Voltemos à palestra na SPLEB (*). Dias antes do compromisso
assumido com Millecco, ainda entretido coma ausência dos assuntos ambientais em
tantas casas espíritas, lembrei-me de que uma das razões para tudo isso estar
acontecendo poderia ser encontrada em algumas das frases que usamos para
expressar a nossa fé. Os espíritas — assim como os seguidores de outras
doutrinas ou religiões — afirmam suas crenças por meio de frases curtas que
emprestam sentido às suas convicções. Essas frases alimentam a nossa fé pelas ideias
que encerram. “O acaso não existe” é
uma delas. Toda vez que dizemos “o acaso não existe”, reafirmamos nossa confiança
em Deus, na “Inteligência Suprema, causa
primária de todas as coisas”,1 na Providência divina ou na ordem
estabelecida em meio ao caos.
Pois bem, há pelo menos duas frases repetidas com
frequência no Movimento Espírita que poderiam explicar esse distanciamento dos
assuntos ecológicos. Ao compartilhá-las aqui, não guardo nenhuma pretensão de
estar dizendo uma verdade absoluta. São apenas elementos de reflexão que podem
auxiliar a compreensão do problema.
Uma dessas frases é a seguinte: “A verdadeira vida é a vida espiritual”.
Concordamos inteiramente. Para o espírita, faz sentido acreditar que a
verdadeira vida é a vida espiritual. É forçoso admitir, porém, que muitos de
nós usamos esta frase para legitimar o desinteresse, a desatenção, o completo desapego
dos assuntos terrenos.
Esse é um assunto delicado, sobre o qual há certa
confusão. É preciso reconhecer que a vida espiritual não começa no exato
instante da desencarnação. Somos Espíritos encarnados, portanto, experimentamos
desde já a vida espiritual — embora com restrições, dadas as limitações impostas
pelo corpo físico — e precisamos nos lembrar sempre de que somos Espíritos
animando corpos, e não corpos animando Espíritos. Há que se reconhecer também que
o “horário nobre” de nossa existência é aqui e agora, já que as escolhas que
fizermos a cada instante definirão a qualidade de nossa vida espiritual. Uma
vez encarnados, é evidente que devemos ter alguma preocupação com a matéria
(nosso corpo, nosso planeta) enquanto aqui estivermos. Sem exagero, sem ilusões
— pois que nada disso nos pertence e daqui só levaremos o que “as traças e a
ferrugem não consomem e os ladrões não furam nem roubam”,3 como asseverou Jesus
—, mas reconhecendo que faz parte de nosso aprendizado espiritual nos
relacionarmos de forma saudável, inteligente e responsável com os assuntos da
matéria, consagrando parte do nosso tempo à manutenção do corpo e do planeta
que nos acolhem.
“Eu estou
aqui de passagem” é outra frase bastante repetida. Com ela, afirma-se
a impermanência, a transitoriedade de todas as coisas, o eterno devir
preconizado pelos filósofos gregos, a realidade física inexorável do universo
onde nada é, tudo está. Dependendo da forma como se diz, muitos daqueles que
repetem a frase “eu estou aqui de passagem” podem estar reforçando o estoque de
desapreço e desinteresse pelos assuntos do aqui e do agora. Por que vou me
preocupar com o AQUECIMENTO GLOBAL se em breve não estarei mais aqui? Por que
economizar água e energia se estarei desencarnado em alguns anos? Se deixamos
um legado material e espiritual no planeta onde poderemos eventualmente
reencarnar —, é evidente que, mesmo de passagem, devemos nos preocupar com os
nossos rastros.
Pela lei de causa e efeito, o eventual desperdício
ou uso irresponsável dos recursos naturais terá implicações em nosso processo
evolutivo. Portanto, não é porque a vida transitória que não precisamos prestar
atenção naquilo que fazemos — e também naquilo que deixamos de fazer, apenas
porque retornaremos em breve à pátria espiritual.
Cabe a nós identificar quais ações podemos fazer, e
de que jeito, para tornar este mundo um lugar melhor e mais justo. Portanto,
mesmo de passagem, há que se cuidar melhor do mundo onde estagiamos em nossa
jornada evolutiva.
¹ “O
Livro dos Espíritos”, questão 1
² Mateus,
6:20
(*) Sociedade Pró-livro espírita em Braille.
Fonte: Espiritismo e Ecologia, FEB editora.
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