Minha mãe e eu, 54 anos atrás |
Hoje, no dia do meu aniversário, uma data que
sempre me alegra, pois gosto de ter nascido, resolvi escrever algumas
considerações sobre esse tema tão controvertido: o aborto. Se estou comemorando
meu aniversário e vivendo uma vida plena de sentido, é porque minha mãe
permitiu que eu nascesse. Me recebeu e me acolheu, com a participação de meu
pai. Então, é bastante pertinente falar sobre esse tema, nesse dia. Meu dia de
entrada nessa vida.
Penso que esse debate sempre caminha por
lados opostos, com argumentos que não tocam o cerne da questão.
Primeiro, a criminalização ou
descriminalização do aborto não tem necessariamente a ver com ser contra ou a
favor do aborto. Pode-se ser a favor da descriminalização e contra o aborto. No
meu ponto de vista anarquista, obviamente acharia ridículo uma mulher ir para a
prisão porque praticou aborto. Mas eu também considero todo o sistema
estabelecido da justiça, com suas penalidades, prisões, humilhações, exclusões
sociais, algo absolutamente abominável porque atenta contra a dignidade humana,
exerce apenas uma função punitiva e nunca educativa. Não melhora ninguém. Por
isso, não me comprazo nem mesmo quando políticos, de que tenho ojeriza, vão
para a cadeia. Tenho pena, acho que não adianta, penso que se trata de vingança
da sociedade e não justiça. Acredito em qualquer circunstância, mesmo com
crimes graves, em justiça restaurativa, reparadora, que possa na medida do
possível aproximar o criminoso e a vítima, trabalhar-se pelo perdão, pela
reparação e pela recuperação do indivíduo. Coloco aqui um vídeo emocionante
sobre o efeito da misericórdia e do perdão sobre um criminoso – do qual muitos
diriam: “bandido bom é bandido morto.”
Posto isso, se não concordo com esse sistema
penal que está aí, não o desejo como solução de nenhum problema.
Mas isso não quer dizer que não considere o
aborto um grande problema e já direi por quê!
Segundo, todos os que defendem a
descriminalização do aborto usam do argumento de que o Estado, sendo laico (e é
laico no Brasil, pero no mucho, infelizmente), não pode legislar baseado em
princípios religiosos… Concordo inteiramente! Mas a coisa não é tão simples
assim.
Vivemos numa civilização, cujos valores foram
herdados do cristianismo. Por exemplo, na Grécia antiga, era normal atirar
crianças defeituosas dos penhascos. Ou seja, havia a prática legal de uma
eugenia à moda nazista. Em Roma, o pai (pater) tinha direito de vida e morte
sobre a mulher e os filhos. Que filosofia moral amenizou esses costumes? Que
religião valorizou a mulher e a criança (quando essa religião seguiu aquele que
elegeu para seu Mestre)? O cristianismo,
quando entendido dentro das mensagens deixadas por Jesus, veio para defender
justamente os excluídos, os sem voz: a criança, a mulher, os marginalizados
etc. Se por um lado, os cristãos viraram do avesso, e até hoje viram, os
ensinamentos de Jesus, por outro lado, esses valores humanistas foram a base do
avanço da legislação no Ocidente. Então, quando dizemos que o Estado deve ser
laico significa que ele deve proteger a liberdade religiosa e não se deixar
dominar por interesses de grupos religiosos e nem legislar com base em dogmas
específicos dessa ou daquela religião. Mas pode e deve se inspirar nos valores
humanos universais, que por acaso são os do cristianismo bem entendido. Entre
eles, um dos mais fortes está o respeito à vida.
Mesmo assim, não é preciso se recorrer a
nenhum valor cristão para se tomar uma posição anti-abortista. A questão é
saber se aquele feto que ali está é um sujeito de direitos ou não. Se é alguém
ou apenas um projeto de alguém, que pode ser abortado.
Podemos então conversar com a Ciência e não
estaremos invocando crenças particulares. Vou apenas citar um livro,
interessantíssimo, sobre uma pesquisa feita por uma psicanalista italiana,
Alessandra Piontelli, De Feto a Criança – um estudo observacional e
psicanalítico. Nessa pesquisa, essa médica acompanhou a gravidez de 11 mulheres
e depois seguiu os filhos delas até o quarto ano de vida, entre eles, alguns
gêmeos.
Pois bem, fica evidente, que há vida
inteligente e emocional no feto, porque há memórias e comportamentos nas
crianças, relacionados com a vida pré-natal. E há outras pesquisas nesse
sentido. Eu mesma tenho um trauma pré-natal, porque minha mãe estava no quinto
mês de gravidez, quando o avião em que estávamos quase caiu. Até hoje, aos 54
anos, tenho a sensação de queda quando subo ou desço uma ladeira muito íngreme,
evitando pegar ruas com declive muito acentuado.
Se há memória, trauma e até conhecimento de
fatos que ocorreram durante a estadia no ventre da mãe, de que depois a criança
lembra em forma de emoções, comportamentos etc, então há ali um sujeito
pensante, sensível.
Ainda falando de pesquisas científicas,
lembro aqui os 2500 casos de memórias espontâneas de crianças sobre suas vidas
passadas, estudadas por Ian Stevenson e sua equipe, na Universidade de
Virginia. Casos com fortes evidências, de lembranças precisas, com marcas de
nascença, que foram cuidadosamente analisados nessas investigações. Se a
memória precede a fecundação, então desde o início há vida inteligente e
perceptiva ali. Portanto, quando se pratica um aborto, já se está eliminando
uma vida consciente e sensível. Aliás, basta ver o feto se defendendo dos
alicates que o tiram aos pedaços durante o aborto.
Tudo isso posto, sim, o aborto é crime.
Mas o que vamos fazer com isso?
Dentro da perspectiva que citei acima, crimes
não devem ser punidos, mas perdoados e prevenidos. Nesse caso, não perdoados por
outros, mas por quem o cometeu (pois o mais difícil é perdoar-se a si mesmo) e
prevenidos pela sociedade, sobretudo pela educação e por condições sociais que
deem o apoio devido à mulher, para que ela não seja conduzida a um ato infeliz,
por falta de apoio, esclarecimentos e recursos, embora, legalizado ou não o
aborto, sempre ela terá a liberdade de praticá-lo.
Para prevenirmos o aborto, haveríamos de ter
várias atitudes:
a.
Uma eficaz educação sexual, com orientação
para o uso de contraceptivos;
b.
Campanhas educativas e esclarecedoras sobre a
vida intrauterina e as consequências psicológicas traumáticas para as mulheres
que praticam aborto;
c.
Educação e conscientização dos homens, para
que assumam suas responsabilidades e saibam que têm exatos 50% de dever de
receber e acolher o filho que fizeram;
d.
Valorização social da maternidade, com
licença maternidade mais extensa, com licença paternidade, com respeito às
mulheres que decidem ter filhos e não as considerando um estorvo no mercado de
trabalho;
e.
Centros de apoio para as mulheres que têm
gravidez indesejada, com ajuda psicológica, orientação médica e jurídica e
apoio espiritual (inter-religioso), para que a mulher possa ter conhecimento de
todas as variáveis que envolvem o aborto.
E para quem já fez aborto? Não cabe a ninguém
julgar, porque há inúmeras circunstâncias adversas que podem levar a mulher a
praticá-lo ou simplesmente o desconhecimento do quanto o feto ali presente é já
um sujeito de direitos e uma alma reencarnante (e isso não é apenas uma crença,
mas algo de que já temos muitas evidências, mas que precisa ser alguma hora
incorporado ao paradigma científico). Cabe-nos pois esclarecer e divulgar e não
julgar e condenar.
Meu querido Pestalozzi, o gênio desconhecido
no Brasil, cujas obras aqui nunca chegaram, escreveu uma obra-prima ainda no
final do século XVIII, considerada a primeira pesquisa de sociologia da
juventude do mundo: Legislação e Infanticídio. Naqueles tempos, havia em
Zurique, na Suíça rigidamente protestante, uma onda de mulheres que matavam
seus filhos ao nascer e depois eram condenadas à morte. Pestalozzi vai fazer um
estudo dos processos e das histórias dessas mulheres. E chega à conclusão de
que elas não eram culpadas. Chegavam do campo na cidade, pobres e sem educação
e eram logo seduzidas (naquela época, sim, havia essa “sedução”, pois não havia
a mínima educação sexual), por homens, que uma vez tido um breve relacionamento
com elas, as abandonavam a si mesmas, muitas delas já grávidas. Ora, a
sociedade católica sempre teve vias de escape para o “pecado”: a prostituição
ou o convento, a roda da Santa Casa de misericórdia para as crianças nascidas
em situação ilegítima… Na sociedade protestante, nada disso existia. Essas
mulheres não tinham escapatória. Era a miséria, o escárnio público, não havia
nenhum lugar para elas ou para seus filhos “bastardos”. Por isso, no desespero,
matavam seus próprios filhos, ao nascerem. Pestalozzi escancara o problema e
culpa a sociedade opressora, moralista e, sobretudo, os homens, por sua fuga à
responsabilidade.
Hoje, essa situação específica que Pestalozzi
descreve não existe mais na civilização ocidental, pelo avanço das
mentalidades, pela mudança de padrões culturais e comportamentais.
Assim também deverá ser com o aborto.
Cabe-nos fazer uma sociedade em que a vida
competitiva do mercado e os empregos massacrantes das corporações não sejam
mais importantes do que a maternidade e a paternidade. Cabe-nos promover um
mundo sem tantas diferenças sociais, em que todas as mulheres tenham acesso à
educação. Cabe-nos construir um mundo em que o ventre materno seja um reduto
sagrado de vida e a sociedade inteira se mobilize para preservar essas vidas
que se reiniciam.
E eu só posso escrever tudo isso, porque
nasci. Porque minha mãe me acolheu em seu ventre e me deu à luz. Toda vida é
uma promessa de transformação e evolução para o planeta. Deixemos as crianças
virem abençoar nossas vidas! E quando não as quisermos, há recursos para
evitá-las, sem que as arranquemos do ventre, quando já tiverem sido concebidas.
Parabéns Professora Dora,
ResponderExcluirAgradecidos somos por tê-la em nosso convívio.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirUau! Que lucidez. Texto maravilhoso.
ResponderExcluirMuito bem! Aplausos sinceros. Sem dúvida melhor que o texto são os sentimentos que lhe subjazem mas foram eles que o alimentaram e nos trouxeram esta ode à vida. Parabéns (pelo seu aniversário também ��)
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