Dedico
esse texto a meu pai, que em grande parte está vivendo uma velhice bem vivida.
Ainda tem que ajeitar algumas coisas, mas que não ajeite muito rápido, para não
ir embora tão logo!
Na maturidade dos meus 53 anos, caminhando a
passos largos para a minha própria velhice, já observei muita gente próxima e
menos próxima envelhecer.
E penso poder fazer alguns relatos, tirar
algumas conclusões, formular algumas hipóteses.
É fato que a velhice é o caminho natural e
óbvio para a morte. Toda velhice termina em morte, embora nem toda morte venha
na velhice, colhendo pessoas de qualquer idade.
Sendo esse caminho natural para a dita cuja,
para a tão renegada, parece que seja muito natural também que a velhice guarde
algumas afinidades com a morte. A morte é um enfrentamento de si, é o momento
máximo em que estamos face a face com nós mesmos, sozinhos (porque o ato de
morrer é um ato solitário, mesmo se acontecer simultaneamente com outras
mortes). Tanto é verdade que muitos relatos de quase-morte e outros tantos
pós-morte, via mediúnica, falam daquele filme que se apresenta à nossa percepção,
com todos os atos e vivências da vida inteira.
Então, a morte é um momento de suprema
introspecção e a velhice já começa a fazer um trabalho nesse sentido. Já pelo
próprio fato de que o velho, por mais ativo que seja (e é saudável que
permaneça ativo, dentro dos limites que a idade impõe), sempre estará atuando
menos no mundo, do que alguém em pleno vigor da juventude ou da maturidade. Há
uma diminuição gradativa das forças vitais, um retirar-se lentamente do cenário
e por isso, a mente se volta para si própria. Lembranças recorrentes da
infância, fatos esquecidos da vida, saudades dos que se foram… enquanto estamos
na correria da sobrevivência, da vida dita produtiva, guardamos tudo isso no
subsolo da memória; mas na velhice, relaxam-se as amarras e vem à tona muita
coisa escondida de si ou que nem sabíamos que estava lá.
Há também um acúmulo de dores e alegrias que
constituem a bagagem emocional que se foi amontoando no decorrer da existência:
perdas, lutos, frustrações, mágoas, ingratidões; realizações, afetos,
conquistas, produções…
Isso é o que é a velhice, que se apresenta de
forma mais ou menos restritiva por doenças e incapacitações.
Mas como se vive essa velhice é algo pessoal
de cada um. Depende, em primeiro lugar, de como se viveu a vida e do que se faz
agora com o resto de vida que falta.
A ausência de remorsos graves é de início uma
boa coisa. Mas se estiverem presentes, pequenos ou grandes arrependimentos, é
hora de rever, refazer, pedir perdão e, sobretudo, perdoar-se, sabendo que foi
o que foi possível ser feito e melhores ações ficarão para a próxima vida. (A
certeza da reencarnação nesse ponto é altamente confortadora, afinal não
precisamos aprender tudo de uma só vez, haverá outras oportunidades!). Mas como
é bom durante a vida, a gente já ir resolvendo pendências, desculpando e pedindo
desculpas…
A serenidade ou a melancolia crônica e até a
depressão, levando à necessidade de antidepressivos, depende da capacidade de
resiliência e superação de todo esse arsenal de mágoas e tristezas que fazem
parte de todas as vidas… de como sabemos nos elevar ao alto da montanha e
enxergar tudo com uma perspectiva de eternidade, com leveza, com compaixão, com
perdão. De como soubermos transformar dores e frustrações em experiências de
vida, em ensinamentos, que sejamos capazes de partilhar com os que amamos, de
forma benevolente e sem imposição. De como tivermos aprendido (e se não
aprendemos, corramos para aprender enquanto há vida física) a amar com desapego
e compreensão.
O orgulho, no sentido positivo, que eu
chamaria aqui de autoestima, de nunca se entregar, de não querer se tornar
dependente e, portanto, fazer-se um esforço de se manter em pé é também um bom
antídoto para uma velhice muito degradada. Entretanto, cuidado, para que isso
não seja mais orgulho do que autoestima e a pessoa não acabe negando que a
velhice é sim um período de limitações e que quando não há remédio, temos que
aceitá-las com humildade e grandeza de alma, retirando disso o aprendizado
possível.
Há outras três questões que ajudam numa
velhice tranquila:
A
espiritualidade, essa capaz de nos fazer conectar com Deus, com a natureza, com
nossa essência divina… tudo o que é capaz de encher o coração de paz;
A
sensação de continuar sendo útil – e a utilidade pode ser uma simples presença,
uma referência, um afeto caloroso para filhos, netos, amigos e familiares (por
isso considero um velho num asilo, isolado dos que ama, uma verdadeira
tragédia);
A
música – existem pesquisas que mostram, inclusive com pessoas com Alzheimer, o
impacto produtivo dessa arte suprema nos neurônios, nas emoções, na qualidade
de vida da pessoa.
E o
Alzheimer nisso tudo?
Tenho para mim a hipótese, claro que algo que
precisaria de pesquisas que juntassem evidências às simples observações que fiz
no decorrer de contatos com pessoas que vivenciaram esse drama, de que o mal de
Alzheimer é uma fuga radical da realidade. Própria de pessoas que sempre
tiveram dificuldade de aceitar o mundo, as pessoas e as coisas como são.
Pessoas que gostam de frase do tipo: “o mundo está perdido”, “a juventude não
tem jeito”, “no meu tempo…”. Pessoas que se mostraram ao longo da vida um tanto
fracas diante das dificuldades e simplesmente não querem mais brincar.
Retiram-se para dentro de si.
É uma espécie de isolamento, um fechar-se na
concha, regredindo lentamente ao útero da mãe, onde havia fusão, segurança e
ausência de esforço e luta. Tanto que quando as pessoas de Alzheimer chegam ao
fim do processo, podem ficar em posição fetal.
É claro que há causas orgânicas para essa e
outras doenças que envolvem a mente, mas aqui estamos analisando as formatações
psíquicas que podem facilitar tais processos.
Velhice,
regressões e obsessões
Quem
lida com a velhice com a perspectiva da mediunidade pode acrescentar ainda
outras observações, como as que fiz, quando presenciei o envelhecimento de
pessoas próximas. Esse defrontar-se consigo, que a velhice proporciona, que
pode levar à melancolia, à depressão e nos casos mais graves à demência senil e
ao Alzheimer (como uma recusa de permanecer aqui e agora, enfrentando a dureza
dos fatos e até as emoções com que não se soube lidar), traz também possíveis
regressões ao passado espiritual (e não só ao passado dessa vida) e a presença
de inimigos e companheiros de outras vidas, que não estejam ainda em boas
condições espirituais. Por isso, como é bom também durante a vida toda,
fazermos terapias, processos de autoanálise, participar de desobsessões… Se
formos a fundo e conseguirmos resolver algumas coisas, evitamos um bocado de
aborrecimento no final da reta e, sobretudo, no Além!
Vou aqui relembrar dois fatos que presenciei
de maneira muito próxima e durante alguns anos. Como são pessoas que morreram
há muitos anos, não tem problema esse relato aqui.
Uma delas era meu avô. Pessoa muito querida
para mim e que no final da vida, começou a apresentar um fenômeno pouco comum:
enquanto dormia, falava uma língua que desconhecíamos e com a qual ele nunca
tinha tido contato em vida. Acordava cansado, como se tivesse caminhado
longamente. Gravamos essas falas e mandamos para o consulado sírio – lá eles
identificaram um antigo dialeto de beduínos do deserto e a narrativa era de uma
interminável caminhada de dois homens pelo deserto…
Ocorre que não ficou nisso o fenômeno.
Comunicou-se um espírito, que era um dos beduínos (o outro era meu avô), e que
ainda estava fixado nesse momento, em que eles provavelmente morreram de
inanição e sede. Meu avô nessa época estava impactado por diversas tristezas
(entre elas de ter se aposentado e da esposa, minha avó, estar entrando no
processo de progressão do Alzheimer). O Espírito foi atendido e encaminhado,
mas meu avô, até morrer, embora tenha guardado a lucidez, estranhamente assumiu
algumas coisas de uma personalidade muçulmana: por exemplo, dizia como queria
ser enterrado (e fomos pesquisar era algo próprio da cultura islâmica), dizia
que iria encontrar banquetes do lado de lá… só não falava das virgens! Durante
a vida, ele não tivera nenhum contato mais próximo com essa religião e pouco a
conhecia.
Outro caso foi uma grande amiga de minha mãe,
D. Judith, mulher caridosíssima, que se tornou espírita depois de uma
tuberculose na juventude e chegou a uma idade bem avançada. Antes de adoecer
dos pulmões, ainda muito moça, ele havia sido carmelita descalça e teve que
deixar o convento por causa da doença. Casou-se depois e fundou inclusive uma
instituição espírita. Pois essa senhora, que morava ao lado do colégio onde eu
estudava na adolescência, passou por uma cruel obsessão na velhice. E aqui
poderia usar a palavra obsessão de duas maneiras: a da psicologia, que entende
o comportamento obsessivo, como algo compulsivo, de que a pessoa não consegue
se libertar; e a do espiritismo, que entende como a influência de espíritos em
desequilíbrio sobre o encarnado.
Pois bem, durante os últimos anos de sua
vida, depois da morte do marido, de quem era bastante dependente
emocionalmente, D. Judith ouvia 24 horas por dia, cantos gregorianos – que,
segundo ela, “a deixavam louca” e via padres e freiras caminhando pela casa. Eu
era uma das pessoas que ia quase diariamente dar passes nela e sentia e via os
Espíritos ali presentes. Então havia aí uma dupla regressão a meu ver: uma
regressão à sua juventude (com certo temor por ter “deixado a igreja” e ela
passou a comungar com um padre que alternava comigo suas visitas!) e a
regressão ao seu passado espiritual, pois ela descrevia igrejas antigas e
representantes do clero de séculos anteriores. As duas regressões eram
obviamente estimuladas por espíritos credores e companheiros seus.
Com tudo isso, quero especular que, com a
fragilidade física que se instala no idoso, se acompanhada por funda tristeza,
por certas circunstâncias da própria velhice, e entrega a recordações amargas,
a culpas e apegos, companheiros do passado podem ser atraídos ou se fazem mais
notar (talvez estivessem ali antes, mas a vida ativa da pessoa os deixava
ocultos). Se o velho não consegue desenvolver defesas de elevação mental, de
perdão a si e aos outros, de serenidade existencial (se bem que esse é um
cultivo da vida inteira) e de pensamentos otimistas e sadios, a obsessão pode
se instalar irremediavelmente até a morte.
É verdade também que esse reencontro com o
passado e com antigos amigos e inimigos pode muito bem significar uma espécie
de acerto de contas consigo e com outros, para que quando a morte vier, ela se
faça mais leve, sem muitos adversários, esperando atrás da porta. De qualquer
modo, é preciso resolver a situação, ajudando os espíritos e, sobretudo,
ajudando o velho e o velho ajudando-se a si mesmo para transcender tudo,
fixar-se no bem e manter a paz!
Nenhum comentário:
Postar um comentário