Por
Dora Incontri (*)
O espiritismo, segundo Allan Kardec, pretende
ser ao mesmo tempo uma ciência, que demonstra através do estudo empírico dos
fenômenos mediúnicos a existência dos espíritos e sua atuação sobre o mundo;
uma filosofia, que propõe uma cosmovisão evolucionista e reencarnacionista; e
uma religião, sem dogmas, rituais e sacerdócio organizado, que faz uma
releitura do cristianismo e prega uma prática religiosa centrada na moral e na
ligação direta do homem com Deus.
Para além dessas três dimensões, porém, ou
como resultante de todas elas, o espiritismo tem um caráter eminentemente
pedagógico. [1] Não só porque seu fundador, Hippolyte Léon Denizard Rivail
(1804-1869), depois Allan Kardec, tenha sido um grande educador francês,
seguidor da proposta de Pestalozzi, seu mestre. Mas porque o cerne da filosofia
espírita é uma proposta de educação do espírito.
O espiritismo não entende o devir humano,
como uma história de salvação, segundo o conceito do cristianismo tradicional,
mas como uma história de evolução. O homem foi criado simples e ignorante e
está destinado a conquistar a perfeição, através do aprendizado de múltiplas
vidas sucessivas. Não houve uma tragédia inicial de queda e nem a necessidade
de uma intervenção divina, para a redenção das criaturas. Tudo corre conforme
previsto pelo Criador. A humanidade está em processo educativo, aprendendo,
através da ação livre no mundo, a crescer espiritualmente, a fazer desabrochar
as virtudes e a sabedoria que serão suas, quando atingir o alvo evolutivo a que
Deus nos destinou. Todo mal e todo desvio de rota estão por nossa conta, mas
são males e desvios passageiros, porque a imanência de Deus em nós garante mais
dia, menos dia, a volta ao caminho da perfeição. Perde-se a tragicidade do
drama do pecado, da queda; ganha-se em autonomia para o ser, pois que de nós
depende quando e como vamos aderir a esse projeto de perfeição e felicidade,
para o qual fomos criados.
Um dos pontos mais polêmicos em torno dessa
cosmovisão é que ela se pretende cristã e ao mesmo tempo universal. Em que
sentido uma coisa e outra? Cristã, porque as ideias de redenção universal (que
ninguém estaria eternamente condenado ao mal, nem mesmo o demônio), de
reencarnação, da possibilidade de aperfeiçoamento autônomo do indivíduo,
estavam presentes nos primeiros três séculos de cristianismo. As duas primeiras
foram aceitas por Orígenes, a última, por Pelágio. Ambos, depois condenados
pela ortodoxia, tiveram suas interpretações do cristianismo banidas da Igreja
Católica. [2]
Outro aspecto que inviabiliza, segundo
católicos e protestantes, chamar-se o espiritismo de cristão é a negação da
Trindade. Dogma essencial da ortodoxia, considera-se como indispensável para a
identidade do cristianismo. Entretanto, também esse dogma, segundo a posição
espírita, foi construído historicamente. Arius, o padre que defendia que Jesus
não era Deus, mas um seu enviado, foi combatido por Atanásio e quando o
Imperador Constantino tornou o cristianismo a religião oficial do Estado
romano, a doutrina na Trindade foi assumida como a ortodoxia e a ariana, como
herética. Comenta Kardec:
“Se
o símbolo de Nicéia, que se tornou o fundamento da fé católica, fosse conforme
o espírito do Cristo, para que o anátema final? Não é isto prova de que é obra
da paixão dos homens? A que se deve a sua adoção? À pressão do Imperador
Constantino, que fez dele uma questão mais política do que religiosa. Sem sua
ordem não se teria realizado o Concílio e sem a sua intimidação é mais do que
provável que o arianismo tivesse triunfado. Dependeu, pois, da autoridade
soberana de um homem, que não pertencia à Igreja, que reconheceu mais tarde o
erro que cometera e que procurou inutilmente voltar atrás conciliando os
partidos, não sermos hoje arianos em vez de católicos, e não ser hoje o
arianismo a ortodoxia e o catolicismo a heresia.” (KARDEC,
1971:118)
Essa questão da divindade de Jesus está
intimamente ligada às outras, levantadas por Pelágio e Orígenes: entendendo-se
Cristo como um modelo de perfeição (e não como o próprio Deus), entendendo-se
que podemos atingir esse modelo, segundo o nosso esforço pessoal, através de
múltiplas vidas, tira-se a tragicidade da queda, do pecado, que corrompeu o
homem, que precisa da graça e do sangue de Deus encarnado para reconciliar-se
com a divindade. [3]
“Do
ponto de vista dos arianos, era essencial que Jesus não fosse Deus, pois Deus,
sendo perfeito por natureza, era inimitável. Em compensação, a virtude
transcendente de Cristo, que era fruto de atos repetidos de sua vontade, era ao
menos potencialmente acessível ao resto dos mortais. ”(RUBENSTEIN,
2001:26)
Embora as correntes ortodoxas do cristianismo
também acreditem na herança divina na criatura, como uma presença imanente, há,
segundo elas, algo que turva o ser do homem e precisa de uma reparação. Ocorre
que esta reparação, intermediada por Cristo, é intermediada pelas instituições
que o representam (e essa ideia é mais forte no catolicismo), tornando o homem
de dependente de uma graça, que é de alguma forma materializada por mãos
humanas.
O espiritismo entende que toda essa doutrina
foi instrumentalizada para a dominação das consciências e por isso vê em Jesus
um modelo de perfeição moral, que qualquer ser humano é convidado a seguir,
porque o nosso destino de espíritos, criados por Deus, é o da perfeição. Ao mesmo
tempo, o mal perde seu caráter trágico, para tornar-se, apesar de todas as
barbáries humanas, uma espécie de aprendizado da liberdade. Deus nos deixa
inclusive experimentar os caminhos mais escabrosos, para aprendermos o valor do
bem. (Assemelha-se essa ideia ao construtivismo na pedagogia: a criança erra
para aprender ou o erro é uma experimentação necessária).
Dizia acima também que o espiritismo se
pretende universal, além de cristão, porque, embora reconheça em Cristo o
Espírito mais puro que já veio à terra e se insira dentro da tradição
judaico-cristã, Kardec dizia que a verdade da revelação divina está presente em
todas as religiões. Em todas as épocas, em todas as culturas, entre todos os
povos, houve enviados de Deus, para ensinar aos homens as leis da vida. (Além,
é claro, dessas leis estarem impressas na própria consciência humana).
Uma
proposta pedagógica espírita
Se lemos o espiritismo com olhos pedagógicos,
como foi escrito por Kardec e teorizado e praticado por iniciadores da
pedagogia espírita no Brasil (tais como Eurípedes Barnanulfo, Anália Franco,
Herculano Pires, Ney Lobo e outros) veremos que se podem deduzir alguns
princípios fundamentais, que aqui, didaticamente, resumo em três. Esses
princípios podem ser extraídos da cosmovisão espírita, mas não por acaso,
aparecem em três clássicos da Educação, de que Kardec foi herdeiro: Comenius,
Rousseau e Pestalozzi.
Se o espiritismo entende o percurso da alma
humana através do tempo, como um processo educativo, deflagrado por Deus,
compreendido como Pai, então deve haver uma pedagogia divina. Esta pedagogia
tem três parâmetros:
1) A liberdade: fomos lançados livres no
universo, com o direito e o dever de construirmos a nós mesmos e cultivarmos as
sementes de divindade que trazemos em nós;
2) A ação: somos livres, para agir no mundo e
é através da ação, que promovemos o nosso aprendizado, experimentando situações
e vivências, em diversas vidas, até adquirirmos sabedoria e virtude;
3) O amor: embora Deus tenha nos criado
livres para agir, não nos deixou ao abandono, cerca-nos com seu amor
incessante, enviando seus mensageiros, para ensinar ao homem a verdade e o bem,
colocando ao nosso lado Espíritos que nos amam e orientam e intervindo junto a
nós como Providência, que nos acompanha.
São esses três princípios, pois, que podemos
erigir como fundadores de uma proposta pedagógica espírita: respeitar a
liberdade e a individualidade da criança, que deve agir para aprender (e isso
vai desde a aplicação prática de fórmulas matemáticas até o exercício das
virtudes), mas essa ação livre deve ser acompanhada pelo amor dos educadores,
empenhados em incentivar e cultivar o lado bom dos educandos, com atenção,
diálogo, observação e autoridade moral.
Dentro
dessa filosofia educacional, como se apresenta o ensino da religião?
O espiritismo reconhece que a dimensão
espiritual do ser humano é essencial para o seu desenvolvimento integral. Ao
mesmo tempo, Kardec não queria que a doutrina espírita tivesse um caráter
proselitista (embora isso nem sempre seja seguido por seus adeptos), pois o
respeito à liberdade de consciência é quesito absoluto da ética por ele
proposta. Herculano Pires (que lutou na década de 60, pela escola laica,
gratuita e obrigatória), diante da necessidade de se recuperar o aspecto
espiritual na educação, propõe que:
“…não
podemos ter Educação sem Religião, o sonho da Educação Laica não passou de
resposta aos grandes equívocos do passado (…). O laicismo foi apenas um
elemento histórico, inegavelmente necessário, mas que agora tem de ser
substituído por um novo elemento. E qual seria essa novidade? Não, certamente,
o restabelecimento das formas arcaicas e anacrônicas do ensino religioso
sectário nas escolas. Isso seria um retrocesso e portanto uma negação de todas
as grandes conquistas (…). Reconhecendo que a Religião corresponde a uma
exigência natural da condição humana e a uma exigência da consciência humana, e
que pertence de maneira irrevogável ao campo do Conhecimento, devemos
reconduzi-la à escola, mas desprovida da roupagem imprópria do sectarismo.
Temos de introduzir nos currículos escolares, em todos os graus de ensino, a
disciplina Religião ao lado da Ciência e da Filosofia. Sua necessidade é
inegável, pois sem atender aos reclamos do transcendente no homem não
atingiremos os objetivos da paidéia grega: a educação completa do ser para o
desenvolvimento integral e harmonioso de todas as suas possibilidades.” (PIRES, 1985:40)
Bibliografia:
AUGUSTIN. A Work on the Proceedings of Pelagius.
415.
http://www.ccel.org/fathers/NPNF1-05/c5.1.htm
JOHNSON Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
KARDEC, Allan. Obras póstumas. São Paulo, Edicel, 1971.
ORIGÈNE. Traité
des principes. Paris, Études Augustiniennes, 1976.
PIRES, J. Herculano. Pedagogia Espírita. São Paulo, Edicel, 1985.
RIVAIL, H.-L.-D. Textos pedagógicos. Tradução Dora Incontri. São Paulo, Comenius,
1997.
RUBENSTEIN,
Richard E. Le jour où Jésus devint Dieu.
Paris, Éditions la Découverte, 2001.
WILLIAMS, Kevin. Christian
reincarnation, the long forgotten doctrine. 2002.
http://www.near-death.com/origen.html
[1] Essa era a tese de José Herculano Pires,
um dos grandes intérpretes do espiritismo no Brasil e defensores da pedagogia
espírita. Essa foi a tese que pretendi demonstrar em meu doutoramento:
INCONTRI, Dora. Pegadogia espírita, um projeto brasileiro e suas raízes
histórico-filosóficas. Tese de doutorado. São Paulo, FEUSP, 2001.
[2] Há polêmica em torno na posição de
Orígenes, mas lendo suas obras, fica clara a sua defesa, tanto da reencarnação,
quanto da salvação universal: “Deus, pai do universo, tudo organizou, segundo o
reino inefável de seu Verbo e Sabedoria, em vista da salvação de todas as suas
criaturas… (ORIGÈNE, 1976:81) ou ainda “Detivemo-nos sempre a demonstrar que a
providência de Deus, que dirige todas as coisas segundo a justiça, conduz
também as almas imortais pelas leis mais justas, adaptadas aos méritos e às
responsabilidades de cada um; pois o plano de Deus para o homem não está
fechado nos limites da vida deste século, mas um estado anterior de méritos
fornece sempre a causa do estado que se segue; assim, graças à lei imortal e
eterna de eqüidade e graça no governo da divina providência, a alma imortal é
levada à perfeição suprema.” (ORIGÈNE 1976:167)
[3] Expliquei a posição de Jesus no espiritismo
da seguinte maneira: “Não sendo o Ser Supremo do Universo (aliás, desde a época
da formulação do dogma da Trindade, esse universo se expandiu infinitamente e
se aceitamos a existência de Deus, e a sua presença, governo e poder entre
bilhões e bilhões de galáxias e em meio a prováveis inúmeras humanidades, fica
mais difícil aceitar a idéia de uma encarnação sua na Terra), Jesus Cristo não
se vulgariza com isso, tornando-se apenas mais um homem entre outros tantos.
Ele seria o Espírito que já atingiu a perfeição como todos nós atingiremos um
dia, segundo a lei da evolução. Portanto ele é a realização daquilo de que
somos ainda potência. É a meta a ser atingida, por um processo de educação do
espírito, nas sucessivas existências.” (INCONTRI, 2001)
Educação a luz do ESPIRITISMO, ESSE É O CAMINHO, assim formaria melhores seres humanos.
ResponderExcluirEsse texto me emocionou pela sua leveza, beleza e profundidade. Obrigado Dori. Roberto Caldas
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