O leitor generoso me permite a quebra do protocolo?
Pretendo fazer uma citação mais longa do que o habitual, em artigo que também
será mais extenso do que o comum.
É possível que você largue a leitura, mas pretendo correr
o risco, afinal o significado das coisas deve estar acima do interesse. Se não
houver tempo agora, você lerá depois, daqui a cinco anos, quem sabe?! Com um
tema destes, será melhor arriscar do que escrever o que não vem do coração.
«Foi dos estudos doutrinários que se chegou à
compreensão de que era preciso trabalhar pela melhoria da qualidade de vida da
comunidade. Eles (os estudos) inspiraram e inspiram cada ação. “Tive fome e me
destes de comer, tive sede e destes de beber". "Quando fizestes a um
desses mais pequenos de meus irmãos, foi a mim mesmo que o fizestes". E
ainda: "Que a mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita".
Estas palavras de Jesus e outras de igual quilate, lidas e meditadas no
silêncio da oração, sempre impulsionaram a vontade da equipe que fundou esta
obra social, equipe que se conserva contribuindo com suas iniciativas. Sob esta
doce inspiração, o desejo de melhorar a vida do outro, a quem se vê como
"irmão em necessidade", não encontra limites. E qual a compensação
almejada por essa equipe que empreende tais ações? Já que não possui retorno
financeiro ou qualquer vantagem, com que interesse renuncia ao tempo de lazer e
convivência com seus familiares? É muito simples! A compensação é o encontrar
sorrisos, onde só havia lágrimas e desespero; é constatar que crianças fadadas
à delinquência tornam-se afetuosas, estudiosas e responsáveis; é encontrar
trabalho, onde havia ociosidade; convivência saudável e boa, onde havia
isolamento e risco; é ainda encontrar o desejo de uma vida melhor, onde só
havia miséria, abandono, drogadição e prostituição. A pessoa altruísta se
reconhece regiamente remunerada, no momento em que se torna capaz de aliviar o
sofrimento alheio. E para prover suas necessidades pessoais, realiza o trabalho
profissional como qualquer outra pessoa. São os seus serões que ela oferece à
causa do altruísmo«.
Bem, se você chegou até
aqui, vai saber agora: Citei parte do documento de uma casa espírita. Dê um
desconto ao otimismo e à veia poética, pois nenhum grupo humano é tão doce
assim. Há os momentos felizes, há os amargos; ora os sentimentos estão
elevados, ora em baixa, afinal, são pessoas que formam as organizações. Mas se
você possui sensibilidade para escutar sentimentos, descobrirá algum barulho na obra sobre a qual versa a
citação. E tal barulho não foi feito
apenas aqui; ele também ocorre em todo o centro espírita que sinceramente adote
os princípios kardequianos, buscando colocá-los em prática.
Esta palavra – Solidariedade
– foi grafada em alto relevo no que há de mais pétreo da literatura espírita: A
obra de Allan Kardec. O eminente francês não poderia ter escolhido melhores
termos para definir o lema do Espiritismo, como sendo “Trabalho, Solidariedade, Tolerância”. E os anais da Doutrina
Espírita estão recheados de fatos mostrando ao leitor sensível as marcas
indeléveis da ação generosa e discreta dos primeiros espíritas. São famosas as
subscrições do Codificador, as quais chegavam a receber até mesmo a
contribuição de padres (1). O banquete de Lyon (2), oferecido ao “mestre”, é um
capítulo especial, mostrando a grandeza de espírito ali reinante. Era de encher
a alma o sentimento que dominava os espíritas da cidade operária. Trabalhadores e seus patrões confraternizavam em
torno do servir ao próximo, como se diferença nenhuma existisse entre eles.
Por tudo isso é que, tenho
para mim, aquilo que o Espiritismo revive hoje em termos de solidariedade, foi
inaugurado pelo “Carpinteiro de Nazaré” sob o nome de FRATERNIDADE. Ele
desvendou todo o mistério das boas relações humanas, revelando que Deus não é
apenas uma potência celeste, o CRIADOR, mas principalmente nosso PAI. Se Ele é
PAI, todos os filhos somos irmãos. Se somos uma só família, devemos ter PAI e
IRMÃOS em alta conta. Eis a equação simplérrima da fraternidade, que viria
abalar as estruturas de um império que perdurou por 503 anos.
As águias dominadoras de
Roma jamais se contentariam com a ideia da Fraternidade. Foi mais fácil aceitar
Jesus como um “novo deus”, porque os deuses do Olimpo ficavam lá em cima,
interferindo aqui e acolá na vida humana. Os césares podiam reinar à vontade,
jamais se comparando aos leprosos, que eram barrados de entrar nas cidades; ou
aos soldados, que aos milhares morriam nos combates, deixando viúvas e órfãos
completamente ao desamparo, pois o Direito Romano não servia aos fracos e
oprimidos.
Foi a partir dessa Fraternidade,
compreendida e vivida, que Jesus e os seus rudes seguidores cantaram aquela maravilhosa
palavra, referida por Lázaro em “O Evangelho Segundo O Espiritismo”(3): Aquele
AMOR que fez estremecerem os povos, que fez os mártires se embriagarem de
esperança e desceram ao circo do martírio, dando a própria vida em holocausto.
Quando se tem esse ingrediente – AMOR – ou
pelo menos se reconhece que é perfume precioso, porém volátil demais, não
importa em qual receita se queira utilizá-lo, o resultado vai ser sempre bom.
Jesus, por exemplo, abençoou as criancinhas. E com isto tornou-se patrono das
milhares de obras humanitárias que tentam repetir-lhe o exemplo. Em outra
circunstância, repartiu o pão. E assim abriu caminhos para as iniciativas que
mitigam a fome do semelhante.
A raiz da Solidariedade é
esta – a FRATERNIDADE desfraldada pelo Cristo. Mas porque ela não conservou o
nome? Penso assim: O significado foi perdido ao longo dos séculos. E
significado é tudo. Por isso preferi correr o risco de não ser lido a
comprometer o significado deste escrito.
É certo que não transcorreu
um só século em que a Terra não contasse com uma alma abnegada a reviver as
lições do Cristo. Fosse um Dom Bosco, fosse um São Vicente de Paulo, fosse um
Comenius. Mas, no geral, aquela chama de fraternidade e amor foi
descaracterizada pela ação humana.
Philippe
Ariès, laureado historiador francês, fez relevante pesquisa sobre a vida diária
comum durante a Idade Média, sobretudo na Europa. Ele pesquisou do registro
civil a sermões; de literatura a obras de arte; de efígies funerárias a peças
de museu. O resultado foi a obra que veio a lançar: “História Social da Criança e da Família”. Nela, demonstra que no período medieval não
havia o sentimento de infância. Crianças pequenas nem eram contadas. Eram
vestidas como adultos. Impunham-lhes trabalhos pesados. “O infanticídio era abafado no silêncio”.
Enfim, era a perda do significado daquele “deixai
vir a mim os pequeninos”.
Mas os “bens morais”
representam patrimônio da coletividade humana e espiritual, salvaguardados
pelos que dirigem o planeta e o universo. Não era justo, nem razoável, que
viessem a se perder. A momentânea perda nada mais era do que um descaminho.
Então a humanidade abriu os olhos e o Iluminismo expressou a célebre aspiração
da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”,
desbravando caminhos para a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão. E nas fileiras da renovação está Pestalozzi, a conceituar o segredo da
educação, também através de uma tríade: “Trabalho, Solidariedade, Perseverança”. Relembremos, de passagem, que a
escola formal surgiu naquele momento histórico.
Então, SOLIDARIEDADE e FRATERNIDADE
não passam de uma mesma coisa. Ou, se quisermos, digamos que têm a mesma raiz. Se
a Fraternidade, entendida como Jesus a implantou, não tivesse passado por uma
descaracterização, não precisaríamos dizer Solidariedade. Mas por questão de
palavras não vamos nos desentender. Aliás, a organização social se modifica e
requer novos termos. A palavra AMOR, por exemplo, já bastaria. Mas precisou
aperfeiçoar-se através do AMOR EM MOVIMENTO, que se traduz por CARIDADE. O amor
a ponto de “servir” o coração ao outro, como que em uma bandeja, é o que
conhecemos por MISERICÓRDIA.
Chamemos o que desejarmos.
Só não percamos o sentimento, o significado. Admitamos, inclusive, que as
pessoas hoje podem se reunir livremente para praticarem a FRATERNIDADE, o AMOR,
o que era terminantemente proibido nos primeiros séculos do Cristianismo. Da
reunião, surgem os movimentos, as organizações sociais. Admitamos mais: Uma
organização social não pode praticar nem a FRATERNIDADE, nem a CARIDADE. Quem
as pode viver são as pessoas que venham a compor essas organizações. E para que
pratiquem, ninguém deve saber.
Então, a palavra
SOLIDARIEDADE teria os seguintes significados:
a) Quando
se trate da ação individual, discreta e cheia do sentimento da FRATERNIDADE,
ela será AMOR ou se quisermos, CARIDADE.
b) Quando
for a ação de um grupo ou movimento, que reúna pessoas com diversos
sentimentos, ela será a “solidariedade” propriamente dita.
c) Existe
ainda a SOLIDARIEDADE FUNCIONAL, referida por Émile Durkeim (4), o célebre
sociólogo positivista, que eu imagino ser, nos dias de hoje, aquela ação patrocinada
pelo estado. Provavelmente tenha-se referido a ela José Ingenieros (5), ao dizer que “A solidariedade converte em direito o que a caridade dá como favor” (6).
É mais frequente haver
referências à SOLIDARIEDADE FUNCIONAL. A Revista ISTO É, por exemplo, publicou
matéria aludindo ao World Giving Index,
ranking que desde 2010 lista os países por ordem de generosidade. Naquele ano,
o Brasil ocupava o 76º lugar, caindo para a 91º posição em 2013 (7).
Reconheçamos que as ações
generosas, como tudo que há na Terra, vêm passando por aperfeiçoamento e
adequação à vida contemporânea. Portanto, não estranhemos a solidariedade
praticada por empresas. Se há bons sentimentos por trás, isso será mal? Se produtos
do mercado financeiro chegam a destinar um percentual para o financiamento das
ações generosas e há seriedade nisso, temos algo a lamentar? Não seria isto uma
sementinha daquela “ousadia no bem”
implícita na questão 932 de “O Livro dos Espíritos”? Ou o gérmen daquela “nobre rivalidade do bem”, de que nos
fala Adolfo, em “O Evangelho Segundo O Espiritismo”? (8)
Portanto, meus desejos são
de que prospere a solidariedade funcional, desde que cristalina; fortaleçam-se
os grupos e os movimentos solidários autênticos. Mas que a ação individual,
sentida e vivida “sem que saiba a mão
esquerda”, continue sendo o farol a guiar as demais. E que dela ninguém
queira estatísticas, sob pena de se estar criando uma estranha variedade.
A planta original, que os maus jardineiros (9) não conseguimos
modificar, continua sendo esta - uma referência para todos nós, espíritas ou
não:
“A
caridade é paciente, é benigna; a caridade não é invejosa, não obra temerária
nem precipitadamente, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus
próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a
injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo
sofre. A caridade nunca jamais há de acabar” (10).
(*) voluntário do C.E. O Pobre de Deus, em Oiticicas, Viçosa do Ceará.
(1)
Revista Espírita.
(2)
Revista Espírita anos 1860 e 1861.
(3)
O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XI,
item 8, § 1º.
(5)
José Ingenieros, pensador ítalo-argentino, http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ingenieros
O artigo acima foi feito por encomenda. A pedido do Canteiro de Ideias, o confrade Everaldo elaborou, na realidade, uma obra de arte. A intenção foi de se comemorar o dia 31 de janeiro, considerados por uns como o Dia Internacional da Solidariedade. Everaldo, no entanto, encontrou outras tantas datas tidas como o mesmo propósito. Independente disso, o propósito foi alcançado. O texto é riquíssimo em informações. Valeu meu amigo e irmão!
ResponderExcluirAgradeço a meu velho amigo pela oportunidade e encorajamento.
ExcluirEveraldo