O
homem nasce livre, mas em toda parte está acorrentado” Jean-Jacques Rousseau
Ontem, tive um choque que me remeteu a muitas
reflexões: ao passar pela portaria de um prédio comercial em Valinhos,
pediram-me a digital! Ainda não tinha visto isso. Já me tira do sério aquela
maquininha de fazer fotos. Assim como me faz ferver o sangue aquela gaiola nos
prédios, em que se entra, fecha-se a porta de trás e depois se abre a da
frente. Quando embarcamos em ônibus intermunicipais, agora também se exige o RG
e outras informações. Sempre, invariavelmente, eu demonstro minha irritação,
invocando a Constituição, porque isso tudo fere frontalmente nosso direito de
imagem, nosso direito de ir e vir, o direito à nossa privacidade etc… Isso para
não mencionar o “sorria, você está sendo filmado”.
Estamos hoje por toda parte vigiados,
controlados, observados e eu diria humilhados e feridos em nossa dignidade:
digital para entrar num prédio?!?!?
Mas o mais chocante de tudo isso é que as
pessoas não reagem, não se indignam, não reclamam… O mote é “para sua
segurança”!
Isso me remete justamente aos estudos que
estamos fazendo de Zygmunt Bauman. Em suas obras, ele aponta o conflito
existente entre liberdade e segurança e o quanto as pessoas no mundo
pós-moderno estão preocupadas com segurança, mesmo em detrimento da liberdade.
Aliás, em muitas ocasiões históricas, povos inteiros entregaram de bom grado
sua liberdade em nome de uma suposta segurança. E assim, surgem as ditaduras,
os sistemas totalitários, com a supressão das liberdades básicas do indivíduo.
O que esses amantes da segurança não percebem é
que quanto mais entregamos nossa liberdade, mas inseguros estamos. Porque vamos
perdendo o direito sobre nós mesmos, vamos favorecendo o arbítrio, o poder
abusivo da autoridade (essa autoridade pode ser desde o porteiro de um prédio
até a polícia violenta; desde o professor autoritário que ferra o aluno até o
Estado que pode suspender os direitos fundamentais do cidadão, em regimes
fechados).
Ocorre que os defensores da suposta segurança
aceitam a supressão da liberdade e entregam o controle a terceiros e fortalecem
atitudes autoritárias e repressoras, porque desejam que determinados inimigos
da sociedade sejam isolados, vigiados e, sobretudo, punidos. Esses inimigos
podem ser os judeus numa sociedade nazista; podem ser os comunistas, numa
ditadura como a que houve entre nós; podem ser os negros, os latinos e
excluídos, numa sociedade norte-americana ou os favelados, negros e
marginalizados no Brasil.
Ou seja, os buscadores de segurança na verdade
estão dividindo a sociedade entre aqueles que devem ser protegidos daqueles que
devem ser excluídos, mantidos à distância e mesmo exterminados. O discurso da
segurança é necessariamente discriminatório, autoritário, desumano.
E pode sempre se virar contra aquele mesmo que
o pronunciou. Pois ao entregar tanto a própria liberdade para ter a ilusão da
segurança, acaba-se cedendo demais, acabam todos se tornando prisioneiros.
A segurança nunca é para todos. E ao
suprimirmos a liberdade para termos a segurança de alguns setores privilegiados
da sociedade, todos perdem a liberdade afinal.
Ocorre que já sabiam bem os revolucionários
franceses, embora não o tivessem praticado, porque feriram largamente a
fraternidade, que juntas devem andar a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
É historicamente obscura a formação dessa tríade, embora essas ideais
percorressem isoladamente autores como Rousseau e Voltaire, Diderot e Condorcet
e fortemente nos meios franco maçônicos, que tiveram papel preponderante nas
preliminares da Revolução Francesa. Allan Kardec, como bom herdeiro do
Iluminismo, fez um interessante estudo sobre essa questão em Obras Póstumas,
analisando como um conceito depende do outro. Não pode haver liberdade sem
igualdade e fraternidade e vice-versa.
Em países nórdicos, por exemplo, tão badalados
pela confiança com que as pessoas pagam um ônibus sem cobrador, não há
desigualdade social, não há bolsões de miséria, não há guetos… A igualdade
garante a segurança de todos, sem necessidade de supressão da liberdade!
E a fraternidade então? Essa está ausente em
todos os quadrantes do planeta! Se não houvesse essa gritante diferença entre
classes, povos, indivíduos, em que alguns possuem a maior parte da riqueza da
terra e a maioria pouco ou nada tem; se não houvesse divisões, escravidão,
exploração de um ser humano pelo outro… enfim, se todos se olhassem e se
considerassem como irmãos em humanidade, não haveria o menor perigo nesse
planeta azul! A violência, que pode nos ameaçar individual ou coletivamente,
brota das condições desumanas, antifraternas, injustas, violentas, das relações
sociais, locais e internacionais.
Não me sinto nem um pouco segura ao entrar num
prédio com gaiola, ou ter que colocar minha digital… quem disse que tudo isso
não pode ser em breve usado contra mim mesma, se eu discordar de algum sistema
totalitário que se impuser, ainda que temporariamente (como todos os sistemas
tirânicos)? Não me sinto segura de estar sendo filmada e fotografada a torto e
a direito. Quem poderá usar essas imagens?
Nosso compromisso de pessoas corajosas, livres
e pensantes é de trabalhar por um mundo mais justo, mais igualitário, mais
fraterno, onde não tenhamos que temer outro ser humano.
E como sempre, o nosso lema imprescindível,
indiscutível: só se faz isso através da Educação. Ora, obviamente não em
colégios, que mais parecem prisões, engradados, concretados. Nunca me esqueço
de uma grande amiga e colaboradora da Universidade Livre Pampédia, que derramou
lágrimas ao contar o seguinte fato: um aluno seu de escola pública, que tinha o
pai numa penitenciária, um dia, olhou à volta e concluiu, a escola é parecida
com a prisão em que meu pai está. As prisões escolares são muitas. Podem estar visíveis
no muro alto, nas grades, no cinza. Mas podem ser sentidas no modelo
tradicional, em que o aluno é condicionado à obediência. Esse aluno não vai se
chocar ou discutir se lhe pedirem a digital na porta de um prédio comercial.
Vive la liberté!
fonte: https://bloguniversidadelivrepampedia.com
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