Dois extremos se mostram cristalizados ainda
hoje, em posturas que vêm dos séculos XVIII e XIX: uma espiritualidade
conservadora e uma esquerda materialista.
Para falarmos um pouco sobre o tema, primeiro
definamos o que é espiritualidade e o que é esquerda.
Espiritualidade é o denominador comum das
religiões, mas também existe espiritualidade sem religião. É a conexão do ser
humano com a dimensão além-física, é a busca do divino em si, no outro, no
universo. Está sempre ligada a princípios éticos, que incluem fraternidade,
amor, compaixão, benevolência. Há infinitas formas de espiritualidade, dentro e
fora das religiões tradicionais ou em correntes atuais.
Esquerda é uma posição crítica em relação ao
sistema vigente. É estar sobretudo insatisfeito com as coisas como são
organizadas na sociedade e assumir uma posição de transformar o mundo. É se
sentir indignado com a injustiça e querer consertá-la de forma política e
social. Há inúmeras maneiras de ser esquerda: marxista, anarquista, socialista
utópico, social democrata, revolucionário armado ou praticante da não-violência… Mas, no mundo atual, estar à esquerda é
reconhecer o quanto o capitalismo promove a exploração do ser humano, a
centralização do poder econômico e político nas mãos de poucos e o quanto de
injustiça, exclusão e violência há nesse sistema. Os caminhos pensados para
mudar esse quadro são muitos – desde a luta armada (hoje em franca decadência)
até a resistência pacífica e a educação (que é o nosso caminho aqui na
Universidade Livre Pampédia).
Durante quase 200 anos, a espiritualidade foi
combatida por setores da esquerda, marxista e anarquista, por exemplo, pelo
caráter de conluio indecente e abusivo que as religiões institucionalizadas
fizeram com os donos do poder, pelo discurso conformista que essas religiões
criaram, para manter o povo submisso, conformado com a exploração. Na expressão
do velho Marx, “religião é o ópio do povo”.
E as religiões combateram posições de esquerda,
por causa do uso da violência, por ferirem também interesses de grupos que
estão no poder, mas igualmente por ideias que destoam às vezes de alguns
princípios que são fortes para os religiosos – cito aqui um caso bem atual e
específico, o aborto.
Entretanto, atenção! A verdadeira
espiritualidade é sempre à esquerda. Só para citar a tradição judaico-cristã,
na qual estamos majoritariamente inseridos: já no velho Testamento, há
profetas, como Amós, que criticam a exploração dos ricos. Jesus alertou que era
muito difícil – quase impossível – um rico entrar no Reino dos Céus. Expulsou
os vendilhões do templo, deixando registrada a sua indignação em relação à
exploração em nome da religião, algo tão comum até hoje. Mas disse também que
os mansos, os pacíficos, os pobres, que herdarão a Terra.
Por sermos de esquerda, porém, não temos a
obrigatoriedade de aderir a toda a sua agenda. E se temos algum princípio de
nossas tradições espirituais de que não podemos abrir mão, isso não significa
termos que negar em bloco as propostas que a esquerda trabalha de transformar a
realidade.
Por outro lado, a esquerda – como posição de
transformar o mundo – não prescinde da espiritualidade, pois como manter a
esperança, continuar lutando, confiar que um dia o amor, a justiça e a
fraternidade reinarão sobre a terra, se tivermos apenas um pequeno minuto de
tempo, se não há uma garantia natural, intrínseca em nós, de vitória do bem?
Lutar por um futuro melhor, tendo certeza de
que esse futuro se estende para a eternidade, nos dá mais serenidade, lucidez e
discernimento. Porque trata-se de mudar instituições, modos de ação no mundo,
mas querendo contagiar e “salvar” a todos, incluindo os que exploram.
Exemplos de pessoas e movimentos que praticaram
ou praticam uma esquerda não conservadora, mas militante para mudar a
sociedade? Há inúmeros: um Gandhi, um Martin Luther King, um Tolstoi
(anarquista-cristão, que aliás, inspirou Gandhi e Gandhi inspirou Luther); a
teologia da libertação, com Leonardo Boff e o Frei Beto, entre outros tantos;
no Espiritismo, houve um Herculano Pires e um Humberto Mariotti; há monges
budistas e pacifistas contemporâneos, engajados em movimentos sociais. E temos
um Papa Francisco, um grandíssimo exemplo de uma pessoa à esquerda, líder
espiritual da Igreja Católica (ela própria comprometida há milênios com o
poder, mas em seu seio já nasceram santos e mártires que se doaram aos pobres e
oprimidos). Francisco deixou de lado posturas arraigadas na sua tradição, como
exclusão de divorciados, mães solteiras e homossexuais, para aplicar
simplesmente a mensagem de Jesus: “não julgueis para não serdes julgados”,
“amai ao próximo como a si mesmo”. É um crítico lúcido do capitalismo, também
se ancorando nos fundamentos do cristianismo (e de todas as tradições
espirituais, porque isso todas têm em comum!): de que é mais importante ser do
que ter e de que esse ter desmedido está nos levando a uma sociedade
enlouquecida, desumanizada e predatória da natureza.
Então, quando alguém que se afirma religioso ou
dedicado a alguma forma de espiritualidade, usa expressões como “esquerdopata”,
“bandido bom é bandido morto”; ou exclui pessoas por sua cor de pele,
orientação sexual; ou apoia políticas excludentes, ou que tendem a aumentar a
injustiça e o abismo econômico entre as classes sociais (como é o caso da
Reforma trabalhista que acaba de passar no congresso) – essa pessoa não
entendeu bem o que é procurar se elevar espiritualmente. Ninguém atinge níveis
mais altos de espiritualidade, desinteressando-se pelo destino de seus irmãos
em humanidade ou – muito pior – ficando ao lado dos que prejudicam, injustiçam
e ferem outros seres humanos. Deus, o sagrado, o divino, está sobretudo no
outro. Apenas quando tivermos plena compaixão e empatia com o outro, poderemos
nos afirmar espiritualizados!
Esse texto da Confreira Dora Incontri traz excelente elucidação sobre espiritualidade e esquerda. Recomendo com entusiasmo a sua leitura! Parabéns ao Canteiro pela publicação de tão excelente texto, claro, direto e esclarecedor!
ResponderExcluirCaro Castro,
ExcluirTodos os textos da professora Dora são por demais lúcidos e nos forçam a refletir. Esse não é diferente. O Canteiro de Ideias se sente lisonjeado com seus comentários e por ter a professora no quadro dos nossos colaboradores.