A tradição joanina do evangelho cria que Jesus
iria enviar o Paráclito (Consolador), o Espírito da verdade, o Espírito
santo.[i] Para Kardec, referência profética ao espiritismo, à terceira
revelação.[ii] Querem alguns, porém, que isso inviabilize o fato de o seu guia
espiritual, quando encarnado, haver sido o próprio Jesus. Não faria sentido,
segundo eles, que Jesus houvesse prometido enviar a si mesmo. A primeira
inconsistência dessa opinião é exigir da linguagem bíblica significados assaz
precisos, por lógica de exclusão mais aplicável a ciências exatas. O segundo
ponto falho é que a referência profética, para Kardec, é à doutrina espírita,
ali personificada no Consolador; nada obstante à existência de um espírito que
assumiu a ele o nome alegórico de Verdade, interpretação que o símbolo,
polissêmico, permite numa lógica inclusiva. A terceira dificuldade é que essa
opinião desconsidera o fato de que a tradição de João também atribui a Jesus as
seguintes ditas, em 14,18: “não vos deixarei órfãos; tornarei a vós”; em 16,7:
“é conveniente para vós que eu vá porque, se não for, o paráclito não virá a
vós; mas se eu for, eu vo-lo enviarei”; em 16,12: “tenho ainda muitas coisas a
vos dizer, mas não podeis compreendê-las agora”; em 16,25: “eu vos disse estas
coisas em parábolas; hora há de vir entretanto em que não vos falarei mais por
parábolas, mas abertamente vos falarei do Pai”.[iii] Essas palavras da tradição
joanina convidam ao entendimento de que, sim, o próprio Jesus, mais tarde,
encarregar-se-ia de ensinar aquilo que não pudera quando esteve encarnado. A
isso respondem que o próprio Kardec teria negado ser Jesus a identidade terrena
do seu guia espiritual. Será? De fato, Kardec argumenta que, se um outro
Consolador seria enviado por Jesus, não deveria ser esse Consolador o próprio
Jesus;[iv] e, aparentemente, mal arremata que, do contrário, o Nazareno teria
dito: “Voltarei para completar o que vos tenho ensinado”.[v] Mas a tradição
pôs, sim, na boca de Jesus, a fala reclamada; e não só Kardec não a ignorava,
como já a comentara havia dois parágrafos apenas.[vi]
Tudo reside no fato de que Kardec não afirmou
que o Espírito da verdade não era Jesus; Kardec afirmou, isto sim, que o
Consolador não era Jesus. Porque os considerou distintos. Em que sentido,
então, Kardec escreveu que Jesus teria indicado claramente que esse Consolador
não era ele mesmo, em pessoa? Ora; leia-se o escrito kardeciano por completo,
não apenas a sua primeira terça parte.[vii] O mestre espírita disse que a
eterna estada entre nós, desse Consolador, não poderia se referir a uma
individualidade encarnada; sim, a uma doutrina. Foi quando Kardec bifurcou sua
exegese e asseverou que o Consolador era a personificação de uma doutrina
soberanamente consoladora, cujo inspirador seria o Espírito da verdade.[viii]
Coisas, portanto, algo diversas, embora ligadas. Se a tradição de João sugere
Jesus a dizer que, sim, voltaria para completar seu ensino; se isso foi antes
reconhecido por Kardec, uma de três: a) Kardec se contradisse depois de
escrever apenas dois parágrafos; b) houve erro de revisão; c) ele quis
evidenciar que Jesus não completaria seu ensino como individualidade encarnada,
mas inspirando uma doutrina consoladora, de modo espirítico. O pedagogo
pestalozziano distinguiu ensino doutrinário (o Consolador) e seu maior
inspirador e presidente espiritual (o Espírito da verdade). Kardec, pois, tinha
razão em dizer que o Consolador não era Jesus, porque era a doutrina espírita.
Sem embargo, todavia, do envolvimento espiritual daquele que, na Terra, fora
Jesus de Nazaré, agora sob o nome Espírito da verdade. Já lembrei que Kardec
chamou Jesus de Espírito da verdade; afirmou que o espiritismo é obra do
camponês judeu do Mediterrâneo e que este — sendo o Espírito da verdade — é
presidente da doutrina e da regeneração planetária.[ix] Publicou sem reparos mensagem
de Hahnemann revelando que o Espírito da verdade dirige este globo;[x] de
Erasto, a tratar o Espírito da verdade por nosso bem-amado mestre;[xi] sem
deixar, por fim, de registrar, sobre parte das comunicações assinadas Espírito
de verdade, que, apesar de recebidas por diversos médiuns, em épocas distintas,
há entre elas notável semelhança de tom, de estilo e de pensamentos, indicando
uma origem única.[xii]
[i] Cap. 14, vv. 16, 17 e 26: “Et ego regabo
Patrem, et alium Paracletum dabit vobis, ut meneat vobiscum in aeternum.
Spiritum veritatis, quem mundus non potest accipere (...) Paracletus autem
Spiritus sanctus, quem mittet Pater in nomine meo, ille vos docebit ommnia, et
suggeret vobis omnia, quaecumque dixero vobis.” Cap. 15, vv. 26: “Cum autem venerit
Paracletus, quem ego mittem vobis a Patre, spiritum veritatis, qui a Patre
procedit, ille testimonium perhibebit de me (...)”. Cap. 16, vv. 13: “Cum autem
venerit ille Spiritus veritatis, docebit vobis omnem veritatem (...)”.
[ii] Revista Espírita. Mar/1861. Dissertações
Espíritas. A lei de Moisés e a lei do Cristo. Set/1861. Dissertações Espíritas.
Um espírito israelita aos seus correligionários. O Evangelho segundo o
Espiritismo, I e VI; A Gênese, I: 20.
[iii] Novo Testamento. Versão da vulgata por D.
Vicente M. Zioni. São Paulo: Paulinas, 1975.
[iv] Leciona o prof. C. T. Pastorino: “O termo
paráklêtos é vulgarmente transliterado ‘paráclito’ ou ainda ‘paracleto’; ou é
traduzido como ‘consolador’, ‘advogado’ ou ‘defensor’. Examinando-o, vemos que
é formado de pará(ao lado de, junto de) e de klêtos do verbo kaléô (chamar).
Então, paráklêtos é aquele que é ‘chamado para junto de alguém’: o ‘evocado’. A
melhor tradução literal é ‘advogado’, que deriva do latim advocatus (formado de
vocatus, ‘chamado’ e ad, ‘para junto de alguém’). (...) O sentido de
paráklêtosé mais passivo que ativo: não exprime aquele que toma a iniciativa de
defender-nos, mas sim aquele que nós chamamos ou evocamos ou invocamos para
permanecer junto de nós”. (Sabedoria do Evangelho, 8.º vol., O Advogado.)
[v] A Gênese, XVII: 39.
[vi]A Gênese, XVII: 37.
[vii] A Gênese, XVII: 39.
[viii] A Gênese, XVII: 39.
[ix] Cf. cap. 7 deste trabalho: O Espírito da
verdade.
[x] Revista Espírita. Jan/1864: Um caso de
possessão.
[xi] Revista Espírita. Out/1861: Epístola aos
espíritas lioneses.
[xii] Revista Espírita. Dez/1864: Comunicação
espírita.
Que o Consolador quebre os grilhões que nos aferram à adoração ao nosso "bem amado Mestre" como se Ele o Supremo Criador fosse, a qual tem nos afastado do verdadeiro dever, que é reconhecê-lo "modelo e guia" para cada segundo de nossa existência, de modo a cumprirmos o plano de Deus para suas amadas criaturas.
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