitas pernas. A serenidade de
sempre, o acolhimento de costume mataram nossas saudades.
Na noite do dia 9 de março, meus pais haviam
saído e eu fiquei sozinha, em meu quarto, na casa da minha avó. Senti uma
inexplicável vontade de chorar. Não sabia por que a sensação de melancolia.
Entendi no dia seguinte, quando de manhã, recebemos o telefonema com a notícia
de que Herculano se fora na véspera.
A imagem que guardo dele, de seu rosto, de
seus gestos, de seu olhar é a da figura paterna, benevolente, bem humorada. Ao
mesmo tempo, lembro de sua inesgotável erudição, de sua paciência em ensinar,
de sua despretensão ao abordar os temas mais difíceis e transcendentes.
Tinha eu 16 anos, quando acabou essa relação
na terra, mas iniciou-se a leitura aprofundada e a crescente identificação com
seu pensamento. Ao mesmo tempo, em Espírito, sua inspiração nunca me falta, seu
olhar nunca se afasta.
Das mãos de Herculano, recebi a compreensão
da genialidade de Kardec e a veneração pelo mestre; recebi também o ideal da
Pedagogia Espírita. Seguindo seus passos, fui estudar jornalismo e adotei a
filosofia como objeto permanente de estudo. Obedeço ao seu conselho, em uma
dedicatória que me fez, tentando “viver a poesia em ritmo existencial” e
procuro dar minha contribuição para “aclarar os nevoeiros do mundo”. E ainda me
integrando “no tempo de Dora”, ajustada ao tempo de agora, para melhor atuar no
presente.
Esse testemunho pessoal parece-me relevante
para o entendimento do pensador. É que existe uma coerência vital entre o homem
e a obra. Não havia contradição entre o que escrevia, o que falava, o que fazia
e a vibração que irradiava. Herculano era um homem reto, bom, generoso,
sobretudo sincero. Nele não havia dissimulações, meias palavras, mas pessoalmente
não havia também agressividade. A exaltação que revelava às vezes nos escritos
era indignação justa, era ardor na batalha das ideias. Não era ódio, violência
ou qualquer sentimento antagônico que fosse – porque não havia nada disso em
Herculano. Era essencialmente sereno. Mas como ele mesmo explicou em sua obra O
Ser e a Serenidade, a serenidade existencial não exclui a defesa viril de uma
ideia ou a luta engajada por uma causa.
Lembro-me certa vez de uma conversa em
família. D. Virgínia, como defensora natural do marido, referia-se a certa
liderança do movimento espírita de São Paulo que (como outras tantas) havia
traído a confiança de Herculano e que, de amigo, passara a adversário…
Herculano, então, com palavras mansas, relatou um encontro que tivera com essa
pessoa na rua e como lhe estendera a mão, como se compadecera de seu estado
físico aparentemente doentio. Mas não dizia isso com nenhum laivo de pretensão
à santidade, nenhum exibicionismo de parecer superior. Era fraternidade
autêntica, era benevolência pura.
Era evidente que lutava por ideias,
apaixonadamente, mas não se deixava atingir por nenhum ressentimento ou
revolta contra as pessoas que pensavam diferentemente dele.
Jamais vi Herculano alterar a voz. Mas nunca
senti algo de excessivamente açucarado, que pudesse ensejar qualquer
desconfiança quanto à sinceridade absoluta do que dizia. Se tivesse que
caracterizá-lo com poucas palavras, escolheria estas três: coerência,
serenidade e benevolência.
O
reencontro na maturidade
Apenas mais tarde, porém, pude compreender a
pujança intelectual de Herculano Pires. Quando me aprofundei em suas obras e
nas de Kardec é que pude aquilatar a contribuição única que Herculano dera ao
desenvolvimento do espiritismo.
A primeira dessas contribuições está na
própria compreensão da ideia espírita. Tratando-se de uma revolução conceitual,
uma quebra de paradigma, um passo inédito na história do conhecimento – a sua
dimensão e o impacto renovador de suas propostas ainda não foram entendidos
pelos seus adeptos mesmos, que o tocam apenas superficialmente, carregados dos
vícios religiosos do passado, incapazes de singrarem nos mares abertos,
descortinados por Kardec.
A maioria dos espíritas no Brasil aceita o
espiritismo como mais uma religião apenas, embora mantenham o discurso do
tríplice aspecto. Herculano soube sondar as profundidades da obra de Kardec,
entendendo-a como uma revolução cultural, como uma proposta pedagógica, como
ciência nova, como filosofia inédita, sem negar seu aspecto religioso.
Muitos espíritas – ouvia eu desde pequena
murmúrios neste sentido – o consideravam fanático por Kardec, mas Herculano
não tinha nenhum laivo de fanatismo, era aliás uma pessoa avessa às
idolatrias. O caso é que ele entendeu como ninguém o papel de Kardec no
espiritismo. Ainda hoje, a maioria dos espíritas tem a ideia equivocada de que
Kardec teria apenas organizado (por isso a ênfase na palavra codificador) uma
revelação pronta, dada pelos Espíritos. Entretanto, apesar de ter havido sim
uma revelação, a estruturação da filosofia espírita e a criação de uma
metodologia de abordagem científica foram do homem Kardec. Herculano colocou em
relevo esta contribuição de mestre.
Fez isso, não de maneira histórica,
inserindo-o no seu contexto, mas na contemporaneidade, com que travou
permanente diálogo. Como jornalista-filósofo, Herculano esteve sempre ligado à
realidade, ao turbilhão de ideias do seu tempo e procurou mostrar a conexão
do pensamento espírita com o processo evolutivo da filosofia, das pesquisas e
da história humana. Temos assim não um mero divulgador de ideias espíritas do
século XIX, mas um pensador que pensou espiritamente o século XX.
Essa é a função de todo conhecimento vivo. O
espiritismo não pode se tornar letra morta, bíblica, que adotamos de forma
postiça, como um credo fechado. É uma nova maneira de ver, pensar e sentir o
mundo e assim pode iluminar o progresso do pensamento humano, interagindo com as
ciências, as filosofias, as correntes pedagógicas.
Isso, porém, não é ecletismo. Certa vez,
muitos anos atrás, ainda no início da minha jornada intelectual, travei
conhecimento em Portugal com uma pessoa formada em Filosofia e ela me dizia
indignada que Herculano era eclético. Como se sabe, tal adjetivo é altamente
pejorativo no meio acadêmico, porque significa colocar diferentes elementos,
díspares, numa proposta de pensamento – o que revelaria superficialidade e
falta de conhecimento aprofundado das nuanças das diversas correntes. Uma
salada mista, em suma. Essa crítica na época me irritou sobremaneira, mas foi
excelente desafio, porque mergulhei com mais afinco do pensamento de Herculano,
para desmentir a acusação. Nunca mais encontrei essa pessoa, mas depois de mais
de 20 anos de estudo das obras de Herculano e tendo percorrido os bancos
acadêmicos da graduação ao pós-doutorado, posso afirmar com toda certeza que
não há o mínimo ecletismo em Herculano.
O filósofo de Avaré nunca perde a identidade
do pensamento espírita, mas compreende que faz parte dessa identidade o
enxergar os elos com outras formas de pensamento e entender a história das
ideias humanas como uma construção coletiva de conhecimento e descoberta da
verdade. Assim, dialogar e integrar evita o dogmatismo e a estagnação, mas o
eixo da racionalidade metodológica, proposta por Kardec, é o que dá sentido e
nos faz ver as possíveis conexões.
Podemos portanto dizer que o pensamento de
Herculano Pires é amplo e aberto e por isso mesmo fiel aos princípios lançados
por Kardec.
Foi essa leitura estimulante que me levou ao
trabalho que tenho procurado realizar de encarar o espiritismo como proposta
cultural abrangente, estabelecendo um diálogo com o conhecimento acadêmico,
para que ele não se feche nos guetos dos centros espíritas, apenas como forma
de manifestação religiosa, e ainda muito carregada de misticismo.
(*)jornalista, educadora e escritora. Suas áreas
de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem
mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É
sócia-diretora da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação
Brasileira de Pedagogia Espírita.
De encher a alma!
ResponderExcluirQue Dora e o Canteiro continuem nos brindando com estes presentes.
Everaldo Mapurunga
Viçosa do Ceará
Justa homenagem ao "metro" que melhor mediu Allan Kardec.
ResponderExcluirQue nosso irmão José Herculano Pires receba as nossas vibrações de carinho e agradecimento .
Luiz Acioli
Fortaleza-CE