Dora
Incontri e Alessandro Cesar Bigheto (*)
Dialética e espiritismo
Entretanto,
o que nos interessa mais aqui é discutir a dialética, do ponto de vista
filosófico, pois parece que há uma posição original a ser descrita, a partir da
obra de Kardec e de seus intérpretes à esquerda.
Diz
Piettre (e essa é uma posição mais ou menos generalizada a respeito) que
existem duas maneiras de encarar a realidade: a do ser e a do devir. Conforme
explica:
“Resumindo-se por alto a longa peregrinação do pensamento
humano, pode-se dizer que sempre existiram não mais do que duas filosofias,
duas maneiras de representar o mundo: a filosofia do ser e a do vir a ser (…)”
(PIETTRE, 1969:27)
A
filosofia clássica, de herança platônica, estaria ligada à primeira forma de
percepção de mundo: o absoluto estático, a identidade permanente do ser. A dialética, que descende de Heráclito,
depois revivida por Hegel, entende a realidade como transformação permanente. O
ser não é, está sendo. No processo de ser, há um momento de negação, de
não-ser. Nesta visão, a concepção trinitária de tese-antítese-síntese é a
dinâmica de ser através de contradições e superações.
Em
Hegel, esta interpretação de mundo está inserida num espiritualismo panteísta
em que o Ser é o próprio absoluto, que se encarna no processo histórico. Marx,
como se sabe, recebeu uma forte influência da concepção hegeliana da dialética.
Para Marx e Engels, a dialética que se manifesta no processo histórico é
sobretudo material, sem nenhuma imanência ou transcendência espiritual. São as
forças produtivas que engendram a história e o homem é, ao mesmo tempo, por ela
determinado, e sujeito, capaz de transformá-la.
Temos
assim, três posturas filosóficas aqui descritas: a espiritualista estática, com
o absoluto divino e a indentidade espiritual do sujeito; a dialética
espiritualista (ou idealista), com a dissolução da identidade tanto do Absoluto
(que está em processo de devir), quanto do sujeito individual (que se perde no
todo); a dialética materialista, com a negação do absoluto e a indentidade do
sujeito submetida às leis da história, à identidade de classe, ao determinismo
biológico e social, e, apesar disso, capaz de fazer a história.
Antes
de continuar esta análise, é preciso definir bem os termos. O que significa
idealismo e materialismo? A definição de Bukharin pode ser aceita por ambas as
correntes:
“O materialismo considera a matéria como causa primária e
fundamental; o idealismo, ao contrário, considera em primeiro lugar o espírito.
Para os materialistas, o espírito é um produto da matéria; para os idealistas,
ao contrário, é a matéria que é produto do espírito.” (BUKHARIN, s/d: 57)
A
visão dialética (tanto a idealista, quanto a materialista) é histórica, ao
passo que o espiritualismo clássico situa o ser acima da história. Isto, apesar
do fato já muito discutido e estudado de que a idéia de história nasce com a
tradição judaico-cristã.[1]
A
visão espírita apresenta-se como uma síntese dessas posições. Admite a
identidade absoluta (e não sujeita ao devir) de Deus, como causa de todas as
coisas, mas admite o devir permanente dos seres, da história, num processo
dialético entre o indivídual e o coletivo. Não aceita a finalidade da história como
algo pré-determinado (e nesse ponto assemelha-se ao anarquismo). Avisa
Porteiro: “…não estamos nem com o individualismo, nem com o fatalismo
histórico, seja este último de Santo Agostinho ou de Marx.” (PORTEIRO,
1960:141)
A
questão da liberdade aí se põe, como fundamental. Não existe um fatalismo
previsível da história, porque o homem de fato faz a história e este homem não
é apenas determinado socialmente, porque é espírito. Explica muito bem
Mariotti:
“O Homem, para Kardec, é um espírito
encarnado, que reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine sua
visão e intuição espirituais. É por isso que, com a Doutrina Social Espírita,
podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história,
isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si
mesmo, segundo tenham sido seus atos para construí-lo e edificá-lo.” (MARIOTTI,
1983:29)
Evolucionismo
individuado, (como classificamos em Incontri:2004),
historicidade com liberdade coletiva e individual, dialética com visão de
imanência e transcendência – assim poderíamos definir essa dialética espírita,
tratada pelos autores espíritas da esquerda.
As
questões que opõem marxismo e espiritismo se radicam em dois pontos (e em
nenhum outro): o materialismo versus espiritualismo e a aceitação do uso da
violência como necessidade histórica contra a renúncia ao uso de todo poder de
força (mesmo em legítima defesa). Em ambos os pontos, o espiritismo está mais
próximo dos socialistas pré-marxianos e dos anarquistas cristãos, da linha de
Tolstoi.
A via da educação
Mesmo
os espíritas mais à esquerda, como os que na década de 50 eram simpatizantes de
Stalin, admitem que o modo de transformação social mais eficaz é através da
educação.
“Queremos mostrar, perante a realidade histórica, que a
eficiência do ensino individual decorre, sobretudo, da libertação popular, de
que resulta, por sua vez, o poder político-econômico nas mãos do povo
organizado. Com isso, a produção coletiva destina-se ao bem de todos, a começar
pelo ensino, enquanto concomitantemente, desaparece a exploração do homem pelo
homem, com uma série incomensurável de proveitos intelectuais e morais para a
superestrutura do espírito.” (LAVIGNE & PRADO, 1955: 33)
Sendo
o espiritismo uma doutrina eminentemente pedagógica, fundada por um educador, a
militância social através da educação tem sido uma constante, desde Kardec.
Conta Denis a respeito de sua própria experiência:
“Depois da Guerra de
1870, compreendi que era preciso trabalhar com ardor para a educação do povo.
Com este fim e o auxílio de alguns cidadãos devotados, havíamos fundado, em
nossa região, a “Liga de Ensino”, da qual me tornei secretário geral; foram
criadas bibliotecas populares e se iniciaram, em pouco por toda a parte, séries
de conferências.” (DENIS, 1987:36)
Neste sentido,
assumindo um otimismo essencialmente pedagógico (de que todos os seres humanos
são educáveis, perfectíveis, capazes de transcender interesses pessoais, para
devotar-se ao bem geral, o espiritismo escapa da condenação eterna dos maus –
do cristianismo tradicional – como da condenação à morte das classes
dominantes, que se opõem ao progresso histórico. Educação universal, atavés dos
séculos, porque a história se faz com seres que vão e voltam, se educam e
aprendem, para a realização individual e coletiva da felicidade.
No Brasil, a
militância espírita pela educação pública e/ou gratuita (na maioria das vezes
gratuita, mas nem sempre pública) começou no início do século XX, com o
primeiro educador espírita brasileiro, Eurípedes Barsanulfo, que manteve uma
escola popular para 200 crianças na cidade de Sacramento, Minas Gerais. Anália
Franco, outra espírita, educadora e feminista também demonstrou sua militância
política e pedagógica, primeiro engajando-se na educação dos negros (logo após
a Lei do Ventre Livre) e depois se dedicando a fundar mais de 100 escolas e
abrigos no Estado de São Paulo, todas voltadas para atender crianças órfãs e
predominantemente de mães solteiras, profissionalizando também as próprias
mães.
Na década de 60 e 70,
houve a participação ativa dos espíritas, liderados pelo jornalista e escritor
José Herculano Pires, em prol da defesa da Escola Pública.
Assim, a ala mais
intelectualizada e politizada do movimento espírita brasileiro tem dado sua
contribuição, até agora bastante ignorada, numa militância pedagógica
transformadora, que se enraíza na visão de um socialismo espiritualista.
Bibliografia
BUKHARIN,
N. Tratado de Materialismo histórico. Centro
do Livro Brasileiro, s/d.
COLOMBO,
Cleusa Beraldi. Idéias Sociais Espíritas.
São Paulo, Comenius, 1998.
DENIS,
Léon. Socialismo e Espiritismo.
Matão, O Clarim, 1987.
HOLZMANN
NETTO, Jacob. Espiritismo e Marxismo. Campinas,
Edições Fagulha, 1970.
INCONTRI,
Dora. Pedagogia Espírita, um projeto
brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista, Comenius, 2004.
INCONTRI,
Dora. Pesztalozzi, Educação e Ética.
São Paulo, Scipione, 1996.
KARDEC,
Allan. Le Livre des Esprits, Paris, Dervy-Livres, 1972.
LAVIGNE,
Eusínio & PRADO, Sousa do. Os
espíritas e as questões sociais. Niterói, Editora Renovação Ltda, 1955.
MARIÑO,
Cosme. Concepto espiritista del
socialismo. Buenos Aires, Victor Hugo, 1960.
MARIOTTI,
Humberto. Parapsicologia e Materialismo
Histórico. São Paulo, Edicel, 1983.
PIRES,
J. Herculano. O Reino. São Paulo,
Edicel, 1967.
PORTEIRO,
Manuel S. Espiritismo Dialéctico. Buenos Aires, Victor Hugo, 1960.
RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos Pedagógicos. São
Paulo, Comenius, 2000.
(*)
Dora Incontri, educadora, jornalista e escritora brasileira; autora de mais de
20 obras publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino
inter-religioso.
(*)
Alessandro César Bigheto, mestre em Filosofia, história e educação pela
Universidade Estadual de Campinas (2006). É professor do ensino infantil ao
ensino médio – Colégio Jean Piaget e Colégio Leonardo da Vinci -, professor de
curso de Gradução do Centro Universitário Padre Anchieta e da Faculdade Barão
de Jundiaí, e da pós-graduação da Universidade Santa Cecilia. Tem experiência
na área de Educação, filosofia e temas afins, com ênfase em Filosofia da
Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, ética,
filosofia da educação, história da educação e tolerância religiosa. É autor de
Eurípedes Barsanulfo, um educador de vanguarda na Primeira República (Editora
Comenius), e coautor das obras Madre Teresa de Calcutá, a mulher que escolheu
os pobres (Editora Comenius); Filosofia - construindo o pensar (Escala
Educacional); e da coleção Jeitos de Crer e Todos os Jeitos de Crer (Editora
Ática).
[1] São bastante discutidas as
ressonâncias messsiânicas no próprio Marx. A idéia de que a história tem uma
finalidade, seja a da redenção cristã, da realização do Espírito absoluto, a do
paraíso comunista ou da evolução permanente, nasceu no bojo judaico-cristão.
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