Por Dora Incontri e Alessandro César Bigheto (*)
Resumo: Este artigo pretende
resgatar a ala esquerda do espiritismo, romontando-a já desde Pestalozzi,
mestre de Kardec, pelo próprio fundador do espiritismo e seus discípulos na
França e no Brasil. Apesar de o movimento espírita brasileiro revelar traços
conservadores, existe um espiritismo à esquerda, cultivado na América Latina,
incluindo o Brasil e que descende do espiritismo francês, entendido como
proposta social, aplicada na educação.
Estes apontamentos
pretendem apenas indicar uma vasta linha de pesquisa ainda pouco trilhada, que
aponta as relações históricas e teóricas entre socialismo e espiritismo. Não é
assunto pacífico nem para socialistas (sobretudo marxistas) nem para espíritas,
mas trata-se de demonstrar que houve aproximações, diálogos e influências mútuas
neste campo. Aliás, a dialética, que se propõe como método de entender as
contradições e chegar a sínteses, não deveria permitir o dogmatismo ideológico
que impede a aproximação do que aparece, à primeira vista, paradoxal.
Tudo
começa já com o mestre de Allan Kardec (Rivail), Johann Heinrich Pestalozzi,
que, ao contrário da análise pouco informada de alguns, que ignoram a
complexidade de sua obra e de sua trajetória, passou da crença no despotismo
esclarecido a um pensamento social, que não pode ser meramente considerado
burguês, pois, ao mesmo tempo, em que ele foi condecorado como membro honorário
da Revolução Francesa, foi crítico dela. Em seu pensamento, (ver Incontri:1996), existem traços de uma
dialética original – que é espiritualista, se dá na história, mas não tem o
totalitarismo panteísta de Hegel ou de Fichte. Com este último, Pestalozzi
manteve fecundo diálogo.
Tendo
Pestalozzi uma vasta e multifacetada obra, a interpretação a respeito é
bastante controversa. Alguns o vêem como um pensador romântico, outros como
típico representante do iluminismo. Mas, existe uma leitura mais à esquerda,
que identifica elementos bastante originais do seu pensamento. Por exemplo,
TOLLKÖTTER (s.d) estabelece comparações entre Marx e Pestalozzi, em relação ao
trabalho, à sociedade e à educação.[1]
SCHLEUNER (1974), faz interessante estudo comparativo entre a experiência de
Pestalozzi em Stans e a experiência socialista de Makarenko.[2]
Assim
também entre os autores espíritas, já de início com o próprio Kardec, discípulo
e herdeiro de Pestatalozzi, há polêmicas e diversas leituras, dependendo da
lente ideológica dos estudiosos. Humberti Mariotti fala de uma “esquerda
kardeciana” (HOLZMANN NETTO, 1970).
Mas
é inegável que houve confluências e influências entre socialismo e espiritismo.
Em
primeiro lugar, descrevamos resumidamente os fatos, para depois analisarmos
algumas idéias:
Kardec
era um educador preocupado com as questões sociais, que militava pela educação
pupular. Já aos 24 anos de idade, escreveu brilhante ensaio Proposta para a melhoria da Instrução
Pública (ver RIVAIL, 2000) e durante décadas deu cursos gratuitos, em sua
própria casa, de química, matemática, astronomia, fisiologia, gramática… numa
tentativa de democratizar o conhecimento.
Ao que parece,
manteve relações com os socialistas (depois chamados de utópicos por Marx e
Engels), pois em sua fase espírita, os cita constantemente, entre eles,
Fourier, e Saint-Simon. (Robert Owen, por sua vez, recebeu influência de
Pestalozzi, pois o visitou em Iverdon e mais tarde tornou-se adepto do
espiritismo). O pesquisador francês François Gaudin descobriu recentemente
documentos ainda inéditos, revelando a parceria de Kardec com o amigo Maurice
Lachâtre, conhecido socialista de tendência anarquista e editor das obras de
Marx, em fascículos populares. Ambos tiveram um projeto economicamente
fracassado da fundação de um banco popular, possivelmente nos moldes do que
queriam os socialistas pré-marxianos e os anarquistas como Proudhon.
O
sucessor de Kardec, que liderou o movimento espírita francês até depois da
Primeira Guerra Mundial, foi Léon Denis, um operário de Tours, autodidata,
amigo e companheiro de Jean Jaurès, socialista espiritualista. Denis escreveu a
obra Socialismo e Espiritismo, um
clássico da literatura social espírita. Nesta obra, Denis relata seu profundo
envolvimento com o movimento operário francês, e os conflitos entre um
socialismo materialista e um socialismo espiritualista, quando da sua
participação de um ciclo de conferências na Bélgica, com Volders e Oskar Beck.
Volders organizou o Congresso Socialista Internacional em Bruxelas, em1891.
(Ver DENIS, 1987:38)[3]
Na
América Latina, o pensamento socialista espírita teve vários representantes.
Entre eles, o venezuelano Manuel Porteiro, que escreveu Espiritismo Dialéctico, os argentinos Cosme Mariño e Humberto
Mariotti, autores respectivamente de Concepto
Espiritista del Socialismo e Parapsicologia
e Materialismo Histórico, os brasileiros Eusínio Lavigne e Souza Prado, de
tendências stalinistas, com a obra Os
Espíritas e as Questões Sociais, Jacob Holzmann Netto, que participou do
Movimento Universitário Espírita na década de 70 (depois abafado pela
ditadura), com o livreto Espiritismo e
Marxismo e, o maior expoente da intelectualidade espírita no Brasil, o jornalista
e filósofo J. Herculano Pires, autor de Espiritismo
Dialético e O Reino.
A crítica social em O Livro dos Espíritos
Ao
contrário da interpretação popular do espiritismo brasileiro, nas obras de
Kardec, consideradas pelos seguidores como fundamentais, não há a aceitação de
um fatalismo social, determinado pela idéia da reencarnação. Sobretudo em O Livro dos Espíritos, aparecem críticas
à estrutura social injusta e indicações de que é preciso tranformar a
sociedade, junto ao apelo constante à tranformação do homem. Dentro da
perspectiva evolucionista, a evolução social interage dialeticamente com a
evolução individual. Como explicaria depois Herculano Pires: “Transformar o
mundo pela transformação do homem e transformar o homem pela transformação do
mundo. Eis a dialética do Reino, que o cristão de seguir.” (PIRES, 1967:136)
Entre
as questões levantadas por Kardec na referida obra está a da propriedade, que
era, como se sabe, objeto de discussão de socialistas e anarquistas de todos os
matizes. A idéia expressa no Livro dos
Espíritos vai no sentido da propriedade coletiva, com a crítica do acúmulo
de capital, que se manifesta no plano moral, como egoísmo:
“O
direito de viver confere ao homem o direito de ajuntar o que necessita para
viver e repousar, quando não mais puder trabalhar? - Sim, mas deve fazê-lo em
comum, como a abelha, através de um trabalho honesto, e não ajuntar como um
egoísta.” (KARDEC, item 881)
Em
seguida, Kardec indaga a partir do ponto de vista liberal que sempre defendeu a
idéia de que a riqueza é uma questão de mérito (e não de injustiça) e a
resposta mais uma vez é crítica.
“A desigualdade das riquezas não tem sua
origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do
que a outros? — Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?” (KARDEC, item 801)
Em
várias outras passagens há críticas ao supérfluo de uns e à miséria de outros,
à criação artificial de necessidades – em suma, o que poderíamos hoje chamar de
consumismo excludente:
“Há, entretanto, uma medida comum de
felicidade para todos os homens? — Para a vida material, a posse do necessário;
para a vida moral, a consciência pura e a fé no futuro.” (KARDEC, item 922)
“Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de
fome.”
Isso
apenas para introduzir brevemente algumas questões sociais tratadas por Kardec
de maneira nada alienada, nem conformista.
[1] Diz Tollkötter, logo no início de seu
trabalho, já estabelecendo os pontos de encontro entre Marx e Pestalozzi: “…que
ambos exigem a humanização do homem e do mundo, e tentam realizá-la segundo o
princípio de que o homem faz as circunstâncias e as circunstâncias fazem o
homem e que portanto o homem e o mundo são fatores mutuamente determinantes.”
(TOLLKÖTTER, s/d: 12)
[2] Segundo Schleuner, não há diferença
entre os métodos didáticos-pedagógicos empregados por Pestalozzi e Makarenko,
ambos em situações-limite de guerra e revolução. Também se identificam ambos na
sua doação pessoal, em situações parecidas de viverem entre os carentes, para
recuperar sua condição humana, social e política.
[3] Comenta Denis, já no fim da vida:
“…sempre guardei contato com as classes trabalhadoras, partilhei de seus
cuidados, suas aspirações para o progresso. Tornei-me muito interessado no movimento
cooperativo e, por muito tempo, recebi, a título gracioso, os livros de um
grupo de operários cordooeiros reunidos em um empreendimento comum.” (DENIS,
1997:36).
Bibliografia
BUKHARIN,
N. Tratado de Materialismo histórico. Centro
do Livro Brasileiro, s/d.
COLOMBO,
Cleusa Beraldi. Idéias Sociais Espíritas.
São Paulo, Comenius, 1998.
DENIS,
Léon. Socialismo e Espiritismo.
Matão, O Clarim, 1987.
HOLZMANN
NETTO, Jacob. Espiritismo e Marxismo. Campinas,
Edições Fagulha, 1970.
INCONTRI,
Dora. Pedagogia Espírita, um projeto
brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista, Comenius, 2004.
INCONTRI,
Dora. Pesztalozzi, Educação e Ética.
São Paulo, Scipione, 1996.
KARDEC,
Allan. Le Livre des Esprits, Paris, Dervy-Livres, 1972.
LAVIGNE,
Eusínio & PRADO, Sousa do. Os
espíritas e as questões sociais. Niterói, Editora Renovação Ltda, 1955.
MARIÑO,
Cosme. Concepto espiritista del
socialismo. Buenos Aires, Victor Hugo, 1960.
MARIOTTI,
Humberto. Parapsicologia e Materialismo
Histórico. São Paulo, Edicel, 1983.
PIRES,
J. Herculano. O Reino. São Paulo,
Edicel, 1967.
PORTEIRO,
Manuel S. Espiritismo Dialéctico. Buenos Aires, Victor Hugo, 1960.
RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos Pedagógicos. São
Paulo, Comenius, 2000.
(*) Dora
Incontri, educadora, jornalista e escritora brasileira; autora de mais de 20
obras publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino
inter-religioso.
(*) Alessandro
César Bigheto, mestre em Filosofia, história e educação pela Universidade
Estadual de Campinas (2006). É professor do ensino infantil ao ensino médio –
Colégio Jean Piaget e Colégio Leonardo da Vinci -, professor de curso de
Gradução do Centro Universitário Padre Anchieta e da Faculdade Barão de
Jundiaí, e da pós-graduação da Universidade Santa Cecilia. Tem experiência na área
de Educação, filosofia e temas afins, com ênfase em Filosofia da Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, ética, filosofia da
educação, história da educação e tolerância religiosa. É autor de Eurípedes
Barsanulfo, um educador de vanguarda na Primeira República (Editora Comenius),
e coautor das obras Madre Teresa de Calcutá, a mulher que escolheu os pobres
(Editora Comenius); Filosofia - construindo o pensar (Escala Educacional); e da
coleção Jeitos de Crer e Todos os Jeitos de Crer (Editora Ática).
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