As raízes da psicologia remontam à Grécia
Antiga, onde o filósofo Aristóteles (384-322a.C) escreveu o livro Acerca da
alma, citado muitas vezes como o primeiro manual sobre o tema. A proposta
original desta ciência era compreender o espírito – do latim spiritus, que significa sopro,
respiração. A limitação dos métodos do passado favoreceu o distanciamento entre
a psicologia em relação ao estudo do “não-palpável”, e a medicina, com seus
métodos para investigação do corpo (do latim corpus: parte essencial).
Assim, a decisão de Freud de confinar suas
investigações à arena mental ocorreu somente depois que ele desistiu de traduzir
as observações clínicas dos processos mentais em termos neurológicos,
convencido de que as ferramentas da época não permitiam tal realização.
As ideias sobre as relações recíprocas entre
as funções e a anatomia do cérebro eram apenas hipóteses em meados do século
XIX, mas começaram a se fortalecer com as pesquisas de Paul Broca (1824-1880),
John Hughlings Jackson (1835-1911) e Wider Penfield (1891-1976), que realizaram
trabalhos pioneiros sobre as funções cerebrais. Nessa época, a maioria das
informações sobre o cérebro humano vinha da observação de indivíduos que
apresentavam lesões ou patologias, com perda da função cerebral ou comportamentos
afetados.
Essa linha histórica acabou fortalecendo a
tendência de dividir os transtornos neurológicos, psiquiátricos ou psicológicos
em “patologias cerebrais” em contraposição às “doenças mentais”, o que resultou
em condutas terapêuticas dicotômicas e muitas vezes equivocadas. Se as doenças são
“mentais”, deve-se tratar a mente com psicoterapia; se são “cerebrais”, é
preciso usar terapias que modifiquem o cérebro fisicamente, como os
medicamentos.
Somente no final anos 70 as neurociências surgiram
com uma abordagem integrativa, refletindo a necessidade de convergir as
contribuições de diversas áreas da pesquisa clínica e básica, anteriormente
isoladas, para a compreensão
holística do funcionamento do sistema nervoso.
A multidisciplinaridade é um fator intrínseco e fundamental desta nova disciplina,
que reúne pesquisas que cobrem desde o espectro molecular até o cognitivo. A confluência das diversas linhas de
investigação promete a construção de um conhecimento mais assertivo que o do passado,
quando preponderava a desarticulação entre resultados independentes. As tecnologias
de neuroimageamento funcional, que talvez sejam o desenvolvimento recente mais importante
das neurociências, pretendem corrigir, se não erradicar, as classificações
estanques dos distúrbios neurológicos, psiquiátricos e psicológicos. Esta visão
neurocientífica integradora já produziu evidências no campo da psicoterapia.
Os dados emergentes dos estudos neurocientíficos
revelam que as funções Cognitivas, emocionais, perceptuais e comportamentais são
mediadas por circuitos cerebrais, e que a não-integridade destes pode estar associada
a alguns distúrbios mentais. A plasticidade cerebral, fenômeno diretamente
ligado
Ao aprendizado e à memória, pode modificar,
compensar e ajustar funções neurais fundamentais à capacidade adaptativa. Estudos recentes revelam que a natureza
subjetiva e a volição dos processos mentais, como pensamentos e crenças
auto-orientadas, influenciam significativamente a plasticidade neural em vários níveis.
Pesquisas neurofuncionais em indivíduos saudáveis
e em pacientes com algum transtorno demonstram, por exemplo, que a opinião e as
expectativas podem modular a atividade neurofisiológica e neuroquímica nas regiões
do cérebro associadas à percepção, à dor e a expressões emocionais.
PLACEBO
E DOPAMINA
Alguns estudos com pacientes com doença de
Parkinson, mostram que o efeito placebo, relacionado com a liberação do neurotransmissor
dopamina, numa região cerebral conhecida como estriado, resultou em melhora dos
sintomas. Em pessoas com depressão maior, o placebo produziu alterações metabólicas
nas regiões corticais e paralímbicas do cérebro, efeito relativamente
semelhante ao do antidepressivo fluoxetina (princípio ativo do Prozac), além de
atenuar a atividade neural associada à dor em áreas como o cíngulo anterior e o
tálamo.
Estudos mostram que a utilização consciente e
voluntária da contextualização dos estímulos emocionais altera a forma como o cérebro
processa as percepções. A atividade da
amígdala, associada ao processamento de imagens com significados negativos,
modificou-se de acordo com o objetivo de contextualização proposto, fosse ela
positiva, negativa ou neutra. Em outras palavras, a autorregulação emocional ativou
diferentes circuitos neurais conforme a volição dos participantes. Desejos, expectativas, crenças e aspirações
são considerados fatores potenciais de superação que se refletem na atividade
neural.
A psicoterapia, em suas diversas abordagens, se
ocupa justamente da subjetividade – ou das representações internas – e articula
percepções, memórias e sistemas de crenças dos indivíduos em processo
terapêutico. Estudos neurofuncionais mostram que os processos psicológicos do aprendizado
também podem ocasionar mudanças biológicas nos arranjos sinápticos e a
organização neurofisiológica. Algumas discussões
sobre o tratamento eficaz do transtorno de ansiedade por meio da psicoterapia sugerem
que novas percepções, e seus correspondentes traços de memória, formam-se de
forma plástica, substituindo conexões anteriores responsáveis pelas reações de
ansiedade.
LEMBRANÇAS
INDESEJADAS
Pessoas que vivenciaram eventos dolorosos frequentemente
reconstroem e recontextualizam o trauma durante a psicoterapia, reorganizam,
lembranças, percepções e experiências, atribuindo novos significados a elas e
que atenuado
assim o próprio sofrimento. O princípio subjacente
aos mecanismos de percepção envolve a extração de correlações estatísticas do mundo
para criação de modelos temporariamente úteis à interrelação adaptativa com o
meio. Os bancos de memórias, constituídos por meio de experiências objetivas e
subjetivas, são indispensáveis à capacidade humana de produzir crenças,
predições de futuro e comportamentos respectivos. As informações que geram memórias podem ser
provenientes do meio externo, interno ou da evocação de lembranças preexistentes. A maioria das lembranças obedece a processos
associativos.
O medo adquirido em situações traumáticas está
vinculado a vários transtornos, entre eles as fobias, a ansiedade generalizada,
a depressão e o transtorno de stress pós-traumático (TEPT). As psicoterapias destinadas a esses pacientes
buscam dissecar e trabalhar as associações estabelecidas e os decorrentes sistemas
de crenças.
A identificação de tais processos associativos
na psicoterapia nem sempre é imediata, especialmente quando há memórias complexas
que abrangem outras recordações e, portanto, outras redes associativas. Tais
representações e diálogos internos “encobertos”, que afetam o relacionamento
com os episódios dolorosos da vida, vêm sendo captadas por técnicas de
neuroimageamento, utilizada por uma nova geração de psicólogos clínicos
neurocientistas.
Na última década, o neuroimageamento tem
estimulado pesquisas desafiadoras sobre sistemas neurais envolvidos em funções cognitivas
complexas em geral. Flagrar os circuitos neurais mediadores de respostas
positivas, indiferentes e negativas (respondedores e não-respondedores) aos
processos terapêuticos plicados é um objetivo recorrente nos estudos recentes.
Estas pesquisas, no entanto, exigem uma cuidadosa ponderação metodológica. O
método utilizado, seu custo e disponibilidade, sua sensibilidade à detecção
anatômica funcional (resolução espacial e temporal), além da possibilidade de
controlar e reproduzir os ensaios são questões importantes nessa área de pesquisa.
Técnicas como a tomografia por emissão de fóton único (SPECT), a tomografia por
emissão de pósitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI) têm sido
utilizadas para avaliar as reciprocidades neurais envolvidas na psicoterapia de
indivíduos com transtorno obsessivo-compulsivo, depressão maior, fobia social,
fobia específica e TEPT. Uma recente revisão,
que será publicada no International Journal
of Psychology, revela que algumas abordagens psicoterápicas modificaram circuitos
neurais disfuncionais associados aos transtornos estudados. A psicoterapia
promoveu a normalização da função neurofisiológica, resultando no equilíbrio
psicológico do paciente. De fato, os resultados dos estudos sobre psicoterapia
por meio de neuroimagem funcional mostram que a recontextualização cognitiva pode
alterar sensivelmente a maneira como o cérebro processa estímulos emocionais e
reage a eles. Em outras palavras, as funções e os processos mentais mobilizados
nas diversas formas de psicoterapia exerceram influência significativa na atividade
do cérebro associada à atenuação dos sintomas.
REATIVANDO
SINTOMAS
Os resultados são animadores, mas a localização
de circuitos neurais terá grande valor somente quando houver dados pertinentes
sobre a validação ou a construção de teorias sobre a função cognitiva estudada. Só assim essas informações poderão gerar
hipóteses que norteiem intervenções mais assertivas em relação ao tratamento
dos vários transtornos. Entre os exemplos de boa interface entre neuroimagem
funcional e psicoterapia destacam-se os estudos realizados com indivíduos
traumatizados.
Componente central do TEPT, a memória
traumática tem sido o principal alvo dos estudos neurofuncionais.
Os sintomas são induzidos, em caráter experimental,
por roteiros dirigidos dos quais fazem parte imagens, sons, realidade
virtual, paradigmas cognitivos de ativação ou drogas que aumentam a ansiedade.
Os paradigmas de provocação de sintomas são usados para medir a atividade cerebral
em função dos estados mentais manifestados com mais frequência em certas
psicopatologias.
Dividem-se basicamente em três grupos, que
utilizam a visão e a audição como canais sensoriais para a deflagração dos sintomas: 1) apresentação de figuras ou filmes, 2) uso
de ruídos e sons e 3) utilização de roteiros gerais ou personalizados. A
maioria desses estudos intercala estímulos traumáticos e neutros em sequências
planejadas, porém aleatórias. Eu e minha equipe realizamos um estudo com SPECT
para investigar os substratos neurais relacionados à evocação das memórias
traumáticas de 16 indivíduos antes e depois da terapia por exposição e reestruturação
cognitiva.
Utilizamos roteiros personalizados para evocação
da memória traumática durante a realização de dois SPECTs cerebrais.
Observamos, após a psicoterapia, um aumento significativo
da atividade no córtex pré-frontal esquerdo, hipocampo esquerdo e parietais, em
comparação ao grupo-controle.
A melhora dos sintomas e da expressão narrativa
da memória pós-psicoterapia se correlacionou significativamente com o acréscimo
da atividade no córtex pré-frontal esquerdo e a atenuação da atividade da
amígdala. As conectividades entre regiões pré-frontais e complexo límbico são
sugestivas de seu papel mediador na integração de informações sensoriais da memória,
assim como no processo de controle emocional. Considerando que as regiões
superiores intermedeiam habilidades cognitivas de classificação e categorização
das experiências, discutimos possíveis estratégias para ativação do pré-frontal
ao longo da psicoterapia, tal como o resgate de memórias declarativas
(dependentes do hipocampo e do córtex pré-frontal) de autoeficácia, anteriores
ao trauma. Na era integradora em que vivemos, quanto maior o entendimento do significado
dos resultados obtidos pelas neurociências, mais aproveitáveis serão essas
contribuições para a psicoterapia.
Métodos multimodais, que integram a especificidade
de marcadores da atividade neural em PET e SPECT, a definição anatômica da
ressonância nuclear magnética e a resolução temporal da eletroencefalografia
quantitativa (qEEG), começam a ser utilizados, mas seus custos ainda são inviáveis
para a produção científica em larga escala.
Estudos futuros examinarão a especificidade
dos substratos funcionais, estruturais, neuroquímicos e moleculares para o
entendimento da fisiopatologia dos transtornos mentais. Contudo, como a expressão neurofisiológica
destes distúrbios pode não ser estática, as reciprocidades neurais podem se
alterar com o tempo. É certo que os avanços tecnológicos trarão
progressivamente a identificação mais precisa de circuitos neurais associados
aos transtornos estudados. Os achados atuais e futuros devem considerar as implicações
clínicas com a perspectiva de orientar as intervenções psicoterápicas para
tornar mais saudáveis as atividades neurais desses
pacientes.
Muito bom. Que Deus permita o progresso desses métodos, tendo em vista o alívio de quem sofre o impactante peso de um trauma.
ResponderExcluir