terça-feira, 4 de abril de 2017

ESPIRITISMO E PENSAMENTO COMPLEXO





Um crime que estarreceu a sociedade brasileira: pai mata o filho e em seguida se suicida, por não concordar com a adesão do filho aos movimentos sociais e por liderar as ocupações em universidades de Goiânia. O jovem cursava Matemática na Universidade Federal de Goiânia (UFG), e desejava “transformar” o mundo. O que se soube é que o pai queria que o filho pensasse como ele. Um promotor do Estado de São Paulo chegou a sentenciar que o pai matou apenas um vagabundo, mas que deveria ter evitado a tragédia cortando-lhe a mesada. Ainda em Goiás, síndico mata condômino por não se entenderem quanto ao posicionamento de um vaso de planta particular e estava em área comum do condomínio.
            Esses são exemplos daquilo que David Bohm (1917-1992), físico estadunidense de posterior cidadania brasileira e britânica, classificou como “doença do pensamento”, que é a incapacidade de se ir além do contexto imediato de espaço e tempo, extrapolar. É uma disfunção de diagnóstico fácil, cujos principais sistemas são: a) o imediatismo; b) a superficialidade; c) o simplismo.
 Na realidade, quando se age dessa forma se está refém ao pensamento linear-binário, ou seja, quando duas proposições são contrárias e só uma pode ser verdadeira: ou certo ou errado; ou bem ou mal; ou está conosco ou contra nós, enfim, a polarização “ou/ou”. Óbvio que dificilmente se abrirá mão da forma de pensar, o outro sempre está errado.
           
Pensamento linear, binário ou pensamento cartesiano
            Estudando-se os conflitos individuais e coletivos ao longo da trajetória evolutiva das civilizações, é fácil de se identificar muitos com a gênese no pensamento linear. Exemplos: inquisição, cruzada, nazismo, terrorismo, fascismo e guerras.
            O pensamento linear é primoroso para determinadas circunstâncias da “vida mecânica”, já é inadequado para a “vida não mecânica”, e, em algumas situações, leva a enganos de consequências muitas vezes desastrosas.
No século XVII, com o filósofo francês René Descartes (1595-1650), é que se assiste as grandes inovações da ciência e do pensamento, com o método cartesiano, que separa o sujeito do objeto. O Dualismo Cartesiano ou Dicotomia Corpo-Consciência é um conceito que define o homem como ser pensante, duplo, composto de uma substância pensante (mente) e uma substância extensa (corpo). A partir daí a ciência passa a cuidar da matéria e a religião do espírito.
Até certo ponto o pensamento linear foi determinante para o progresso da ciência. Atualmente, como modelo prevalente na cultura em geral tem se mostrado menos eficaz para lidar com duas das características mais destacadas dos tempos atuais: a instabilidade e a incerteza.
A partir dos avanços da ciência e da tecnologia, consolidou-se uma hegemonia baseadas no pensamento linear que fez elas se distanciarem da dimensão não mecânica da vida.
Ora, é sabido que a tecnociência é mais orientada pelos objetivos da economia e da finança do que pelos interesses do bem-estar social.
Para Edgar Morin, antropólogo, sociólogo e filósofo francês, as consequências nocivas do pensamento cartesiano só começam a se revelar no século XX, e considerando a visão mutiladora e unidimensional, paga-se bem caro nos fenômenos humanos: a mutilação corta na carne, verte no sangue, expande o sofrimento.

Polarização, exclusão e limitação
É necessário notar que o indivíduo condicionado pela lógica linear de pensar sempre se situa nos extremos. A partir daí, com a mente aprisionada, surgem posturas como o narcisismo, o individualismo e a insensibilidade social. Por outro lado, as dificuldades de comunicação entre indivíduos e as instituições – família, escola, empresa, governo, cultura, enfim – são em grande parte produzidas por esse método de pensar.
Quando se analisa o comportamento com condições individuais, estas levam ao egocentrismo, e quando se perde a noção de alteridade, levada ao extremo, pode-se considerar as condições comportamentais como posições sociopáticas. Esse condicionamento tende ainda a produzir sociedades disfuncionais e esquizoides.

Política e a lógica binária
Atribuída ao Imperador Júlio César (1100-44 a.C), o termo “Dividir para conquistar” (Divide et impera) é um clássico para enfraquecer e subjugar um povo. Essa estratégia também foi teorizada por Maquiavel em O Príncipe, que sugere que a melhor maneira de se obter energia é semear a intriga entre aqueles que governam.
Oposição e situação. Direita e esquerda. Liberalismo e socialismo. As ditaduras. As rupturas democráticas (golpes). O autoritarismo. A lógica binária, pelo que se percebe, é muito utilizada no cenário político. Exemplo recente é a divisão que se promoveu no Brasil, pejorativamente, entre “coxinhas” e “petralhas”, o que favoreceu facilmente a ruptura democrática de uma ainda jovem democracia brasileira. Dentro das nações, há várias divisões. É isso, o raciocínio binário torna o indivíduo maniqueísta e utilitarista.
A lógica binária produz o pensamento excludente, limitando ou, até mesmo, impedindo a capacidade de pensar do indivíduo, dificultando a reflexão, a percepção dos matizes, das nuanças, da pluralidade e da diversidade. O poder, sempre autoritário no cenário político, precisa do pensamento excludente para se manter.
É importante ressaltar que no cenário político predomina a pobreza de vocabulário, quando não, o vocabulário é rebuscado, o que aprofunda a incapacidade de refletir.
A lógica binária no cenário político é fecundo de incoerência, principal característica da demagogia. Como o pensamento binário é superficial, ele desliza sem termos a consciência do que estamos fazendo. Um exemplo também prático é o atual cenário político brasileiro e poucos atentam. Observa-se muitos favoráveis ao Estado mínimo, ponto central do liberalismo, e que o governo trabalha como proposta para a superação da crise que atinge as Nações. Ocorre, entretanto, que o correto é que isso demandaria melhoria nas condições sociais e econômicas dos indivíduos, o que não sugere, já que haverá uma contenção dos gastos na saúde, educação e assistência social. Liberalismo ou socialismo? A linearidade leva à exclusão. O correto é a circularidade – pensamento complexo ou integrado - entre o liberalismo e o socialismo que trariam efeitos positivos para a comunidade. A democracia não se sustenta pelo pensamento binário. Olhe-se o exemplo do Brasil.

Pensamento complexo
O pensamento complexo é circular e integrador. Quando se fala em circularidade, é bom lembrar que a evolução da consciência se dá em forma circular e espiralada. As pessoas dotadas de pensamento complexo são integradoras e não excludentes como as dotadas de pensamento linear.
Morin se refere ao pensamento complexo como “trabalhar para pensar bem”. Atesta, dentre outras, as seguintes vantagens do pensamento complexo:
a.         religa saberes separados e dispersos;
b.         desfaz o fechamento dos conhecimentos em disciplinas estanques;
c.         procura reunir as disciplinas que foram separadas (interdisciplinaridade, transdisciplinaridade);
d.         inclui um método para lidar com a complexidade;
e.         busca a circularidade entre a análise (a disjunção) e a síntese (a religação);
f.          reconhece que existe multiplicidade na unidade e vice-versa;
g.         ultrapassa o reducionismo e o “holismo” e reconhece a circularidade entre as partes e o todo;
h.        admite e procura lidar com a incerteza, a aleatoriedade, a imprevisibilidade e as contradições;
i.          concebe e aceita a dialógica, que complementa a lógica clássica...

Pensamento binário, a mídia e a Internet
Humberto Mariotti, médico e psicoterapeuta brasileiro, afirma que “num ambiente de grande alienação, a obviedade é indiretamente proporcional à percepção. Movimentar-se muito, sentir pouco e pensar menos ainda, eis as três dimensões fundamentais do nosso atual panem et circenses (pão e circo). (1)
Penso, logo existo! A frase do filósofo francês René Descartes parece assegurar que o ser humano exerce plenamente a capacidade de pensar. Ledo engano. É sempre bom lembrar que segundo se afirmam, o ser humano só explora aproximadamente 10% da capacidade do cérebro.
Pesquisas mais recentes apontam que a Internet, o veículo de comunicação mais veloz já existente, está moldando o cérebro das pessoas, fazendo com que a razão humana funcione com características do mundo digital. Isso resulta em perda de peculiaridades como empatia, solidariedade e respeito à opinião alheia. Resulta também que as pessoas estão cada vez mais se comportando como máquinas, lembrando o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Essas pesquisas comprovam a fragmentação do pensamento humano, e, por consequência, a fragmentação da sociedade, o que torna mais fácil a manipulação: tornar o indivíduo fiel a determinadas crenças e princípios.

Pensamento complexo – além do ego
Para se iniciar a cura do pensamento, é necessário que se aprenda a lidar com o ego, compreendendo que o ego é uma construção sociocultural e não um componente da mente. O Espírito Joanna de Ângelis, através do médium Divaldo P. Franco, na obra Autodescobrimento, afirma que o ego é produção do estado de consciência, portanto, transitório, impermanente.  Em outro momento ela afirma "o ego, predominando na natureza humana, utiliza-se de muitos mecanismos para ocultar os seus conflitos, expressando-se como diversos tipos de fuga da realidade, tais como a projeção, a compensação, o deslocamento, a introjeção, a racionalização, entre outros mais... Trata-se de uma exacerbação do superego, para manter a sua identidade e permanecer soberano, impedindo as manifestações superiores do Self." É através do ego que nos reconhecemos como personalidade. Mariotti afirma que o ego foi criado pelas sociedades humanas para o desempenho das tarefas da vida mecânica, com instância separada, pragmática e empírica. Entretanto, continua ele, o ego é insuficiente para lidar com as complexidades da totalidade do psiquismo. O egoísmo, considerado pelos Espíritos Reveladores na questão nº 913 de O Livro dos Espíritos como o vício radical do qual deriva todo o mal, é produto do pensamento linear-binário.
Aqui cabe o exemplo que a Regra Áurea Universal anunciada por Jesus – “Portanto, tudo o que vós querereis que os homens vos façam fazei-lhe também vós, porque esta é a Lei e os Profetas”, Mt, 7:12 (pensamento complexo), também pilar do Budismo, Islamismo, Taoísmo, Confucionismo, Bramanismo, Judaísmo. Conflitos intra e inter-religiosos (pensamento linear-binário).
           
Espiritismo e pensamento complexo
Aqueles que se propõem a estudar O Livro dos Espíritos, por diversas vezes, experimentam sensações variadas nas interpretações das suas questões, sempre de forma diferenciada; e mais aprofundada. Essas experiências decorrem da transdisciplinaridade (1) do ensino da Doutrina dos Espíritos. Transdisciplinaridade é a característica principal do pensamento complexo.
Allan Kardec deixa claro o caráter transdisciplinar da doutrina e a exigência do pensamento complexo de seus adeptos, quando na obra O Que é o Espiritismo ele atesta: “O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia, da Metafísica, da Psicologia e da Moral; é um campo imenso que não pode ser percorrido em algumas horas.”
O filósofo, jornalista, escritor e professor Herculano Pires (1914-1979), em sua obra Introdução à Filosofia Espírita, cita a definição de Gonzales. Soriano (1837-1885) - considerado o “Apóstolo do Espiritismo a Espanha” -  afirma que o Espiritismo é "a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicada à investigação da verdade." Antes ele havia dito que a Doutrina Espírita “é a Filosofia.” (grifos nossos).
Allan Kardec consciente de que a Doutrina Espírita traz fundamentos essenciais para a Civilização Planetária, estimula aos adeptos da nova Doutrina nova forma de pensar e novos valores para que deles melhor entenda a condição humana - favorecendo novas práticas entre os indivíduos - hasteia a bandeira cuja divisa é “Fora da Caridade não há Salvação”.  Através dessa insigna Kardec contextua de forma brilhante o pensamento complexo como principal característica do Espiritismo. O pensamento complexo é solidário e fraterno.
O Espiritismo reúne os três princípios que favorecem a pensar a complexidade. Tendo em sua apresentação e forma o diálogo e a lógica, estruturados na maiêutica socrática, o Espiritismo como filosofia é dialógica e explica a realidade através das suas contradições. Exemplo disso é o aspecto tríplice que harmoniza a ciência, a filosofia e a religião. O princípio dialógico é o primeiro que obriga ao pensamento complexo.
O perispírito é um dos mais importantes produtos do fluido cósmico universal (FCU) – plasma divino, hausto do criador – tem como funções básicas servir de instrumento à alma, serve à sua identificação e individualização, e, por fim, a função organizadora que aparece notavelmente no processo da reencarnação, estruturando rigorosamente um novo corpo físico, guardando características no corpo espiritual, modelo por excelência. O princípio da recursão organizacional é o segundo princípio que instrui ao pensamento complexo.
“Sois deuses” (Jo, 10:34) e “o reino de Deus está dentro de vós" (Lc, 17:21). Vê-se, pois, que o homem é o único da criação que percebe o Criador dentro de si mesmo. Na medida que amplia a sua consciência onde se encontra as Leis Divinas, ele se aproxima mais do Criador. O princípio hologramático é o terceiro princípio que determina o pensar complexo.
A evolução do espírito não se processa de forma linear e única, mas em linhas assimétricas e paralelas, em forma de círculos. Portanto, o pensamento linear-binário jamais promoverá mudanças no gênero humano. Isso somente ocorrerá através do pensamento complexo.
É óbvio que a transdisciplinaridade da Doutrina Espírita, inserta no mundo, é natural que tenha influência direta na cultura. A cultura tem na sua raiz latina, contorno, dar voltas juntos, (circularidade) entrelaçamento no falar e do emocionar na vivência humana. A cultura espírita, portanto, promoverá as mudanças que a cultura materialista necessita.
As instituições espíritas, ao assumirem a condição de Educandário do Espírito, necessitam como premissa de seus projetos pedagógicos o alcance da visão crítica do que significa o pensamento complexo. É impossível consolidar a cultura espírita, de que o mundo necessita priorizando apenas o aspecto religioso ou fenomênico.
Esse é o grande desafio do pensamento espírita.


Referências
BOHM, David. O pensamento como um sistema. São Paulo: Masdras, 1994.
KARDEC, Allan. O que é Espiritismo. LAKE: São Paulo, 2001.
--------------. O livro dos espíritos. --------------, 2000.
MARIOTTI, Humberto. Pensamento complexo. São Paulo: Editora Atlas, 2007.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Salin, 2005.
PIRES, J. Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.

(1)       A Política do Pão e Circo (panem et circenses, no original em Latim) como ficou conhecida, era o modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio. Esta frase tem origem na Sátira X do humorista e poeta romano Juvenal (vivo por volta do ano 100 d.C.) e, no seu contexto original, criticava a falta de informação do povo romano, que não tinha qualquer interesse em assuntos políticos, e só se preocupava com o alimento e o divertimento.
(2)        Princípio teórico que busca uma intercomunicação entre as disciplinas, tratando efetivamente de um tema comum (transversal). Ou seja, na transdisciplinaridade não existem fronteiras entre as disciplinas.
A ideia de transdisciplinaridade surgiu para superar o conceito de disciplina, que configura-se pela departamentalização do saber em diversas matérias. Ou seja, considera que as práticas educativas foram centradas num paradigma em que cada disciplina é abordada de modo fragmentado e isolada das demais. Isto resultaria também na fragmentação das mentalidades, das consciências e das posturas que perdem assim a compreensão do ser, da vida, da cultura, em suas relações e inter-relações

4 comentários:

  1. Francisco Castro de Sousa6 de abril de 2017 às 19:10

    Jorge, li o texto duas vezes. É um trabalho de fôlego que contempla uma pesquisa bastante ampla. Penso que o título deveria ser: Pensamento Complexo e Espiritismo! Também imagino que, pela pesquisa que fizestes para escrever esse texto reduz bastante o público leitor, que normalmente busca a Doutrina Espírita! Nada do que digo nessa minha pequena apreciação diminui o texto, muito pelo contrário! parabéns pela abordagem!

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  2. Olá, amigo e parceiro do Canteiro de Ideias! Muito me apraz o seu comentário. Tenho consciência no que diz respeito à apreciação dos leitores. Como o espaço é de ideias, as minhas estarão sempre postas e certamente tocarão corações espíritas. Como diz Kardec, não nos preocupemos com a quantidade, mas com a qualidade. E tendo você como leitor, o artigo já valeu a pena. Fraternal abraço!

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  3. Os pensamentos do início deste século deixam muitos de nós estarrecidos. Há manifestações e atitudes pessoais totalmente desprovidas de lógica e de bom senso. Desde o fechamento de vias públicas até o vandalismo contra os patrimônios público e privado nos mostram que estamos nos "Tempos do Fim.".

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