Os
educadores espíritas brasileiros
Ao longo do século XX, iniciando-se na
primeira década, com o marco histórico da fundação do primeiro colégio espírita
do Brasil – Colégio Allan Kardec – pelo educador mineiro Eurípedes Barsanulfo
(1880-1918) e alcançando a dobra do século XXI, diversas propostas foram
teorizadas e postas em prática, envolvendo a relação educação/espiritismo.
Algumas tomadas de posição mais significativas diante dos problemas
fundamentais com que nos defrontamos historicamente, podem fornecer um quadro
aproximado do papel do espiritismo em nossa sociedade.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que
existem claramente duas tendências no movimento espírita brasileiro: a mais
popular, que se tornou massa crítica nas últimas décadas, sob influência da
liderança de Chico Xavier, praticada na maior parte dos centros espíritas e nas
obras sociais que levam o rótulo de espírita, tem um perfil politicamente
conservador e socialmente assistencialista. Realizando quase um sincretismo com
a herança católica, essa tendência é criticada pela outra face do espiritismo
brasileiro, representada entre outros pelo jornalista e filósofo J. Herculano
Pires:
“O católico, o protestante, o espírita
se equivalem neste sentido, todos buscam o caminho do espírito para soluções de
questões imediatistas ou para garantirem a si mesmos uma situação melhor depois
da morte. A maioria absoluta dos espiritualistas está sempre disposta a
investir (esse é o termo exato) em obras assistenciais, mas revela o maior
desinteresse pelas obras culturais. Apegam-se os religiosos de todos os matizes
à tábua da salvação da caridade material…” (PIRES, 1975)
A outra tendência está mais enraizada na
tradição francesa, aquela mesma do século de Kardec, em que espíritas militavam
socialmente, em sintonia com as doutrinas mais progressistas da época. É nessa
vertente que se inserem os educadores que se empenharam por propostas de fato
alternativas de educação. É claro que a dialética não nos aconselha a enxergar
os fatos de forma maniqueísta e as contradições fazem parte da natureza das
coisas. Os assistencialistas também praticam educação. Às vezes não exatamente
da maneira como gostariam os que estão mais à esquerda do movimento. Mas, às
vezes, também se inspirando propriamente nestes. E estes, por outro lado, nem
sempre conseguiram levar à praxis aquilo que idealizaram.
Aqui, propomos rastrear rapidamente algumas
posições dos que se põe na vanguarda. Diante do conflito escola privada versus
escola pública, os espíritas (e aí se incluem todos) têm adotado duas posturas
predominantes: lutam sempre que possível e necessário pela escola pública e
fundam escolas próprias, mas em geral gratuitas, ou pelo menos,
majoritariamente gratuitas. Raras escolas destas são confessionais, no sentido
tradicional do termo, com aulas obrigatórias de espiritismo. A tendência mais
forte, mesmo entre os conservadores, é assumir uma posição de respeito à
pluralidade religiosa. A pluralidade étnica e a integração da mulher também se
inserem neste contexto.
Um exemplo antigo dessa postura está em Anália
Franco (1853-1919), espírita, feminista, abolicionista e republicana. Tendo
fundado mais de 100 lares para abrigar crianças carentes, dando abrigo,
educação e profissionalização aos alunos e às suas mães (muitas delas, mães
solteiras, que só teriam a alternativa da prostituição), Anália foi elogiada
pelo seu pluralismo, pelo senador Paulo Egídio, em 1903:
“Em um espaço inferior a um ano, esta
senhora e a Associação que ela dirige fundaram no Estado e na capital e
n’algumas cidades do interior 25 escolas e há 4 meses mais ou menos, essas 25
escolas tinham uma população escolar de 1000 crianças de ambos os sexos, de
todas as origens e procedências. Ali estão juntos o turco, o judeu, o
maometano, o católico, o cristão e o calvinista.” (Apud MONTEIRO, 1192:80)
Anália representa também outras
características do engajamento educacional espírita: logo após a lei de ventre
livre, dedica-se a educar as crianças negras, que eram marginalizadas nas
fazendas; depois, com grande escândalo social, promove a inserção das mulheres
no mercado de trabalho, pregando a autonomia feminina, entre as mulheres que
eram consideradas caídas, pelas rígidas convenções do período.
Seu contemporâneo, Eurípedes Barsanulfo, em
pleno coração da católica e conservadora Minas Gerais, ao fundar seu Colégio
Allan Kardec, também demonstra tais princípios, fazendo classes mistas e
incluindo negros entre os professores e os alunos.
Outro exemplo é o do professor curitibano Ney
Lobo (1919-) que, embora diretor de uma instituição mantida na época (décadas
de 60 e 70) pela Federação Espírita do Paraná, propôs um estudo de religiões
comparadas entre os alunos, devendo cada qual expor as idéias de sua própria
religião. No caso de Ney Lobo, já em outro contexto político, destaca-se o fato
de que, sendo ele militar, em plena ditadura, realiza uma educação para a
democracia, criando a cidade-mirim, em que as crianças elegiam seus prefeitos.iv
A
campanha pela defesa da escola pública
Muitos espíritas adotaram assim a postura de
lançar-se às obras educacionais, sem esperar a ajuda do Estado, mas sem
abandonar o princípio da gratuidade. Arranjaram soluções alternativas para a
sustentação de suas escolas: Anália teve o apoio da Maçonaria e fez um grupo de
música e teatro ambulante, com os alunos e alunas mais velhos, rodando o
interior paulista, em busca de recursos. Eurípedes trabalhou com voluntariado.
Tomás Novelino (1901-2000), discípulo de ambos, fundou uma fábrica de sapatos,
em Franca, cuja renda era toda destinada à manutenção de três escolas da Fundação
Pestalozzi. Conseguiu com isso, relativa estabilidade financeira durante 50
anos, chegando a atender mais de 2000 crianças, com escola e alimentação.
Na década de 60, porém, quando se discutia no
Brasil a problemática da escola pública, J. Herculano Pires (militante ardoroso
da pedagogia espírita), retomando a tradição daqueles que fundaram a Liga de
Ensino, na França, lidera uma campanha no meio espírita, apoiando a campanha
nacional pela escola laica, gratuita e obrigatória.
No virar da década de 50 a 60, o Brasil estava tomado pelos debates
acirrados entre aqueles que defendiam a escola pública laica, obrigatória e
gratuita e aqueles que, em nome da liberdade de ensino, queriam mais amplos
privilégios para as escolas particulares e confessionais. Desde 1948, estava em
discussão a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e já tramitava no congresso a
proposta inspirada em O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, (1932),
quando um substitutivo apresentado por Carlos Lacerda veio provocar tremendas
polêmicas em todo o país. Este substitutivo era acusado de favorecer o ensino
particular em detrimento da escola pública e de conferir maior poder à Igreja
Católica. Assim rezava um trecho do Manifesto em Defesa da Democratização
Escolar, feito pelo Clube de Jornalistas Espíritas, (presidido por Herculano),
e enviado ao Senado, depois da aprovação na Câmara do projeto combatido por
grande parte dos educadores de renome no Brasil:
“Os princípios confusionistas do projeto
aprovado, que mistificam o problema do ensino, misturando deveres do Estado,
com interesses particulares, em evidente benefício de interesses confessionais
— ainda mais nocivos do que aqueles, por implicarem coação de consciência — são
simples resíduos do obscurantismo medieval.” (PIRES, 1961)v
Apesar da
intensa Campanha, deflagrada em todo o país, de que os espíritas também
tomaram parte, principalmente pela pena combativa de Herculano, a Lei aprovada
trazia traços que favoreciam a iniciativa privada, conforme crítica de Anísio
Teixeira: “As tendências que vão ser fortalecidas pela nova Lei serão as do
desinteresse do poder público pela educação, do fortalecimento da iniciativa
privada, da preferência pela educação ‘de classe’, da expansão da educação para
os já educados…” (TEIXEIRA, 1999:270)
Herculano insiste. O Clube de Jornalistas
Espíritas havia lançado, em 1960, a Associação Espírita de Defesa da Escola
Pública. Em 62, envia um manifesto a todos os associados e à imprensa espírita
e não-espírita, conclamando todos à resistência e à vigilância para que a
escola pudesse ser um local de liberdade de consciência. Entre as metas propostas
neste novo manifesto, leem-se os seguintes itens:
“Luta incessante contra o ensino
religioso nas escolas, por constituir instrumento de coação das maiorias
religiosas contra as minorias, o elemento de condicionamento das consciências,
consequentemente, de deformação do ensino e da educação; luta incessante contra
as discriminações raciais, de cor, ideológicas e religiosas, nos
estabelecimentos de ensino públicos e particulares, com denúncia e ação
judicial nos casos concretos.” (PIRES, 1962).
Alguns
anos mais tarde, Herculano defenderia uma posição, aparentemente em contradição
com esse Manifesto:
“…não podemos ter Educação sem Religião,
o sonho da Educação Laica não passou de resposta aos grandes equívocos do
passado (…). O laicismo foi apenas um elemento histórico, inegavelmente
necessário, mas que agora tem de ser substituído por um novo elemento. E qual
seria essa novidade? Não, certamente, o restabelecimento das formas arcaicas e
anacrônicas do ensino religioso sectário nas escolas. Isso seria um retrocesso
e portanto uma negação de todas as grandes conquistas (…). Reconhecendo que a
Religião corresponde a uma exigência natural da condição humana e a uma
exigência da consciência humana, e que pertence de maneira irrevogável ao campo
do Conhecimento, devemos reconduzi-la à escola, mas desprovida da roupagem
imprópria do sectarismo. Temos de introduzir nos currículos escolares, em todos
os graus de ensino, a disciplina Religião ao lado da Ciência e da Filosofia.
Sua necessidade é inegável, pois sem atender aos reclamos do transcendente no
homem não atingiremos os objetivos da paidéia grega: a educação completa do ser
para o desenvolvimento integral e harmonioso de todas as suas
possibilidades.” (PIRES, 1985: 41)
A contradição é apenas aparente. Num momento
histórico em que se corria o risco de a escola recair novamente no domínio da
confessionalidade majoritária, Herculano alinha-se entre os progressistas, em
prol dos interesses da população brasileira, que não tivera acesso à educação,
e em nome da liberdade de consciência, princípio máximo que o Espiritismo adota
como linha de ação. Entretanto, quando propõe a pedagogia espírita como
contribuição à mesma educação brasileira, alerta para a necessidade de
recuperarmos a dimensão espiritual no homem num projeto pedagógico que possa
realizá-lo integralmente. A sua atitude anterior de luta contra a imposição
confessional revela que a atitude posterior de tomar a religiosidade de um
ponto de vista mais amplo não tem uma intenção encoberta de homogeneizar a fé.
O processo de recuperar a dimensão espiritual do homem para a educação deve ser
preservado de qualquer dominação confessional, garantindo-se a liberdade de
pensamento de professores e alunos. Assim, reencontra Herculano os pioneiros, a
que se refere Laplantine. Exatamente nessa perspectiva começou o embrião da
escola laica.
iv Essa
experiência de Ney Lobo, no Instituo Lins de Vasconcellos, também foi analisada
em minha tese, revelando seus aspectos inovadores.
v Villalobos
confirma que “foi em São Paulo, em campanha que abrangeu todo o Estado e que de
lá foi levada a outros pontos do país, que se organizou a resistência
sistemática, incansável, ao projeto, e de onde partiram as maiores pressões no
sentido de modificá-lo, pressões que quase lograram equilibrar — outro fato
inédito — as que procediam de opositores de há muito organizados e muito mais
poderosos. Professores de todos os níveis, estudantes, escritores, jornalistas,
operários, representantes das minorias religiosas, homens de diferentes camadas
sociais e graus de cultura, muitas vezes distantes em suas convicções morais e políticas,
uniram-se ao movimento, meses a fio, quase dois anos…” (VILLALOBOS, 1969:151)
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João Eduardo Rodriques. Diretrizes e Bases da Educação. Ensino e liberdade. São
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http://pedagogiaespirita.org.br/tiki-read_article.php?articleId=28
(*) jornalista, educadora, escritora espírita com mais de 20 livros lançados.
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