Por Dora Incontri (*)
Estudo Filosofia desde os 12 anos de idade,
quando li pela primeira vez a Apologia de
Sócrates de Platão. Ainda costumo me dedicar à leitura e reflexão dos
filósofos. Na Universidade, fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado na área de
Filosofia da Educação. E nos últimos anos, tenho me dedicado a projetos
interdisciplinares de Filosofia na escola, no ensino fundamental e médio,
inclusive com a publicação com Alessandro Cesar Bigheto do livro Filosofia:
Construindo o pensar.
Estou convencida do poder fecundante da
Filosofia, para formar pessoas críticas, agentes transformadores da sociedade e
por isso penso que ela pode ser trabalhada com pessoas de qualquer idade, de
qualquer condição. O que importa principalmente é aprender a pensar, a se
questionar. É claro que para melhor pensar, com mais acuidade e profundidade,
há que se conhecer como outros pensaram, há que se apropriar de uma
racionalidade, que é própria da história da Filosofia ocidental.
Em contato, porém, com acadêmicos da área da
chamada Filosofia pura, tenho constatado um fato triste, de que ninguém se dá
conta: nas faculdades de Filosofia, é proibido pensar. O que quero dizer com
isso? A Filosofia é apreendida em sistemas fechados e incomunicáveis entre si.
Cada pensador e cada escola são estudados de maneira estanque, por
especialistas que só entendem daquele filósofo ou daquela corrente e só
reproduzem o que já foi dito e o que já foi escrito. O espaço para comparações,
analogias, buscas pessoais, interpretações, é praticamente nulo. Até mesmo um
viés inédito de leitura de um autor consagrado é totalmente desencorajado.
Ou seja, só podemos falar de Heidegger a
partir do próprio Heidegger ou das leituras já aceitas sobre a sua obra. Os
estudantes e os professores de filosofia são meros dissecadores do pensamento
alheio, sem nenhuma possibilidade de… filosofar!
É verdade que isso também faz parte do
colonialismo cultural em que ainda nos mergulhamos e que se instala na área das
ciências humanas, com as escolas de pensamento importadas: temos os guetos
marxistas, os guetos pós-modernos, os guetos kantianos e assim por diante.
Temos cartilhas ideológicas e sistemas prontos a serem adotados, mas não temos
pensadores originais, não permitimos que eles surjam, porque se alguém ousa
pensar, se manifestar, comparar, interpretar… é tido como superficial, como
eclético, como pretensioso, como não habilitado à filosofia.
Em geral, nas faculdades de humanidades no
Brasil é proibido afirmar, indagar, criticar, discordar – é permitido apenas
repetir o que já foi dito. Mesmo o pensamento crítico é a crítica já feita, a
leitura de mundo já formulada por outros. (Um sintoma disso são os professores
de Filosofia que leem suas aulas ou palestras: o medo de assumir uma posição
pessoal, a insegurança de usar uma palavra que não esteja dentro do jargão
daquela escola, daquele autor – leva-os
a ler blocos monolíticos, sem possibilidade de questionamento.)
Não estou aqui defendendo o achismo pessoal,
a mistura de conceitos, a irresponsabilidade científica. O rigor da
conceituação, a pesquisa profunda, a consistência teórica são obviamente
necessários ao pensamento acadêmico. Mas a interdição do debate, por excesso de
preciosismo; o impedimento de novas visões, por dogmatismos de escolas; o
exílio do pensamento original, pelo cerceamento da busca pessoal – tudo isso
faz com que a Universidade se torne um museu de ideias mortas, que nenhuma
influência exercem sobre a sociedade. Temos assim uma filosofia que não serve
para nada, a não ser para meia dúzia de teóricos se dedicarem a discussões
fechadas e esotéricas. Mesmo entre esses não há diálogo entre estudiosos de
diferentes escolas: kantianos não conversam com marxistas, que não conversam
com heideggerianos, que não conversam com seguidores de Wittgenstein… Pelo
simples fato de que cada qual fica escravo das ideias, dos termos específicos,
da linha de argumentação, do autor que estudam e não podem se mexer em outra
direção.
Sempre observei essas coisas e tenho tido
algumas experiências pessoais desagradáveis por ser uma intelectual que gosta
de pensar por si mesma e formular novas trilhas de investigação. Recentemente,
tornou-se minha aluna na pós-graduação Yara Zélia, uma egressa de uma faculdade
de Filosofia em São Paulo. Pessoa mais madura, percebeu de maneira precisa o
que descrevo acima. Transcrevo seu angustiado testemunho, que me parece muito a
propósito:
Em
uma vida inteira contemplada tantos por conhecimentos formais como informais,
resolvi ingressar em uma faculdade de Filosofia aos 58 anos de idade. A meu
ver, seria a oportunidade de construir em mim um pensamento filosófico de
acordo com as academias e poder formar meu próprio conceito, questionando os
demais, recebendo uma base para tanto. Teria alcançado esse objetivo?
A
resposta é não. Nunca pensei que o próprio academicismo podaria o meu livre
pensar e o meu livre expressar. O meu conceito sobre uma faculdade de Filosofia
seria o de obter bases e explicações, ou seja, ter subsídios suficientes para
abarcar todo conhecimento cristão que havia adquirido durante o meu caminho.
Qual não foi minha surpresa quando os pensamentos e os conceitos começaram a se
confrontar e nada disso poder ser mencionado ou debatido no âmbito acadêmico. Houve
uma frustração e uma angústia, pois constatei algo que muito me abalou: a
Filosofia nunca pode ser questionada, somente apreendida e estudada, servindo
de fundamentos para outras filosofias. Eu, antes uma pessoa com pensamento
direto e objetivo, tornei-me profundamente prolixa. A Filosofia ensinou-me a
consultar sempre as bases filosóficas para responder a um questionamento, mas
não como uma proposta autônoma para a elaboração da resposta, mas sim me
espelhando no conhecimento dos pensadores.
Este
fato me fez relembrar algo que minha filha, hoje professora de Língua
Portuguesa, disse-me quando cursava sua faculdade de Letras: “Nenhum texto é
original. Todo autor possui um conhecimento prévio e se baseia no conceito de
outros para poder escrever. Isso é conhecimento de mundo.” Na Filosofia, isso
não é diferente. Os filósofos se baseiam em conceitos anteriores para
estruturar seu próprio pensamento filosófico. Sócrates, que havia teoricamente
estudado em uma escola sofista, só desejava mostrar o caminho da ética e da
virtude aos que o seguiam. Em seguida, Platão honra seu mestre, que nada deixou
por escrito, criando uma pedagogia encantadora em que o bem deveria a tudo
permear. O filósofo também fala da alma e da reencarnação dessa mesma alma.
Minha reflexão durante as aulas sobre ele era a seguinte: “Mas, isso me remete
a Kardec, com seus ensinamentos sobre a doutrina espírita…”. Ao questionar
minha professora sobre minhas constatações, a resposta: “Não é nada disso, não
é tão simples assim!”. Portanto, não podia falar, não podia questionar, não
podia me expressar e nem sequer discordar. Esse é um dentre tantos episódios
pelos quais passei durante os quatro anos da faculdade: adquirir conhecimento e
não poder questioná-lo e nem utilizá-lo.
Neste
momento, surge a seguinte indagação: para mim, qual a utilidade de faculdade de
Filosofia? Um curso completo somente para a aquisição de um diploma de Bacharel
em Filosofia?
Certa
vez, perguntaram-me: “Como é chamado alguém que se forma nessa faculdade? É
filósofo?”. Nós não podemos ser alcunhados de filósofos, pois não formamos a
nossa filosofia, somente estudamos e tentamos compreender o pensamento dos
filósofos. No meu entendimento, a falta de questionamento não pode gerar novos
pensamentos e, consequentemente, novos filósofos.
Por
fim, o curso de Filosofia não calou somente a minha voz… Calou também a minha
alma. Filosofia, portanto, é só para se ler.
(*) jornalista, educadora e escritora. Suas
áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo.
Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP.
Pensar é perigoso! A reflexão da prof. Dora, cabe perfeitamente ao movimento espírita e à vida.
ResponderExcluirCompartilhando no canteiro. Aproveitando as idéias da Dora, muito interessantes ainda que discorde de boa parte de suas idéias, sugiro praticarmos em nossos discursos espíritas, com muita doação, a humildade de não comentarmos ironicamente ou maledicentemente sobre as outras linhas filosóficas, científicas ou religiosas. , Conversamos e produzimos um discurso que faz esse tipo de ação ser banida das nossas buscas por transformação. Já temos a tendência de afirmarmos que o espiritismo não é fenômeno e passamos nossos discursos garantindo a verdade através de exemplos de fenômenos e o mesmo ocorre com o problema de sermos pouco educados em nossos discursos sobre outras forma de pensar,. Fico um pouco envergonhado por isso.
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