Psicoterapias
modificam circuitos neurais disfuncionais associados ao stress pós-traumático;
pessoas com fobias, transtorno obsessivo compulsivo e depressão também podem
ser beneficiadas Com relativa frequência pessoas de variadas idades e classes
sociais são expostas a eventos violentos que ameaçam sua vida. A maioria de nós
passou ou passará por situações dolorosas, de expressivo impacto psicológico,
como perdas de entes queridos, acidentes e doenças. O National Comorbity Study
estima que cerca de 60% da população enfrenta ao longo da vida pelo menos uma
vivência passível de causar trauma psicológico. Contudo, experiências
emocionalmente devastadoras podem disparar efeitos variáveis; isto é, a
caracterização de um evento como traumático não depende somente do episódio
estressor, mas, entre outros fatores, de como o indivíduo percebe e processa
essa situação. Tal heterogeneidade vem motivando neurocientistas e
profissionais da saúde ao estudo da fisiologia do trauma e dos diferenciais das
respostas resilientes – que correspondem à capacidade de atravessar eventos
estressores e voltar à qualidade satisfatória de vida. Atualmente,
compreende-se que traumas psicológicos podem causar grande impacto e
caracterizar o transtorno de stress pós-traumático (TEPT). Entre seus sintomas
estão recordações aflitivas, revivescência do trauma (por meio de lembranças,
pesadelos recorrentes e pensamentos intrusivos), esquiva, entorpecimento
emocional (isolamento, distanciamento afetivo) e hiperestimulação autonômica
(irritabilidade, insônia, hipervigilância). A etiologia é conhecida: o
transtorno ocorre sempre após um trauma psicológico. Portanto, existe a
possibilidade de prevenção. Porém, a desinformação e o subdiagnóstico do TEPT
podem implicar a proliferação de outras psicopatologias, tendo em vista que
esses pacientes apresentam risco aumentado para ocorrência de um segundo
transtorno (depressão, abuso de substâncias etc.). Casos de TEPT subclínicos
(que não atendem a todos os critérios internacionais para diagnóstico, mas
apresentam indícios do transtorno) são diagnosticados como TEPT parcial.
Estudos longitudinais sugerem que existe um número considerável de pessoas
nessas condições, que também requerem cuidados terapêuticos. A prevalência do
TEPT na população geral é de aproximadamente 9%, enquanto a manifestação
parcial do transtorno é calculada em 30%. Entretanto, pesquisadores têm dado
atenção limitada a esse grupo sensivelmente maior de pessoas. Interessamo-nos
em estudar possíveis impactos da terapia de exposição e reestruturação
cognitiva – reconhecida como o tratamento de primeira escolha para indivíduos
traumatizados – quanto à atenuação dos sintomas e respectivos correlatos
neurais nesse grupo de pessoas que com frequência procura atendimento
psicológico.
EXPRESSÃO FRAGMENTADA
Nosso
estudo evidencia que a expressão psicopatológica do trauma não é estática e as
memórias traumáticas podem se modificar em sua manifestação com o passar do
tempo. Retratamos pela neuroimagem os substratos neurais que refletiram essas
alterações influenciadas pela reestruturação cognitiva dos pacientes. O estudo
esclarece o sentido da relação pré-frontal com a amígdala na atenuação dos
sintomas de hiperestimulação por meio de psicoterapia e evidencia que o TEPT
parcial pode partilhar similaridades neurais com os mecanismos que atuam na
expressão sensorial fragmentada. Integrar traços mnêmicos sensoriais e
emocionais do trauma em narrativas terapêuticas estruturadas é um dos desafios
principais para as psicoterapias aplicadas às vítimas de traumas.
A
terapia de exposição e reestruturação cognitiva pode influenciar o
desenvolvimento de um padrão narrativo mais organizado, que se sobrepõe aos
substratos neurais da memória declarativa, além de melhorar os sintomas de
forma geral.
LUZES DAS NEUROCIÊNCIAS
Hoje,
as questões a respeito dos efeitos neurobiológicos da psicoterapia estão entre
as mais relevantes das neurociências. Métodos de neuroimagem começam a ser
utilizados para avaliar as reciprocidades neurais envolvidas na terapia de
indivíduos com fobias, transtornos obsessivo-compulsivo, depressivo maior e de
stress pós-traumático. Ainda que poucos estudos tenham sido publicados até
agora, os resultados revelam que as abordagens psicoterápicas aplicadas tiveram
potencial de modificar os circuitos neurais disfuncionais associados às
patologias estudadas. Ao favorecer o equilíbrio psicológico, a psicoterapia
influencia o processo de normalização neurofisiológica. A heterogeneidade das
respostas sintomatológicas daqueles que sofreram traumas psicológicos aponta
para a impossibilidade de existir um único circuito neural subjacente ao
transtorno de stress pós-traumático. Amplas análises dos estudos
neurofuncionais com paradigmas de provocação de sintomas em indivíduos com TEPT
mostram redução da atividade do hemisfério esquerdo, do córtex pré-frontal
médio (relacionado à classificação e categorização das experiências) e do
hipocampo (envolvido na capacidade de síntese, na aprendizagem e na memória),
assim como maior atividade da amígdala (área do cérebro relacionada à expressão
do medo). Alguns estudos, no entanto, mostraram resultados discrepantes, tais
como aumento de atividade no córtex pré-frontal. Uma possível explicação para
tais resultados é dada pelo estado dissociativo dos voluntários. Por isso, é
fundamental que os critérios de seleção dos participantes de estudos com
neuroimagem funcional considerem a homogeneidade da amostra quanto às respostas
de hiperestimulação ou dissociação. A despeito dessa variável, há importantes
evidências da responsividade diminuída do córtex pré-frontal durante resgates
de memórias traumáticas em indivíduos com TEPT e sintomas expressivos de
hiperestimulação. Optamos pela tomografia por emissão de fóton único (SPECT, na
sigla em inglês) como método de neuroimagem por utilizar marcadores de
atividade encefálica com duração de quatro a seis horas, o que permite seu uso
no ambiente psicoterápico, enquanto a memória traumática é recuperada. Nessas
condições, a dispersão e a ansiedade que costumam ser disparadas pelo ambiente
hospitalar são evitadas, e o paciente fica mais à vontade para deixar as
emoções aflorarem naturalmente, sem a necessidade de permanecer imóvel. Como
estratégia para evocação das memórias traumáticas – a recorrência delas é
sintoma central do TEPT –, um roteiro personalizado foi composto para cada
sujeito com um número idêntico de palavras-chaves. Utilizamos o radioisótopo
99mTc-ECD para investigar as possíveis alterações no fluxo sanguíneo encefálico
(FSE) dos participantes com TEPT parcial durante o resgate de suas memórias
traumáticas antes e depois da psicoterapia. Todos os participantes apresentaram
memórias traumáticas recorrentes (critério B), hipervigilância e resposta de
alerta (critério D) como sintomas prevalentes, mas não apresentaram sintomas do
critério C – entorpecimento/anestesiamento da responsividade geral –, não
preenchendo os critérios DSM-IV completos para TEPT. O grupo-alvo reunia 16
voluntários submetidos à psicoterapia uma vez por semana, durante dois meses,
num total de oito sessões. Para controle, estudamos 11 indivíduos com o mesmo
diagnóstico, porém não submetidos à psicoterapia. Os dois grupos fizeram duas
avaliações sintomatológicas e dois exames de neuroimagem intercalados por 60
dias, período em que os 16 participantes estiveram em psicoterapia e os 11
pacientes em lista de espera.
IMAGENS REVELADAS
Os
indivíduos submetidos à psicoterapia mostraram decréscimo da atividade da
amígdala e aumento da atividade do córtex pré-frontal, do hipocampo esquerdo e
dos lobos parietais (estes últimos relacionados à orientação espacial e
temporal dos eventos). Depois do tratamento houve diminuições dos índices
sintomatológicos do TEPT parcial, da ansiedade e do impacto do evento
traumático. Já as alterações dos sintomas do grupo controle não alcançaram
significância estatística ou mudanças do FSE nos dois exames intercalados por
60 dias. A hiperresponsividade da amígdala tem sido reportada durante a
apresentação de narrativas personalizadas do trauma, de ruídos de combate,
imagens relacionadas ao trauma e expressões faciais de medo. Todavia, não foi
esclarecido se a atividade da amígdala pode decair apenas com a continuidade de
tais apresentações. Alguns estudos indicam que não e sugerem que a simples
reapresentação dos estímulos ansiogênicos isoladamente pode provocar a
reconsolidação da memória traumática. Em convergência com os estudos que
revelaram a atividade da amígdala correlacionada positivamente com a severidade
dos sintomas do transtorno nosso estudo mostrou atenuação da atividade da
amígdala correlacionada à remissão de sintomas de TEPT parcial. A exposição
terapêutica dos pacientes aos estímulos estressores contribuiu para a reconstrução
cognitiva e o arrefecimento da resposta emocional, além de desfavorecer a
reconsolidação da memória traumática.
FEEDBACK INIBITÓRIO
Métodos
estatísticos e análises de conectividade foram usados em vários estudos para
testar alguns modelos patofisiológicos do TEPT, tal como a correlação entre a
atividade do córtex pré-frontal e da amígdala. A cronicidade dos indivíduos com
TEPT parece ser uma variável implicada no relacionamento inverso entre a
amígdala e o córtex pré-frontal. Nosso estudo vem colaborar com o
esclarecimento do sentido dessa relação, uma vez que a atividade do córtex
pré-frontal esteve correlacionada positivamente à melhor verbalização do evento
traumático e negativamente à atividade da amígdala. A ativação do córtex pré-frontal
esquerdo nos exames SPECT subsequentes à psicoterapia indicam, provavelmente,
um melhor processo de feedback inibitório relacionado à atividade da amígdala.
Um conjunto de estudos neurofuncionais mostrou a natureza não verbal da
recordação traumática em sujeitos com TEPT comparada a um padrão mais verbal da
recordação traumática em sujeitos sem o transtorno. O psicólogo Chris Brewin,
professor da University College de Londres, postulou a teoria da dupla
representação como uma diretriz preliminar para classificar dois tipos de
memórias traumáticas: (1) hipocampo dependente e (2) não-hipocampo dependente.
O primeiro formato – chamado de memória verbalmente acessível – fornece suporte
a recordações autobiográficas comuns que podem ser recuperadas de maneira
voluntária, editadas, havendo interação com o conhecimento autobiográfico
geral. O segundo modelo – denominado memória situacionalmente acessível – traz
suporte aos flashbacks que são característica marcante em pessoas
traumatizadas. Tais memórias são sensorialmente fragmentadas, sua narrativa é
pouco estruturada e não interagem com outros conhecimentos autobiográficos.
Todavia, evidências indicam que sistemas múltiplos de memória podem ser
ativados simultânea e paralelamente, também interagindo em várias ocasiões. A
interface entre os circuitos neurais é um aspecto fundamental à psicoterapia,
que pode favorecer a procura por uma narrativa e uma tradução integrativa da
memória traumática fragmentada em um sistema declarativo de memória.
Considerando que as regiões superiores são subjacentes às habilidades
cognitivas de classificação e categorização das experiências, enfatizamos a
importância de ativar memórias autobiográficas emocionais positivas (de
auto-eficácia e superação) anteriores ao trauma, para “abertura” do
processamento pré-frontal, tendo em vista que os sistemas mnemônicos múltiplos
fazem interface em várias ocasiões. Assim, fragmentos sensoriais relativos ao
trauma serão possivelmente integrados em outro sistema de memória, com
repercussões na redução da resposta emocional e sensorial. As conectividades
das regiões pré-frontais ao complexo límbico são sugestivas de seu papel na
aglutinação das informações sensoriais da memória, assim como no processo de
controle emocional/comportamental.
ORDEM EM FOCO
O
TEPT pode ser considerado uma desordem especialmente relacionada à memória, que
resiste à atualização dos aprendizados referentes ao trauma passado. O
hipocampo tem um papel crítico nos processos de aprendizagem e de categorização
das experiências conectadas e atualizadas com outras informações autobiográficas.
Os exames iniciais deste estudo, tanto do grupo submetido à psicoterapia como
do grupo-controle, foram similares: resgates das memórias traumáticas
pós-psicoterapia apresentaram ativação significativa do hipocampo esquerdo, e
as memórias correspondentes foram sensorialmente menos intensas e
cognitivamente mais organizadas. Os efeitos terapêuticos podem ser em boa parte
decorrentes de um processo ativo de aprendizado que estabelece uma nova
hierarquia de respostas num processo ativo de aprendizado que estabelece uma
nova hierarquia de respostas. Algumas funções integrativas parecem ser mais
eficientes com a ativação do hipocampo. A ativação parietal pós-psicoterapia
pode estar também envolvida no processamento mais preciso das informações
espaciais e temporais relacionadas ao evento traumático. As correlações entre
os escores dos sintomas de TEPT parcial e as contagens do FSE mostram que a
melhora nos sintomas dos participantes submetidos à psicoterapia esteve
relacionada a níveis mais elevados de atividade do córtex pré-frontal esquerdo,
assim como à atenuação da atividade da amígdala. Os escores narrativos mais
elevados para as memórias traumáticas pós-psicoterapia estiveram também
correlacionados com a atividade mais elevada do córtex pré-frontal esquerdo,
fortalecendo a evidência da participação desse circuito na construção de
narrativas resilientes. A recuperação da memória de eventos traumáticos foi
emocionalmente menos intensa com um padrão narrativo mais estruturado, de
maneira distinta do primeiro SPECT pré-psicoterapia. As correlações entre as
expressões neurofuncionais e os sintomas TEPT, porém, requerem ainda mais
pesquisas, e quanto mais dados forem coletados com qualidade, melhores serão
nossas intervenções como terapeutas em relação ao que podemos estimular nas
pessoas para normalizar suas atividades neuronais.
(*)
psicólogo clínico e doutor em neurociências pela Universidade de São Paulo
(USP).
PARA CONHECER MAIS
Achados
da neuroimagem em transtorno de stress pós-traumático e suas implicações
clínicas. J. F. P. Peres e A. G. Nasello, em Revista de Psiquiatria Clínica, nº
32, 2005.
Cerebral blood flow changes during retrieval of
traumatic memories before and after psychotherapy: a SPECT study. J. F. P. Peres et al, em
Psychological Medicine, nº 37, 2007.
¹ http://www.clinicajulioperes.com.br/
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