A participação histórica do espiritismo no
Brasil tem sido desconsiderada em estudos acadêmicos, apesar de já estarem
catalogadas na Capes pelo menos 35 dissertações e teses, que fazem alguma
referência ao espiritismo entre nós. São estudos, porém, que permanecem
desconhecidos e sem divulgação entre os pesquisadores. Trata-se por isso de uma
necessidade de resgate histórico promover a descoberta dessa porção ativa da
sociedade brasileira, suas raízes ideológicas e seus posicionamentos sociais e
políticos.
No campo da educação, minha tese de doutorado
na Universidade de São Paulo se ocupou em mostrar as longínquas raízes do
pensamento pedagógico espírita (desde Sócrates e Platão, passando por Comenius,
Rousseau e Pestalozzi) e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento desse pensamento no
Brasil e sua interação com nossa cultura.i
Nesse ponto, o engajamento dos espíritas na
defesa da escola pública foi um dos temas analisados rapidamente, já que se
tratava de fornecer um panorama geral da história, da filosofia e da prática da
pedagogia espírita. Aqui porém, farei uma revisão do assunto, indicando alguns
pontos nevrálgicos que podem ser mais desenvolvidos em futuras pesquisas.
Os
antecedentes históricos
Em 1828, com apenas 24 anos, Hippolyte Léon
Denizard Rivail (futuramente Allan Kardec), assinando suas obras como discípulo
de Pestalozzi, escreve um texto que ainda hoje mantém aspectos interessantes:
Plano proposto para a melhoria da educação pública. Seguindo a inspiração
pestalozziana, Rivail desenvolve duas ideias básicas: a proposta de uma
educação integral e a necessidade de se fazer uma ciência pedagógica,
enfatizando a formação do professor, embora também alerte para o fato de que a
educação transcende o conhecimento científico, sendo uma arte e uma vocação.
Dizia ele que “a meta da educação consiste no desenvolvimento simultâneo das
faculdades morais, físicas e intelectuais” (RIVAIL, 1997:15) E que: “os meios
para se educar a juventude são uma ciência bem distinta que se deveria estudar
para ser educador” (RIVAIL, 1997:13).
Assim, inaugurava Rivail, muito antes de se
dedicar ao estudo dos fenômenos chamados espíritas, uma linha de procedimento
que os adeptos do espiritismo seguiriam depois, que aliás descende diretamente
de Comenius e Pestalozzi. Poderíamos resumir essa proposta no seguinte:
trata-se de defender a escola pública como um cenário possível para a
realização de uma educação que lide com todas as dimensões humanas – e não
apenas a cognitiva. Um cenário de experimentação e de formação. Mesmo pública,
a educação não poderia ser apenas instrução. Deveria ser educação dos
sentimentos, do intelecto e da ação (como queria Pestalozzi, educação do
coração, da cabeça e das mãos). Mesmo pública, os professores deveriam ser
altamente preparados e conscientes de sua missão social e humana. Só usamos a
palavra restritiva mesmo pública, a partir da realidade da escola pública que
conhecemos hoje, onde nem o aspecto parcial da cognição é atingido
satisfatoriamente. Pois a escola que vemos está muito longe de como a
idealizava Comenius:
“Toda escola pública deve se tornar: 1)
uma casa pública de saúde, onde os alunos aprenderão a viver em boa saúde; 2)
um parque público, onde treinarão sua agilidade e vigor, que será útil para a
toda a vida; 3) a casa das luzes, onde suas mentes se iluminarão com a luz do
conhecimento; 4) a casa da oratória, onde todos aprenderão o uso da linguagem e
das palavras; 5) um lugar de trabalho, onde ninguém viverá (e nem depois na
vida) como os grilos do campo, desperdiçando o tempo em cantilenas, mas como
formigas sempre operosas; 6) uma oficina da virtude, em que todos os membros da
escola aprenderão as virtudes mais refinadas; 7) a imagem da vida civil, onde
todos aprenderão a serem governados e a governar por sua vez, como num Estado em
miniatura, e assim aprendendo desde a infância a governar as coisas, a si
mesmos e aos outros; 8) e finalmente uma representação de Igreja, onde (…)
aprenderão a sabedoria sobre Deus e a reverência pelo divino. Assim, deverão
diariamente (…) ser ensinados na fé e iniciados em diferentes doutrinas
religiosas. E afinal, devo mencionar os exercícios, pois em todas as escolas
públicas, tudo deve estar vivo por exemplos e práticas, pois é o caminho mais
curto e eficiente para a aprendizagem.” (COMENIUS, 1965:125)
Como se vê, para Comenius, todos os aspectos
do homem deveriam ser trabalhados na educação pública, inclusive o religioso
(de forma ecumênica) e o político (de forma participativa), com métodos sempre
ativos.
Foi exatamente nesse parâmetro de raciocínio,
que nasceu a escola laica, obrigatória e gratuita. A laicidade era uma forma de
oposição ao predomínio católico na educação, mas não significava desprezo pela
dimensão moral e espiritual do ser humano. Pestalozzi, por exemplo, realizava
no Instituto de Yverdon uma educação pluralista (completamente inédita na
época), mas sem perda desses aspectos.
Ora, uma informação no mínimo curiosa, mas
nem um pouco surpreendente para quem está seguindo esse fio da história é que o
movimento iniciado na França em prol da escola pública foi feito
predominantemente por espíritas. É um pesquisador francês que nos informa:
“A Liga parisiense de Ensino foi fundada
por seis militantes laicos: Jean Macé, Camille Flamarion, Emmanuel Vauchez,
Alexandre Delanne, Pierre-Gaëtan Leymarie e André Vautier. Ora, fora Jean Macé,
todos são espíritas, e a própria associação tem sua sede no domicílio de
Leymarie, sucessor de Kardec (…). Assim, os pioneiros do que vai se tornar em
1881 a Liga Francesa de Ensino, são em sua maioria espíritas, que com a sua
própria doutrina, lutam pela instrução gratuita, laica e obrigatória.” (AUBRÉE
& LAPLANTINE, 1990: 75) ii
Essa militância, como Laplantine percebeu,
não é fruto de uma conjunção aleatória de pontos de vista afins. A ideia da
educação está visceralmente ligada ao espiritismo. Fundado por um educador,
herdeiro das visões pedagógicas de Rousseau e Pestalozzi, o projeto espírita
não é uma proposta salvacionista. A ideia da reencarnação enfatiza a autonomia
humana, no processo permanente de evolução – leia-se auto-educação – e a
responsabilidade individual ante o progresso coletivo, que implica em mudanças
sociais e reformas educacionais. Assim, “a educação está no centro do
espiritismo” (AUBRÉE & LAPLANTINE, 1990: 79)
A gratuidade e a obrigatoriedade são
necessariamente componentes de qualquer ideia que pretenda contribuir para a
evolução social, através da promoção cultural, política e econômica das classes
populares. Pois somente através do acesso irrestrito à educação é que os
indivíduos e as classes, as comunidades e os povos poderão de fato participar
na gestão do próprio destino.
Esse discurso, de conotação claramente
iluminista – mas que, como vimos remonta a Comenius, o educador universalista,
pacificista e ecumênico do século XVII – encontra uma especificidade inédita no
espiritismo – que é o de estender a ideia não apenas a toda a humanidade, mas
projetá-la no tempo, pela transcendência dos indivíduos que vão e vem ao
cenário da vida, através da reencarnação.
Outra característica toda própria desse
discurso, apesar de já se encontrar ela presente em Rousseau e Pestalozzi, é o
de considerar a transcendência humana, ou seja, a dimensão espiritual do ser,
como um terreno de encontro de várias doutrinas e religiões. Dessa forma,
trata-se de um espiritualismo assumido, que não se pretende um proselitismo
particularista. Como veremos, isso se manifesta numa pedagogia que leva em
consideração o aspecto religioso do homem e das culturas, mas não se faz
confessional e doutrinante, dogmática e proselitista.
Há ainda que se ressaltar o caráter
igualitário de tal vertente, em primeiro lugar, manifestado no próprio impulso
de lutar pelo acesso de todos à educação. Em segundo, promovendo a educação
feminina, de forma bastante precoce historicamente. Rivail, já nas primeiras
décadas do século XIX, debate o problema da educação da mulher e engaja-se
praticamente nessa campanha, coadjuvado por sua esposa Amélie Boudet,
igualmente educadora. Mais tarde, Kardec, adotará em nome do espiritismo, a
reivindicação pelo voto feminino e por participação das mulheres em atividades
antes adstritas aos homens. Na Revista Espírita, ele saúda qualquer notícia da
época que mostre avanço da luta feminina por maior espaço de atuação social.
Da mesma forma, o combate a qualquer forma de
discriminação racial e religiosa também já está presente desde o primeiro
Rivail, encontrando fortes reflexos no Brasil.iii
i Ver INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um
projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas. (tese de Doutorado) São
Paulo, FEUSP, 2001.
ii
Laplantine indica também ligações de espíritas com movimentos operários,
socialistas, anarquistas – de várias nuanças da esquerda da época. Assim como
houve no Brasil e nos países latino-americanos inúmeros espíritas, como
Herculano Pires, Humberto Mariotti, Manuel Porteiro e outros, que entendiam o
espiritismo como proposta de transformação social, usando inclusive o
instrumento da dialética (embora evidentemente não materialista) para fazer a
leitura crítica da realidade. Isso tudo é importante para fazer balançar a
ideia comumente aceita de que o espiritismo é uma doutrina conservadora. Muitas
vezes, o movimento espírita assim se manifesta pelo caldo cultural em que criou
raízes no Brasil, mas não pela própria essência da doutrina de Kardec.
iii
Esse igualitarismo encontra respaldo na doutrina da reencarnação. Podendo o
espírito reencarnar-se ora homem, ora mulher, ora negro, ora branco, inserido
em qualquer cultura, a essência humana não muda e não há diferenças
intransponíveis entre as condições étnicas, sexuais ou culturais. Nem sempre a
ideia da reencarnação é usada de forma semelhante. Basta lembrar as castas na
Índia ou mesmo o conservadorismo social que certos espíritas que tendem a
reforçar desigualdades pela justificativa da lei do carma. Mas isso não
pertence intrinsecamente à ideia espírita e nem mesmo à ideia da transmigração
das almas. O primeiro igualitário a se basear na reencarnação foi Pitágoras.
Platão, também reencarnacionista, assume uma atitude contraditória: ao mesmo tempo
em que reconhece por exemplo a capacidade da mulher em ser guerreira ou
filósofa em sua República, propõe uma sociedade hierarquizada.
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(*) educadora, jornalista e escritora
brasileira; autora de mais de 20 obras publicadas, dentre elas livros didáticos
de filosofia e ensino interreligioso.
¹ http://pedagogiaespirita.org.br/tiki-read_article.php?articleId=28
Veemente! Destaquei as funções da escola pública. Conforme Comenius. Quem nos dera, aqui nos Brasil!
ResponderExcluir1) casa pública de saúde
2) parque público (de atividades físicas)
3) casa das luzes
4) casa da oratória
5) lugar de trabalho
6) oficina da virtude
7) imagem da vida civil
8) representação de religiosidade
O Espiritismo como obra de educação é que deveria empolgar todo espírita, e não, tão somente, o seu aspecto religioso-igrrejeiro que se desenvolveu no Brasil.
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