Júlio Peres (*)
As neurociências têm trazido importantes
avanços relativos à compreensão da “linguagem” neural. Por exemplo, o
treinamento de controle de um braço robótico através de um circuito fechado de
interface cérebro-máquina é possível hoje em macacos, e num futuro próximo
possivelmente ocorrerá em humanos (Nicolelis and Chapin, 2002). As implicações
terapêuticas serão marcantes em vítimas de traumas que interromperam a
comunicação entre o cérebro preservado e a motricidade dos membros.
O desafio maior de uma parte considerável das
neurociências é decifrar como correntes de pulsos elétricos/químicos, varrendo
o sistema nervoso central são, de alguma maneira, traduzidas em consciência,
pensamentos e emoções. A despeito dos avanços, a possibilidade da leitura
computacional da linguagem neural não esclarece a questão da criação ou
mediação cerebral em relação aos fenômenos mentais. Contudo, a hipótese de que
a mente seja um epifenômeno (subproduto) neural motivou pesquisadores a
reproduzir artificialmente as redes computacionais visando em última instância
a criação do “Eu”.
Estudos sobre comportamentos intermediados
por processos neurais inconscientes (memórias implícitas, reflexos cognitivos,
tratamento de estímulos sensoriais e ações/respostas automáticas, etc.)
suportam o funcionamento cerebral como um refinado sistema computacional. As
abordagens neurocientíficas convencionais postulam não conclusivamente que a
consciência seja uma propriedade emergente de interações complexas entre os neurônios.
Contudo, se fosse possível realmente
reproduzir um sistema nervoso, essencialmente neurônio por neurônio, numa
bancada computacional, a consciência se manifestaria? Estudiosos da
Inteligência Artificial (IA) como Christof Koch, Terry Winograd e Hans Moravec
respondem que sim e inferem que as propriedades físicas do cérebro e do sistema
nervoso criam a mente. Uma importante parcela de investigadores acredita ser
possível construir algoritmicamente a alma humana (Devoto, 1992).
Nos últimos 15 anos observamos linhas de
pesquisas sobre personalidade, psicologia transcultural, ciência cognitiva,
física, engenharia e neurociências combinadas em um número crescente de
investigações sobre sistemas computacionais que procuram emular o tratamento
humano de informações (Pew and Mavor, 1998).
A personalidade e as expressões emocionais
são os principais atributos diferenciais entre os humanos e humanóides
controlados por redes computacionais. Assim, grande esforço tem sido feito para
dissecar e reproduzir o irretorquível número de variáveis (personalidade,
temperamento, emoções, representação e a articulação simbólica do conhecimento,
inclinações idiossincráticas, coerência situacional, flexibilidade adaptativa,
etc.) que compõem a humanidade.
Ishiguro e Nishio (2007), entre outros
investigadores, justificam que o desenvolvimento de inteligências artificiais
em robôs andróides pode trazer uma melhor compreensão da própria natureza
humana. Na tentativa de dissecar os elementos constituintes da personalidade para
então combiná-los computacionalmente, algumas definições objetivas, porém
parciais, foram adotadas como referenciais de partida. Por exemplo, o modelo
Cinco Fatores de Personalidade, usado inicialmente em vários projetos de IA,
postula que a personalidade se organizaria hierarquicamente em apenas cinco
fatores (McCrae & John, 1992).
Abordagens recentes mais complexas estudam
características da personalidade, da emoção e da cultura, como plataforma para
o desenvolvimento de mapas cognitivos computacionais. Segundo investigadores de
IA os sistemas mais avançados (ex. ACT-R/PM, COGNET/iGEN®, EPIC/GLEAN, KISMET,
OMAR, Repliee, Soar) compartilham vários princípios válidos à compreensão dos
elementos que aproximam máquinas de humanos. Por exemplo, Kismet é uma expressiva
“criatura” robótica com modalidades perceptuais e motoras adaptadas aos canais
de comunicação natural aos humanos.
O robô é equipado com dispositivos visuais,
auditivos, sensoriais e proprioceptivos, além de recursos que permitem
vocalizações, expressões faciais, sinais comunicativos motores e capacidade
para ajustar o olhar na direção dos olhos da pessoa com quem interage
(Breazeal, 2000). Porém, o refinamento da chamada Arquitetura Personalizada de
Cognição, que supostamente permitiria a criação de representações do
comportamento humano com variabilidade sobre a personalidade, a emoção e até
certo ponto dimensões culturais, não alcançou expressão individual do Eu, tal
como ocorre em humanos.
A despeito de algumas crianças identificarem
um robô humanóide como agente e não como um objeto (Arita et al., 2005), os
ingredientes dinâmicos constituintes da personalidade, que tornam um ser único,
não foram ainda encontrados pelos investigadores. Em suma, tais robôs se
comportam mais como autômatos inteligentes do que como pessoas reais com bases
motivacionais e emocionais que afetam a cognição e o comportamento.
Uma revisão recente dos avanços conceituais e
empíricos nesse campo demonstra que as variáveis interindividuais da
personalidade são demasiadas para a modelagem de uma arquitetura da
personalidade (Cervone, 2005). A engenharia computacional não conseguiu criar o
senso de individualidade carregado de emoções, temperamento, desejos e
livre-arbítrio nos robôs, e que assim se tornariam “criaturas”. A mais avançada
complexidade computacional não contém os ingredientes da vida anímica ou da
consciência. Assim postulam outros investigadores de IA: a dinâmica cerebral, e
seu funcionamento quântico, vai muito além das propriedades computacionais e
não pode ser modelada como uma rede neural que obedece aos princípios da física
clássica (Hameroff, 2001; Kurita, 2005).
Lembramos que Penfield (1978), depois de seus
estudos com estimulação elétrica do cérebro in vivo para mapear as funções
corticais, advertiu que as redes neurais isoladamente não seriam capazes de
produzir a consciência, afirmando: “A mente tem uma existência distinta do
cérebro, embora esteja intimamente relacionada a ele... Não há local no córtex
cerebral onde a estimulação elétrica fará o paciente decidir.” Consideramos que
o cérebro seja um complexo mediador do livre-arbítrio e da vida anímica,
provedores do desenvolvimento da personalidade através das vidas sucessivas.
Referências Bibliográficas
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Pew
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(*) Julio
Peres, psicólogo clínico, doutor em Neurociências e Comportamento pela USP e
pós-doutorado pelo Centro Espiritualidade e Mente da Universidade Pensilvânia,
EUA
¹(Folha Espírita, nov/2008)
Fiquei muito feliz em ver o Dr. Júlio Peres presente no Canteiro de Ideias. É uma inteligência brilhante e que, no futuro, trará importante contribuição para a compreensão do ser espíritual. Veja-se esse último parágrafo do seu artigo quando ele cita que a mente é distinta do cérebro, as pesquisas que o Dr. Júlio realiza com estudos de regressão já sinalizavam para esse tipo de conclusão. Parabéns ao Canteiro por divulgar trabalhos dessa natureza.
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