Para os que compreendem a posição epistêmica do
espiritismo em face dessa ciência de um estado de consciência — oficializada
por consensos que não deixam de constituir outros tantos discursos de poder —,
as negativas de cientistas acerca dos fatos espíritas pouco representam. Kardec
foi claro: le spiritisme n’est pas du
ressort de la science: o espiritismo não é da alçada da ciência.[i] Depois
da morte do mestre, espíritas impacientaram-se de ansiedade por converter meio
mundo e, para tanto, não hesitaram em conferir a hipóteses fugidias a
precipitada condição de verdades doutrinárias. Resultado: todo um cortejo de
pseudossabedorias a serviço de um movimento espírita desatento às lições de
Kardec, a quem alguns preferiram mal criticar em vez de assimilar em sua
especialidade. Quantos ainda ressaltam a adoção da geração espontânea como erro
exarado na doutrina? Kardec esclareceu que esse tema pertencia aos
especialistas, não sendo da competência espírita. A opinião de Kardec só foi
isto: sua opinião, bem como, em espiritismo, também o é a opinião dos
espíritos, mormente se isenta de aferição do ensino geral e de lógica mais
rigorosa.[ii] Assim, com todos os pretendidos erros de Kardec e do espiritismo
por ele codificado: apresentam-se aos que não compreendem seus contornos
epistemológicos, ou a quem não interessa compreendê-los, por trazerem à tona
pensador válido de fio praticamente a pavio e, por isso, inconveniente a tantas
rupturas subsistêmicas que emergem de jogos de poder e controle, dentro e fora
da institucionalidade espírita no Brasil e no mundo.
Muito se apela ao livre-pensamento. E num
contexto em que o catolicismo era repressor absoluto, com poder de polícia, ele
podia ser aliado perfeito do espiritismo; nas suas possibilidades, facultava,
senão demolir, pelo menos questionar dogmas, levando à provável, ainda que
incerta opção pela fé raciocinada proposta por Kardec. O ignorado é que o
livre-pensamento faculta também a escolha ateísta, agnóstica, niilista. Fato
que a Igreja católica perdeu muito de sua força e esse livre-pensamento tem
conduzido, com menos embaraços, a essas opções. Kardec não deixa de ressaltá-lo
ao dizer que os livres-pensadores constituem nova denominação para os que não
se encontram sujeitos à opinião de ninguém quanto a assuntos de religião e
espiritualidade. Vendo nisso mais espírito de sistema que livre-pensamento,
observa o mestre que a qualificação de livre-pensador pode ser atribuída aos
adeptos de qualquer nuance do espiritualismo racional, bem como da
incredulidade absoluta; alguém, pois, não se conduzindo pela fé cega, só por
isso seria livre-pensador; e o espírita, igualmente. Todavia, a despeito desses
livres-pensadores menos prevenidos, haveria os radicais do livre-pensamento,
para quem este não implica crer apenas no que é visto, sim em nada crer, nem
mesmo em Deus. Para esses, a espiritualidade seria entrave e não a quereriam,
pelo que se apropriariam da emancipação intelectual do livre-pensamento para
evitarem o que os adjetivos materialista e ateu abrigam de repulsivo.[iii] E
desvirtuariam, assim, o sentido da emancipação intelectual do livre-pensamento
— tolerância por todas as opiniões —, por vezes atirando pedras aos que como
eles não pensam.
Para Kardec, mister se faz, pois, distinção
entre os que se dizem livres-pensadores, igualmente se verifica entre os que se
nomeiam filósofos.[iv] O livre-pensamento deve ser entendido, segundo ele, como
o livre uso da faculdade de pensar e, assim, de fato, um pensamento livre, quer
político, filosófico ou religioso.
Desse modo, todas as opiniões e crenças podem ter seus livres-pensadores. O
livre-pensamento consistiria na liberdade absoluta da escolha das crenças;
significaria livre-exame, liberdade de consciência, fé raciocinada. Esse é o
entendimento de Kardec.[v] No entanto, salvo engano, parece hoje prevalente a
opinião ali combatida pelo mestre, a dos radicais do livre-pensamento: toda
limitação, sobretudo religiosa, forçosamente implica ausência de liberdade ao
pensar.
No ínterim, pergunto-me se podem, os espíritas,
estar entre esses radicais livres-pensadores e tornar-se insubmissos aos
princípios a que aderiram, supõe-se, por convicção. Admite-se, lato sensu, que os não haja
kardecistas.[vi] E além? Quero dizer: pode haver espíritas ateus, por exemplo?
Mesmo sem falar de neutralidade, para questionar o que lhes pareça merecedor de
crítica, livres-pensadores têm de especular a certa equidistância.
Compreende-se. Os radicais do livre-pensamento, todavia, exorbitam. É-lhes
necessário descompromisso com toda escola, especialmente se afinada a ideias
religiosas, caso confesso do espiritismo kardecista: “Intimamente vinculada às
ideias religiosas, esclarecendo-nos sobre nossa natureza, a doutrina espírita mostra-nos a
felicidade na prática das virtudes evangélicas”.[vii] O livre-pensamento, nesse
viés, pois, não veria hoje, na fé, senão prévio limite consigo incompatível.
Essa, a razão pela qual talvez se devesse mesmo distinguir a liberdade de
pensamento daquilo que é a condição de livre-pensador de ofício, digamos; esta,
salvo melhor juízo, clama mais e mais por ausência de vínculo formal.
Como quer que seja, antes de uma ruptura com
Kardec em nome do livre-pensamento, convém avaliar se o que nos falta não se
define melhor só como liberdade de pensamento; apenas aquela margem para
exercícios especulativos em que não há rompimento com princípios. O espiritismo
stricto sensu, que é, sim, o
kardecismo, não fixa como princípio senão o que se achar demonstrado ou
ressaltar logicamente da observação; comunica-se com todos os ramos do saber e
da cultura, aos quais oferece suas descobertas e dos quais assimila, em caso de
máxima pertinência, o que lhe seja premente. Assim, o ideário e a práxis do
modal espírita kardecista nunca seriam ultrapassados; se lhes fossem
demonstrados erros, modificar-se-iam em favor de toda verdade.[viii] Erasto
pede-nos que falemos ao coração, o caminho das conversões sérias. E se
convenientes forem julgados fenômenos materiais para convencimento dalguns, que
possam ocorrer de modo a evitar falsas interpretações, porquanto, a não ser
assim, servem de argumento para os incrédulos, em vez de convencê-los.[ix]
Se é verdade que o spiritisme de Kardec não se galardoou científico, igualmente o é
que aqueles que o acusaram de credulidade e tentaram reescrevê-lo também não
alcançaram essa cidadania. Por que eu, kardecista, devo, então, trocar um por
outros? Se eventual aprovo consensual acadêmico houver, das hipóteses
andarilhas que disputam a institucionalidade espírita, o aceitarei de boa
mente. Por ora, contudo, são meras nomenclaturas do que não vai além de
pseudociência, aposto hoje, aliás, do próprio espiritismo. O erro dalguns é
quererem tornar o spiritisme uma
nova metapsíquica, parapsicologia, psicotrônica, ou coisa o que o valha, com a
mesma limitação paradigmática do academicismo, que Kardec se encarregou logo de
superar, oportunizando à humanidade a criativa pavimentação do caminho inicial,
mas resoluto, daquela que chamou ciência do infinito.[x] O que desgasta
radicais do livre-pensamento perante certos espíritas é a pretensão de provar
que são necessariamente mais clarividentes por não pertencerem a nenhuma
escola. Não o suficiente, entretanto, para atinarem que há espíritas oriundos
das escolas que lançam os mesmos questionamentos e desconstruções de que se
ufanam esses radicais. Sim, há espíritas ex-agnósticos, ex-ateus, etc., que
preferiram algo a lhes conferir, agora, um sentido, em vez de retirá-lo. É
escolha. E por que não?
De mais a mais, se é fato que o positivismo
teve grave influência nas formulações do kardecismo, também o é que estas não
se limitaram àquele primeiro. Basta dizer que, desde 1858, Kardec proclamava o
advento do período psicológico, para além do científico.[xi] E já em 1859,
Kardec alegava que o sistema de Comte não conhecia todas as leis naturais para
fixar-lhes limite irrecorrível. O espiritismo, ao contrário, demonstrava a
possibilidade da alma em favor da ampliação dos domínios da ciência, não dos do
sobrenatural, o que, para Kardec, tornava o próprio espiritismo “uma
ciência”.[xii] Não se trata, pois, de subproduto comteano. A doutrina espírita
possui uma sofisticação própria. Os que atingem Kardec com a pecha genérica de
ultrapassado, infenso ao novo, e querem com ele romper em nome do
livre-pensamento, não devem fazê-lo antes de saber que, segundo o mestre, o
espiritismo não pretende haver dito a última palavra sobre nada, nem mesmo
acerca do que é do seu próprio jaez; não aparece, assim, como dose impoluta do
possível e aguarda, hígido, o futuro, ainda que o infelicite nalguma
medida.[xiii] Mas o que é o conhecimento? Eis uma questão bastante litigiosa.
[i] O Livro dos Espíritos. Introdução: VII.
[ii] Revista Espírita. Jul/1868: A geração
espontânea e A Gênese.
[iii] “De fato, que é o agnosticismo, senão um
materialismo envergonhado?” (F. Engels. Do Socialismo Utópico ao Socialismo
Científico, 1880.)
[iv] Revista Espírita. Jan/1867: Olhar
retrospectivo sobre o movimento espírita.
[v] Revista Espírita. Fev/1867:
Livre-Pensamento e livre-consciência.
[vi] Cf. cap. 24 deste trabalho: Spiritism e
spiritisme.
[vii] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Mar/1858:
Sr. Home (Segundo artigo).
[viii] A Gênese, I: 55.
[ix] O Livro dos Médiuns, 98.
[x] O Livro dos Espíritos. Introdução: XIII.
[xi] Revista Espírita. Abr/1858.
[xii] O Que É o Espiritismo? Cap. 1: O
maravilhoso e o sobrenatural.
[xiii] A Gênese, XIII: 8.
Muito oportuno para que os espíritas reflitam sobre o episódio pós posicionamento da professora Dora Incontri. Estou escrevendo algo dentro das mesmas coordenadas. Aguardem!
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