Não é de hoje que as áreas de Saúde e
Educação procuram alianças e debatem entre si. Já Santo Agostinho, em torno do
ano 300, lembrando Platão (300 A.C.) refletia que “a ciência que cuida do corpo é chamada medicina. A que cuida da alma,
educação. Dado que o cuidado do corpo está intimamente ligado ao da alma, a
medicina é um aspecto da educação. Dado, por outro lado, que o cuidado da alma
exige certa perícia médica, à educação se chama, com razão, medicina da alma”.
Observe-se que o link usado por
Agostinho entre as duas, era o conceito de alma, que na tradição ocidental
(desde Sócrates e Platão), foi concebida como a sede da identidade humana.
Não por acaso, no diálogo proposto nesse
congresso e a proposição que observamos em vários espaços acadêmicos de uma Neuroeducação, as Neurociências aparecem
como o link entre as áreas e a concepção corrente é de que a identidade humana
é o cérebro, que apresenta seus determinismos genéticos e sua estrutura neural
plástica em constante interação com o meio. Quando falo em identidade, falo de
singularidade, de individualidade, de uma consciência que é capaz de pensar
sobre si mesma.
Contrapondo uma ideia à outra, estamos diante
de dois paradigmas, duas abordagens diferentes – uma dualista (que considera o
ser humano composto de corpo e alma) e a outra monista materialista (que
considera o ser humano apenas um processo bioquímico e a mente um subproduto do
cérebro). Pode-se chamar também essa concepção de organicista.
O primeiro problema se dá quando se considera
esse segundo modelo como resultante de uma “ciência baseada em evidências” e o
primeiro, como mera especulação filosófica, metafísica, e portanto, ultrapassada.
O discurso sólido, brilhante, lógico,
apresentado por todos os médicos (psiquiatras) no evento em foco, se agiganta
pela demonstração de evidências observadas no estudo do cérebro, inclusive com
o uso de neuroimagens, o que nos coloca muito mais próximos de compreender como
funcionam os processos cognitivos, emocionais… os desenvolvimentos, as
mutações, as disfunções dessa fantástica rede neural.
Tudo muito bonito e com grande dose de
objetividade e verdade. Conhecemos melhor como se dá a aprendizagem? Sim.
Sabemos mais sobre o processo de interação genética-meio ambiente? Sim. Podemos
montar estratégias de intervenções pedagógicas, sociais, familiares que atendam
melhor ao desenvolvimento saudável e eficaz do indivíduo? Sim. Isso tudo pode e
deve causar um impacto transformador na escola? Sem dúvida alguma.
Entretanto, Educação não se reduz a isso.
Educação envolve questões éticas, estéticas, humanas que não se deixam apalpar
por evidências científicas, estatísticas, materiais. Mas só podemos argumentar
que a Educação não é só um debruçar-se sobre o cérebro da criança e um saber
como moldá-lo, a partir de um outro paradigma de conhecimento e ação. Um
paradigma que pelo menos não considere o conhecimento como algo apenas baseado
em evidências, sem nenhuma articulação filosófica, ou ainda, que sabe que a
ciência não é neutra, nem desinteressada, nem absoluta, mas também sujeita à
crítica. Crítica não apenas feita por outros cientistas, mas também por
pensadores (cientistas ou não) que questionam os métodos, os pressupostos, os
caminhos de se fazer ciência.
Para explicar melhor o que estou dizendo,
quero pontuar algumas questões totalmente esquecidas (ou ignoradas) pelos
brilhantes médicos e entusiastas neurocientistas, mas infelizmente também esquecidas
(ou ignoradas) pelos educadores perplexos e seduzidos pelo discurso
cientificista. Esses educadores em geral não têm nenhum treinamento em ciência
baseada em evidência (coisa que não é quase nunca praticada nas áreas de
humanas – o que considero um problema), mas também não têm repertório
filosófico e cultural para fazer uma leitura crítica ao modelo proposto, pois
as faculdades de pedagogia e as especializações em psicopedagogia não oferecem
esses recursos. Os médicos, por sua vez, não conhecem filosofia, não recebem
formação em humanidades. Assim, não há um diálogo entre as áreas, mas uma
superposição da área de saúde sobre a área da educação. E qualquer crítica
vinda do lado da área de humanas é desqualificada pelos médicos como
“ideológica”. E é verdade que muitas críticas, feitas sem argumentações lógicas
e sem conhecimento de causa, são mesmo ideológicas. Mas isso não quer dizer que
a simples “tomada” da Educação pela Neurociências não apresente riscos e não
esteja sujeita a críticas.
Não é de hoje que a medicina avança na área
da educação, trazendo grandes contribuições, mas provocando igualmente alguns
riscos. No início do século XX, tivemos inúmeros médicos-educadores atuando,
pesquisando e propondo ações. Citemos Decroly, Claparède, Montessori, Korzcak,
Vygotski e o próprio Piaget, que não era médico, mas como biólogo, tinha uma
visão organicista semelhante à que as Neurociências propõem.
Mas o que se viu nas primeiras décadas do
século passado é o uso de critérios de quantificação de inteligência, de
testes, de medições cranianas… para classificações discriminatórias e até
práticas eugênicas, que não tiveram lugar apenas na Alemanha nazista, mas foram
exercitadas em países como o Brasil e os Estados Unidos.
Não que esses médicos-educadores acima
citados tivessem responsabilidade nisso – tendo aliás cada um deles, diferentes
perspectivas pedagógicas. Mas o entusiasmo organicista, o pressuposto de que
podemos modelar, prever, manejar de maneira “científica” a aprendizagem e a
formação das mentes humanas (à moda de Skinner) sempre podem provocar uma
diminuição da liberdade, da autonomia do sujeito e do que essa autonomia
representa de inventividade, imprevisibilidade e espontaneidade.
Então, é preciso que essa articulação entre
Neurociências e Educação seja muito bem amparada pela Ética, balizada por
reflexões críticas e uma Filosofia da Ciência, alerta para os riscos da
empreitada.
As Neurociências e os clássicos da Educação
O que pouca gente sabe, pelo menos no Brasil,
é que esses educadores citados acima – todos eles – tiveram influência dos
grandes clássicos da Educação, como Comenius, Rousseau e Pestalozzi –
totalmente ignorados entre nós. Piaget, por exemplo, comenta numa introdução a
uma obra de Comenius, editada pela Unesco, que o educador checo teria sido um
precursor de sua Psicologia genética.
Esses autores antigos não só intuíram,
anunciaram e abriram caminho para seus herdeiros dos séculos XIX e XX, como
também previram as descobertas atuais das Neurociências. Talvez possamos traçar
o seguinte roteiro histórico: os clássicos intuíram,
os médicos-educadores, os psicólogos do desenvolvimento infantil, os militantes
da escola-nova observaram e as
Neurociências fornecem evidências…
Prometo fazer um trabalho aprofundado sobre isso, mas lá vão algumas amostras
dessas intuições-observações-evidências:
• A aprendizagem se dá pela interação com o
meio e os sentidos exercem um papel fundamental, portanto a Educação tem que
ser sensorialmente estimulante;
• As emoções e a afetividade estão conectadas
à aprendizagem;
• Há estruturas inatas que permitem o
desenvolvimento cognitivo do ser humano
e essas estruturas se referem, entre outras, à aquisição da linguagem e
à possibilidade de cálculos (Pestalozzi dizia isso!);
• O indivíduo aprende por motivação (lembro
do conceito de “interesse” de Dewey);
• A
aprendizagem se dá na ação e é autônoma. (Educação ativa já era proposta por
Comenius no século XVII e por Rousseau no século XVIII.)
E, no entanto… eis a grande tristeza! Vieram
os clássicos da Educação, vieram os psicólogos do desenvolvimento, estão aí as
Neurociências… e a escola continua a
mesma: sem ação, sem autonomia, sem afetividade, sem emoção, sem motivação! A
escola da lousa, do professor falando, do aluno sentado e entediado, da classe
enfileirada e dos muros cinzentos! A educação bancária, como dizia Paulo Freire
– as cabeças dos alunos como depósitos. Uma escola em que nem a alma, nem o
cérebro se desenvolvem. Parece que há sempre abismos entre as belas teorias e
as paupérrimas práticas.
Em busca do ser integral
Bem – dirão – se os clássicos intuíram,
outros observaram e as Neurociências dão evidências, podemos muito bem só ficar
com essas últimas. As intuições passam a verdades reconhecidas e não precisamos
mais desses pioneiros geniais!
Aí é que os distintos estão muitíssimo
enganados (lembrando uma canção de Vinicius de Morais)! É que nesse processo
histórico, houve uma perda no decorrer dos tempos. Alguns conseguiram reter
algo a mais dos precursores, como é o caso de Maria Montessori (provavelmente
por ser mulher e há um componente mais sensível no conhecimento produzido por
mulheres – lembro que a Tanatologia e os Cuidados Paliativos nasceram na
Medicina, graças a duas mulheres, Elisabeth Kübler-Ross e Cicely Saunders). Mas
a maioria afunilou os conceitos, dentro do paradigma reducionista da ciência
materialista, herdeira do positivismo.
O que havia de essencial nos clássicos é que
eles mantinham uma visão integral do ser humano: não perdiam de vista, o
biológico (na medida dos conhecimentos da época, claro) o político, o social, o
afetivo, o cognitivo e… o espiritual!
O que os ilustres e brilhantes palestrantes
médicos do congresso em pauta parecem desprezar é que a ciência dos últimos dois
séculos representa um paradigma possível, mas não único de fazer ciência,
baseada em evidências. Não se pode ignorar a intensa crítica a que esta ciência
foi submetida na segunda metade do século XX, por autores como Kuhn, Lakatos e,
mais ainda, Foucault e Feyerabend. Estou longe de defender um relativismo
epistemológico que considera todo conhecimento humano como mero discurso. Em
minha tese de doutorado, fiz dura crítica ao pensamento anticientífico do
pós-modernismo.
Mas não se pode ignorar que a ciência sim,
participa de interesses, está submetida a determinados pressupostos iniciais,
escolhe alguns fenômenos, em vez de outros, para serem estudados, e fecha os
olhos quando se lhe apresentam fatos ou evidências que possam contrariar o
paradigma vigente.
Pois, muito bem… se há evidências que vêm
corroborar as intuições dos clássicos em relação aos processos da cognição e do
desenvolvimento infantil, há outras que vêm dar solidez à visão que eles
propunham de que o ser humano tem uma dimensão espiritual. Em relação ao nosso
conceito de criança (que não é apenas um cérebro
em desenvolvimento), temos, por exemplo, as exaustivas pesquisas de mais de
40 anos de Ian Stevenson, Erlendur Haraldson, Jim Tucker e outros, sobre
memórias espontâneas de vidas passadas, incluindo uma fartíssima coleta e
análise de dados, feitas por Stevenson, em relação a marcas de nascença,
conectadas com memórias de outras vidas (isso está publicado no livro Reincarnation and Biology). Essas
evidências não anulam em nada aquelas das Neurociências, mas acrescentam, além
do cérebro, uma alma que tem identidade, que já viveu antes em outro corpo, e
traz lembranças dessa vida – lembranças que podem ser demonstradas pela
pesquisa “baseada em evidências”, com todos os cuidados metodológicos. Aliás,
diga-se de passagem, Stevenson, como seus colegas acima, também era médico
psiquiatra. Por que ele via fenômenos, que outros não querem sequer tomar em
consideração? Porque os cientistas agem, levados por pressupostos filosóficos,
por influências culturais do seu meio, por inclinações subjetivas também… e não
apenas pela Ciência pura, como bem demonstrou Thomas Kuhn.
No dia em que tivermos todas essas
evidências, de todos os lados, articuladas por uma reflexão filosófica e por
uma elevada concepção ética, estaremos mais próximos de compreender o ser
humano e, portanto, a criança, de maneira mais integral.
¹ reflexões depois de um Congresso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário