Por
Dora Incontri (*)
A Pedagogia Espírita, como se sabe, se insere
numa tradição de pensadores e educadores, todos militantes de propostas
progressistas e libertadoras, que pretendem colocar a humanidade numa rota de
transformação radical, individual e coletiva. É uma proposta que se dirige a
todos os seres humanos, sem separar atividades, preconceitos ou exclusões.
Nesse sentido, revive em primeiro lugar, o
chamado de fraternidade universal que Jesus pronunciou dois mil anos atrás. Ele
incluiu, em seu círculo de amor, todos os que eram discriminados e relegados à
marginalidade e, ao mesmo tempo, usou de crítica enérgica contra os que se
fechavam em preceitos rígidos e hipócritas, considerando-se puros e exploravam
o próximo com seu poder. Estabeleceu o princípio de igualdade essencial entre
os homens, num tempo em que os povos mais civilizados, como Grécia e Roma, consideravam
essencialmente inferiores os que chamavam de bárbaros, os que eram escravos e
em que mulheres e crianças eram mera propriedade do poder masculino. Naquele
tempo, mesmo o povo que descobriu um Deus só, não O via como Pai de toda a
humanidade, mas apenas como Senhor dos exércitos, que fizera exclusiva aliança
com os judeus.
Os princípios de fraternidade e igualdade
inaugurados por Jesus deixaram profundas marcas na civilização e, ainda hoje,
quando falamos em palavras como inclusão, diversidade, pluralismo, mais não
estamos fazendo do que laicizar princípios profundamente arraigados na
filosofia do Cristo, embora seus seguidores, na maioria das vezes, tenham
traído tais ensinos.
Em todos os cantos do mundo, no Ocidente e no
Oriente, antes mesmo de Jesus, surgiram grandes Espíritos que abriram caminhos
de libertação pessoal e social. A Pedagogia Espírita, dentro da visão
universalista que tinha Kardec, embora se insira numa tradição cristã, porque o
Espiritismo nasceu no caldo cultural do Ocidente, não desconhece ou menospreza
a contribuição de Espíritos como Buda, Confúcio, Lao-Tsé. Com seu exemplo e com
seus ensinos, também criticaram estruturas de poder injusto, indicaram caminhos
de realização moral e de mudança social – como Buda, o príncipe que rompeu com
os sistemas de castas da Índia e tornou-se mendigo (numa atitude semelhante ao
que faria Francisco de Assis, muitos séculos depois, na trilha de Jesus), como
Confúcio que saiu pela China a educar o povo, ensinando a virtude, combatendo a
corrupção dos costumes e preconizando uma sociedade melhor organizada.
As duas facetas dos grandes Espíritos sempre
aparecem unidas, indissociáveis: o projeto de crescimento interior não é
alienação do mundo, nem escapismo místico, mas é ao mesmo tempo militância que
ilumina e transforma o próprio mundo. O entrar em si, como propunha Sócrates –
outra grande alma da nossa tradição ocidental – é ao mesmo tempo o sair de si,
do egoísmo, da indiferença, do imobilismo. Porque ao se ver como essência
divina, o ser humano enxerga em todos os seus semelhantes a mesma essência, e
nessa essência reside a verdade, a justiça, o belo e o bom (como queria
Platão). Ao entrar em si, o ser humano sai fortalecido para lutar o bom
combate, como diria Paulo, daquele amor “que não folga com a injustiça, mas
folga com a verdade”. (I Cor.13, 6)
No século XX, Gandhi, um herdeiro das duas
tradições – oriental e ocidental – pois inspirou-se em seus atos no Baghavad
Gita e no Sermão da Montanha, mostrou de maneira atual e nova como essa busca da
verdade interior pode dar ao ser humano a força de enfrentar um império,
libertar um povo e morrer pela paz. Gandhi, depois seguido de perto por Martin
Luther King, outro grande Espírito do século XX, apresentou um exemplo
impecável de como espiritualidade e militância social, conquista de si e luta
pacífica pela melhoria do planeta são projetos indissociáveis.
“Transformar o mundo, pela transformação dos
homens, transformar o homem pela transformação do mundo – eis a dialética do
Reino” – assim resumia Herculano Pires essa interação. (PIRES, 1967:133)
Os
grandes educadores
Nesse mesmo roteiro, estão os grandes
Espíritos educadores, que especificamente aplicaram com as crianças, esse
projeto de resgate da divindade humana, com a meta de transformar o planeta.
Podemos citar vários deles, como Comenius, Rousseau, Pestalozzi, Montessori,
Korzcak, – todos profundamente engajados em valorizar a infância, incluindo-a
como portadora de direitos, como sujeitos autônomos de sua própria construção
e, ao mesmo tempo, preocupados em criticar as estruturas sociais que permitem a
desigualdade, o abuso, a exploração – e a exclusão, das próprias crianças,
enquanto seres humanos inteiros.
Comenius, por exemplo, em pleno século XVII,
proclamou um projeto de educação universal, interreligiosa, integral, para a
paz e união dos povos. Foi ele que, inspirado nos preceitos do Cristo, mas
apartado do dogmatismo das igrejas, elaborou um projeto pansófico e pampédico,
no sentido de que era preciso “ensinar tudo a todos, totalmente”, porque a
justiça e a felicidade só poderiam ser alcançadas pelo desenvolvimento pleno do
ser humano em suas potencialidades eternas. As palavras, que põe em sua
obra-prima Pampaedia, são as mais inclusivas possíveis, revelando uma até hoje
inédita abrangência de projeto educacional (tanto do ponto de vista de atingir
todos os seres humanos, como o de atingir o ser humano por inteiro, como ainda
por abarcar todas as áreas de conhecimento e atuação no mundo):
“Nosso primeiro desejo é que todos os homens
sejam educados plenamente em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não
alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens, reunidos e
individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento elevado e
humilde — numa palavra, qualquer um cujo destino é ter nascido ser humano: de
forma que afinal toda a espécie humana seja educada, homens de todas as idades,
todas as condições, de ambos os sexos e de todas as nações.
Nosso segundo desejo é que todo homem seja
educado integralmente, formado corretamente, não num objeto particular ou em
alguns objetos ou mesmo em muitos, mas em tudo o que aperfeiçoa a espécie
humana; para que ele seja capaz de saber a verdade e não seja iludido pelo que
é falso; para amar o bem e não ser seduzido pelo mal; para fazer o que deve ser
feito e não permitir o que deve ser evitado; para falar sabiamente sobre tudo,
com qualquer um, quando necessário e não ser estúpido em nenhum assunto e
finalmente para lidar com as coisas, com os homens e com Deus, em todos os
sentidos, racionalmente e não precipitadamente e assim nunca se afastando da
meta da felicidade.
E educado em todos os aspectos: não para
pompa e exibição, mas para a verdade; quer dizer, para tornar os homens o mais
possível a imagem de Deus, na qual foram criados: verdadeiramente racionais e
sábios, verdadeiramente ativos e espirituais, verdadeiramente morais e
honrados, verdadeiramente pios e santos e assim verdadeiramente felizes e
abençoados tanto aqui, quanto na eternidade.
Em suma, para iluminar todos os homens com a
verdadeira sabedoria, para ordenarem suas vidas com verdadeiros governos e para
uni-los a Deus com verdadeira religião, de modo que ninguém se equivoque em sua
missão neste mundo.” (COMENIUS, 1965:17)
Rousseau, por sua vez, escreveu, entre suas
obras capitais, Emílio, ou da Educação e Contrato Social – complementares num
certo sentido – pois o Emílio educado tal como ele propõe saberia melhor viver
numa sociedade igualitária e justa como a do Contrato e, vice-versa, essa
sociedade só poderia ser constituída por homens e mulheres educados como o
Emílio. No Emílio propõe uma revolução pedagógica, baseada no reconhecimento da
especificidade da criança e da necessidade de liberdade para o desenvolvimento
harmônico de suas potencialidades e no Contrato Social, está embutida uma forte
crítica à sociedade corrompida e injusta de sua época e de todas as épocas.
Seu discípulo Pestalozzi, mestre de Kardec,
também foi militante social engajado na inclusão e integração de crianças
socialmente desfavorecidas e crianças bem nascidas, analisando em diversas
obras críticas a sociedade de seu tempo e propondo o caminho da educação
popular como resgate justo de populações inteiras excluídas da possibilidade de
realização moral, social, intelectual e pessoal. Ao mesmo tempo, como Comenius,
também tratava por inteiro do ser humano, resumindo isso na educação do
coração, da cabeça e das mãos. Em suas obras Leonardo e Gertrudes e Legislação
e Infanticídio (considerado o primeiro livro de sociologia da juventude da
história), há uma leitura muito atual das causas intrincadas, sociais,
políticas, psicológicas, que levam à criminalidade, à marginalidade e ao
fracasso do ser humano, enquanto ser de possibilidades cognitivas, afetivas e
espirituais.
Maria Montessori e Janusz Korzcak, ambos
médicos e ambos com farta influência pestalozziana – por isso, suas pedagogias
podem se dizer muito próximas da pedagogia espírita, tendo os mesmos
antecedentes históricos – foram outros dois exemplos de conexão intrínseca
entre militância pela educação e militância social – considerando que a criança
tem sido na história o ser mais destituído de direitos, mais sem voz e mais
excluído da posse de sua própria autonomia (mesmo na esfera em que lhe seria
plenamente possível decidir por si mesma, participar democraticamente e assumir
suas responsabilidades). Ambos inspiraram a Declaração dos Direitos da Criança
– tendo Korzcak escrito um livro a respeito, publicado no Brasil, em co-autoria
com Dalmo Dallari, O Direito da Criança ao Respeito. A ideia, tanto de
Montessori como de Korzcak é de que não haverá justiça e aperfeiçoamento
possível da civilização, enquanto não se fizer algo pela educação das crianças
– não no sentido de moldá-las dentro de uma cartilha ideológica (como
pretenderam fazer os sistemas políticos totalitários à direita e à esquerda),
mas no sentido de que elas sejam desde já co-partícipes de sua educação,
crescendo de maneira livre, crítica, plena e engajada. Por isso, Montessori
modificou o próprio espaço pedagógico, permitindo à criança manipular seu meio
e atuar sobre o ambiente e Korzcak (como faria também Padre Flanagan nos
Estados Unidos e A. Neill em Summerhill, Inglaterra) criou a República das
Crianças, onde seus alunos geriam as decisões da comunidade em pé de igualdade
com os adultos.
No Brasil, a pedagogia de Paulo Freire, que
se insere nesta mesma tradição, com nuanças socialistas, ao propor uma
pedagogia do diálogo, respeitando o lugar de partida do educando, dentro de seu
contexto e favorecendo-lhe o espírito crítico e a apropriação do conhecimento,
também faz obra inclusiva.
A
vanguarda espírita
Desde os seus primórdios, com as
personalidades de Kardec e Léon Denis na França, o espiritismo teve um caráter
progressista, de intensa militância pela educação popular, pela inclusão de
todos num projeto de educação universal. Basta lembrar que em sua obra de
pedagogo na França por mais de 30 anos, Kardec não só lutou pela educação
pública de qualidade, como manteve em sua própria casa cursos gratuitos para
centenas de alunos (adultos) de astronomia, química, matemática e gramática.
Léon Denis, por sua vez, além de estar lado das causas operárias,
cooperativistas, como oriundo aliás dessa classe, participou ativamente de
empreitadas de educação popular em sua época, como as bibliotecas e palestras
públicas e itinerantes, que a Liga de Ensino praticava na França.
No Brasil, a Pedagogia Espírita nasce em sua
prática mais avançada com Eurípedes Barsanulfo, que fundou uma escola em todos
os sentidos inclusiva – gratuita, que trabalhava os alunos em todas as suas
capacidades, que tinha alunos e docentes negros, numa época de predomínio de
ideias eugenistas, que mantinha meninos e meninas na mesma sala de aula – coisa
que nem os mais progressistas como Ruy Barbosa advogavam plenamente – e,
sobretudo, trabalhava o lado espiritual dos alunos, sem lhes ferir a liberdade
de consciência.
Anália Franco fez o mesmo nesse sentido
inclusivo, coisa que lhe valeu as críticas dos não-espíritas (por incluir a
dimensão espiritual) e dos espíritas (por fazê-lo de forma inter-religiosa e
não-sectária).
José Herculano Pires, que pela primeira vez,
formulou teoricamente aspectos fundamentais da Pedagogia Espírita, era homem
profundamente engajado nas lutas sociais de seu tempo, tendo definido essa
pedagogia como libertadora, democrática e não impositiva.
Os
princípios da inclusão
As diretrizes da Pedagogia Espírita, dentro
de toda essa tradição citada e assumida, devem portanto contemplar a inclusão
de maneira plena, abrangente e única, dentro das seguintes condições:
• Engajando-se na mudança estrutural da
sociedade injusta em que vivemos, praticando com os alunos a integração das
classes sociais (e não praticando o assistencialismo paternalista que coloca o
socialmente desfavorecido em posição de dependência e subalternidade);
• Propondo o resgate da espiritualidade como
dimensão necessária da vida e, portanto, da educação, mas sem proselitismo e
doutrinação, antes na prática do ensino interreligioso;
• Atuando de forma interdisciplinar, para
integrar os conhecimentos numa pansofia, como queria Comenius e, com isso,
fazendo da aprendizagem algo muito mais significativo e estimulante;
• Adotando os critérios de cientificidade e
racionalidade que Kardec propõe para a análise e adoção de um caminho
espiritual, justamente para que ele não se torne alienação e misticismo,
favorecendo a dominação e o escapismo.
Bibliografia
COMENIUS, Johann Amos.
Pampaedia. Heidelberg, Quelle & Meyer, 1965.
INCONTRI, Dora. Pedagogia
Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista, Editora
Comenius, 2006.
INCONTRI, Dora. Vivências
na Escola. Bragança Paulista, Editora Comenius, 2005.
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Sämtliche Werke und Briefe. Kritische Ausgabe. Zurique, Orell
Füssli, 1927-1980. Obras, Vol. I a XXVIII. Cartas, Vol. I a XIII.
PIRES, J. Herculano, O
Reino. São Paulo, Edicel, 1967.
ROUSSEAU, Jean Jacques.
Ensaios Pedagógicos. Bragança Paulista, Editora Comenius, 2004
(*) educadora, jornalista
e escritora brasileira; autora de mais de 20 obras publicadas, dentre elas
livros didáticos de filosofia e ensino inter-religioso.
¹ publicado originalmente em 23.11.2088 no site: http://pedagogiaespirita.org.br/tiki-read_article.php?articleId=51
A Pedagogia Espírita defendida e difundida pela Professora Dora Incontri, não tem recebido dos leitores deste Blog a repercussão devida em relação aos temas que ela vem tratando, o que para mim é motivo de estranheza, pois sei que aqui em Fortaleza já se esboçou um movimento por essa Pedagogia. O que houve? As ideias foram abandonadas? Por que o silêncio?
ResponderExcluirCaríssimo amigo!
ResponderExcluirBom e oportuno questionamento!