O rustenismo é deturpação perigosa, porque se
alastra sorrateiro, não em suas obras principais, mas mediante livros
psicografados por Chico Xavier. Conforme prevê o assim chamado “Pacto Áureo”
(05/10/1949), “cabe aos espíritas do
Brasil porem em prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo,
Pátria do Evangelho, de maneira a acelerar a marcha evolutiva do Espiritismo”.
Pois bem! Isto passou ao art. 63 do estatuto da Casa-Máter do rustenismo no
mundo, que registra:
O Conselho [Federativo Nacional da
F.E.B.] fará sentir a todas as sociedades espíritas do Brasil que lhes cabe pôr
em prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do
Evangelho, de Francisco Cândido Xavier.
Curioso que o substrato dessa obra tenha
surgido anos antes, em estranha conferência de Leopoldo Machado na F.E.B., de
título Brasil, Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos.117-a De qualquer
forma, entre outras piadas de além-túmulo, no capítulo I, “a amargura divina”
de Jesus “empolga” toda uma “formosa assembleia de querubins e arcanjos” e ele,
“que dirige este globo”,[1] não sabe sequer onde é o Brasil. Não bastasse isto,
no cap. XXII, o confuso Roustaing emerge do estatuto da F.E.B. para ser
equiparado a L. Denis e a G. Delanne, figurando adiante destes na condição de
cooperador de Kardec para “o trabalho da fé”. Subsiste ainda o questionamento
levantado por Julio Abreu Filho em O Verbo e a Carne, isto é, por que Humberto
de Campos se referiu a Roustaing, Denis e Delanne em Brasil, Coração do Mundo,
Pátria do Evangelho, de 1938 e, no livro Crônicas de Além-Túmulo, de 1937,
reportou-se tão só a Denis e Delanne?
Em O Consolador, de Emmanuel, há, igualmente,
certas estranhezas. Será que houve, então, uma afronta à integridade conceitual
do movimento espírita, do tipo “pílula dourada”, sob a chancela do trabalho do
médium de maior projeção dos últimos tempos? Foi isto à revelia dele ou, por
outra, com sua anuência? Mas como provar qualquer hipótese? Da própria F.E.B., em
1942, Chico Xavier recebeu a informação de que seus originais, após publicação,
eram inutilizados por aquela instituição.[2]
A contradição seguinte parece mesmo sugerir o
douramento da pílula rustenista na obra de Chico Xavier: o problema do Espírito
Santo, expresso nos ns. 303 e 312 de O Consolador. O Espírito Santo não pode
ser “a centelha do espírito divino, que se encontra no âmago de todas as
criaturas” e, a um só tempo, uma “falange de espíritos”. Só a primeira
resposta, à questão 303, faz sentido à luz do Evangelho e da codificação
kardeciana. Já a segunda, à pergunta 312, reflete o rustenismo e, se for
interpolação febiana, que ironia, porque se esmera em elucidar outra
interpolação, mas bíblica.
O texto oferecido pelo interlocutor da F.E.B.
(negritado abaixo), conforme parecer insuspeito do tradutor da Bíblia de
Jerusalém (Paulinas, 1985), apresenta “um inciso ausente dos antigos
manuscritos gregos, das antigas versões e dos melhores manuscritos da Vulgata,
[...] uma glosa marginal introduzida posteriormente” em 1.ª João, cap. 5, vv.
7-8, onde se lê: “Porque há três que testemunham [no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e esses três são um só;
há três que testemunham na terra]: o espírito, a água e o sangue, e esses três
são um só”.
Portanto, o interlocutor febiano, no n. 312
de O Consolador, driblou a parte do texto bíblico que se refere ao testemunho
de Jesus em “espírito, água e sangue”, para só se referir à glosa marginal,
ensejando a Emmanuel esta interpretação da Trindade: “Pai” => Deus, “Verbo”
=> Jesus, e “Espírito Santo” => “legião dos espíritos redimidos e
santificados que cooperam com o Divino Mestre, desde os primeiros dias da
organização terrestre”. Definição tipicamente rustenista do Espírito Santo,
assim como, por vezes, do Espírito da Verdade e mesmo do Consolador: “conjunto
dos espíritos puros, dos espíritos superiores e dos bons espíritos”; ou
“falange sagrada dos Espíritos do Senhor”.[3]
Há, no entanto, um prefácio amistoso de
Emmanuel ao livro Vida de Jesus, de Antonio Lima (F.E.B.) Na obra é defendida a
tese do corpo meramente fluídico do Cristo. Da mesma forma em relação a Brasil,
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que menciona Roustaing ao lado de
Delanne e Denis como cooperador de Kardec, e que é prefaciado por Emmanuel. Sobre
A Grande Síntese, de P. Ubaldi, escritor que reeditou a queda angélica e a
involução como pressuposto para a evolução, postulados afins do rustenismo, o
jesuíta disse:
Aqui, fala a Sua Voz [de Jesus] divina e
doce, austera e compassiva. [...] é o Evangelho da Ciência, renovando todas as
capacidades da religião e da filosofia, reunindo-as à revelação espiritual e
restaurando o messianismo do Cristo, em todos os institutos da evolução
terrestre. Curvemo-nos diante da misericórdia do Mestre e agradeçamos de
coração genuflexo a sua bondade. Acerquemo-nos deste altar da esperança e da
sabedoria, onde a ciência e a fé se irmanam para Deus.[4]
Ante um comunicado destes, natural é que
alguns mais exaltados digam que Kardec foi superado por Ubaldi. Quanto a este
pensador italiano, ao indigesto Roustaing e até ao excêntrico Ramatis, será que
adeptos de suas doutrinas heterodoxas podem ter pleiteado para publicações
afins o “aval” dos já cultuados instrutores de Chico Xavier, na intenção de
facilitar a infiltração de tais obras no movimento espírita? E Chico? Analisava
tudo? Infelizmente, não. Ele dizia que não era da sua competência entrar na
apreciação sequer dos livros que psicografava, sendo um simples “animal de
carga”.[5] E os espíritos que davam os “avais”? Eram mesmo os seus guias? Em
caso positivo, são confiáveis?
Normal é que o estudioso se reserve o direito
de duvidar, até porque a codificação kardeciana assegura que “o melhor [médium]
é o que, simpatizando somente com os bons espíritos, tem sido enganado menos
vezes”, assim como preconiza que, “por melhor que seja um médium, jamais é tão
perfeito que não tenha um lado fraco, pelo qual possa ser atacado”.[6] Kardec
já advertira também: “Pelo próprio fato de o médium não ser perfeito, espíritos
levianos, embusteiros e mentirosos podem interferir em suas comunicações,
alterar-lhes a pureza e induzir em erro o médium e os que a ele se dirigem”.
Consignara o mestre que este é, sim, “o maior escolho do Espiritismo” e que o
meio determinante para evitá-lo é o “discernimento”; e por quê? Kardec assim
responde:
As boas intenções, a própria moralidade
do médium nem sempre são suficientes para o preservarem da ingerência dos
espíritos levianos, mentirosos ou pseudossábios, nas comunicações. Além dos
defeitos de seu próprio Espírito, pode dar-lhes guarida por outras causas, das
quais a principal é a fraqueza de caráter e uma confiança excessiva na
invariável superioridade dos espíritos que com ele se comunicam.[7]
O problema, todavia, é mais complexo,
transcende a simetria óbvia entre a F.E.B. e a obra de Roustaing. Não constitui
rustenismo a doutrina das almas gêmeas, que, segundo Emmanuel, são criadas umas
para as outras e umas às outras destinadas na eternidade, contrariando o
comentário kardeciano ao n. 303-a de O Livro dos Espíritos, que diz: “É
necessário rejeitar esta ideia de que dois espíritos, criados um para o outro,
devem um dia fatalmente reunir-se na eternidade”. A F.E.B. até questionou o
ensino das almas gêmeas na obra O Consolador, ali o deixando, contudo, a pedido
do próprio jesuíta.[8]
Quanto a isto, já não faz o menor sentido a
hipótese de interpolação da Casa-Máter por força do rustenismo, que nunca
professou a existência de almas gêmeas, assim como jamais disse, por exemplo,
que Marte é mais avançado em civilização do que a Terra, ou que os exilados
adâmicos vieram de um suposto orbe não purificado física e moralmente, que
guarda muitas afinidades com nosso mundo e orbitaria o “magnífico sol” Capela;
na verdade, segundo a astronomia, um sistema de sóis com ausência de
planetas.[9]
De fato, consta que Emmanuel teria dito a
Chico Xavier que deveria permanecer com Jesus e Kardec caso lhe aconselhasse
algo em desacordo com as palavras de ambos.[10] Mas nenhum ensino contrário a
Kardec deixou de ser publicado por essa razão. Eis o fato.[11] De mais
consistente lógica e de melhor proveito à clareza analítica, portanto, é que se
atribua ao próprio Emmanuel tudo aquilo que dos seus livros conste. Só Chico
Xavier teve o poder de dirimir as dúvidas, mas nunca o fez, nunca levantou uma
suspeita sequer sobre a F.E.B.; ao contrário, não é difícil encontrar-lhe
pronunciamentos com os mais efusivos aplausos à Casa do “Anjo” Ismael, assim
como ao grande J. Herculano Pires, maior opositor do rustenismo febiano. O médium
sempre aparece ao lado de todos os partidos.
De tudo, restam os objetos, milhares de
milhares de livros, o papel e a tinta, a confusão nas estantes, sempre bem
acessível aos neófitos que chegam às casas espíritas e aos incautos leitores em
busca de um Consolador que lhes dê milagrosas respostas. Só se pode julgar do
que foi publicado. Eis a verdade. Cabe, pois, aos espíritas atentos a
apreciação rigorosa de toda obra mediúnica, segundo os padrões de Kardec. Este
deve ser o procedimento dos adeptos estudiosos, e a produção atribuída a
qualquer Espírito não pode nem deve escapar a isso, seja quem for ou quem se
diga ser.
Não passa de temeridade, com lamentáveis
consequências já em curso, a ideia de que não se deve agir deste modo para não
confundir ou chocar os simples. Na prática, isto é licitar ao Espiritismo que
erros manifestos sejam arrolados à conta de patrimônio das consolações que
prodigaliza a seus adeptos.
Encaminhemos os simples à segurança e pureza
da fonte original do Espiritismo, à codificação kardeciana, em vez de
entretê-los com equívocos que, mais tarde, os surpreenderão desprevenidos e,
quem sabe, os convidarão à apostasia. O que disse Erasto a Kardec?
Deve-se eliminar sem piedade toda
palavra e toda frase equívocas, conservando no ditado somente o que a lógica
aprova ou o que a Doutrina já ensinou. [...] Na dúvida, abstém-te, diz um dos
vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de
evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça
duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom-senso
reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que
admitir uma única mentira, uma única teoria falsa. Com efeito, sobre essa
teoria poderíeis edificar todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da
verdade, como um monumento construído sobre a areia movediça.[12]
Para o movimento espírita, no entanto, isto
não há passado de meras frases de efeito, inseridas em retóricas quase sempre
desmentidas pelo cotidiano institucional da maior parte dos adeptos do
espiritismo à moda da Casa-Máter do rustenismo. Sobre o assunto espinhoso deste
capítulo, decerto que muito a propósito são as reflexões de nosso valoroso
confrade Artur Felipe de A. Ferreira, em seu artigo “De Que Lado Está
Emmanuel?”.[13]
117-a Cf. Reformador. 03-10-1934, p. 519;
01-11-1934, p. 575.
[1] Revista Espírita. Jan/1864. Um Caso de
Possessão. Senhorita Júlia. Obs.: O sábio Hahnemann é quem afirma ali que o
Espírito de Verdade dirige este globo, ou seja, a Terra.
[2] Cf. SCHUBERT, Sueli Caldas. Testemunhos
de Chico Xavier, p. 23-24. Apud DA SILVA, Gélio Lacerda. Conscientização
Espírita. Chico Xavier, Emmanuel e a F.E.B.
[3] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 9; Vol.
II, n. 187; Vol. IV, n. 1. Obs.: Quanto ao Espírito da Verdade, é curioso, o
rustenismo muito se divide, porque subsiste na obra a instrução dos bons
espíritos que, em Bordéus — na casa de Roustaing e na de Sabo —, chegaram a
revelar que se tratava de Jesus, como o próprio advogado fez questão de
consignar a Kardec, bem antes do cisma que promoveria. (Cf. Revista Espírita.
Jun/1861. Correspondência.) Evidentemente, os espíritos que passaram a
substituir os Iniciadores se valeram de uma autêntica revelação destes para
impor aos bordeleses mais incautos lamentáveis sistemáticas a título de
comandos do Cristo, de Moisés, dos evangelistas, de Maria e dos apóstolos.
J.-B. Roustaing, infelizmente, faliu ante provável missão que não chegou a
cumprir, tornando um pouco mais árdua a gigantesca tarefa do gênio lionês. Não
foi sem motivo que disse o mestre sobre o livro rustenista: “[...] ao lado de
coisas duvidosas, em nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente
boas e verdadeiras, e será consultada com proveito pelos espíritas sérios
[...]”. (Revista Espírita. Jun/1866. Os Evangelhos Explicados.)
[4] Ob. cit. 18.ª ed. Trad.: Carlos Torres
Pastorino e Paulo Vieira da Silva. Vol. II.
[5] Cf. Emmanuel. 15.ª ed., F.E.B., Prefácio,
p. 21. Cf. DVD Pinga-Fogo 2. Clube de Arte. Cf. ALEIXO. Ensaios da Hora
Extrema. Não Há Médiuns Infalíveis.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2011_02_21_archive.html.
[6] O Livro dos Médiuns. XX, 226, 9.ª e 10.ª
[7] Revista Espírita. Fev/1859. Escolhos dos
Médiuns.
[8] Cf. n. 323 e nota à primeira edição.
[9] Cf. Emmanuel, “A Tarefa dos Guias
Espirituais”. A Caminho da Luz, cap. 3. Cf. ALEIXO. Ensaios da Hora Extrema.
Kardec e os Exilados.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2010_03_29_archive.html.
[10] Diálogo dos Vivos [em parceria com
Herculano Pires], cap. 23: Permanecer com Jesus e Kardec.
[11] Cf. ALEIXO. Ensaios da Hora Extrema.
Léon Denis, Emmanuel e as Almas Gêmeas; Mística Marciana e Segurança
Doutrinária; Kardec e os Exilados; Sobre André Luiz; Chico Xavier:
Defifinitivamente, Outra Religião!; Kardec Versus Emmanuel em 12 Passos.
http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.
[12] O Livro dos Médiuns, 230.
[13]
http://coerenciaespirita.blogspot.com/2008/10/de-que-lado-est-emmanuel.html
Sugiro aos leitores desse artigo que leiam o que escreveu Allan Kardec na Revista Espírita de junho de 1866 a respeito dessa obra. Sob o título: Notas Bibliográficas- Os Evangelhos Explicados pelo Sr. Roustaing. Ao final Kardec deixa o seguinte comentário: "Se o fundo de um livro é o principal, a forma não é para se desdenhar e também concorre com algo para o sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, se a obra tivesse se limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, com isso ganhando em popularidade."
ResponderExcluirLembramos que essa obra foi editada em quatro volumes!