“A
conclamação para amar a teu próximo como a ti mesmo, diz Sigmund Freud, é um
dos preceitos fundamentais da vida civilizada (e, de acordo com alguns, uma de
suas exigências éticas fundamentais). Mas é também o que de mais antagônico
pode haver com o tipo de razão que essa mesma civilização promove: a razão do
interesse individual, da busca da felicidade. Seria a civilização, então,
baseada numa contradição insolúvel?”
Com essa pergunta, Zygmunt Bauman abre o
primeiro capítulo do seu livro A Ética é
possível num mundo de consumidores? Essa é apenas a primeira grande
perplexidade que o livro aponta, diante da tarefa a que se propõe: um “esforço
para compreender o mundo”.
De fato, ninguém poderá negar que vivemos um
momento histórico sem precedentes, em mutação diária, em que muitas das
interpretações e verdades do passado não se adequam mais para explicarmos os
fatos, que nos atropelam com sua brutalidade, com sua rapidez, com seus
aspectos surpreendentes e, muitas vezes, assustadores.
Autores como Bauman se colocam como cirurgiões
dedicados a dissecar o presente, para tentarem enxergar alguma luz no futuro,
uma saída elegante e vitoriosa para nossos múltiplos problemas: ambientais,
econômicos, políticos, sociais etc…
O campo das soluções, porém, passa por roteiros
que sim, remontam ao passado, a valores que são do passado, têm de ser do
presente, se quisermos que haja futuro. Não por acaso, uma das frases mais
citadas no livro de Bauman é esse antigo adágio cristão: amar ao próximo como a
si mesmo, proclamado por Jesus. Numa das mais belas citações feitas por Bauman,
do jornalista e poeta polonês Kapuscinski, esse mandamento brilha diante dos
genocídios que se tornaram frequentes nos séculos XX e XXI:
“Uma
vez que não há nenhum mecanismo, nenhuma barreira legal, institucional ou
técnica capaz de rechaçar de fato nossos atos genocidas, nossa única defesa
contra eles repousa na elevação moral de indivíduos e sociedades, na mesma
medida. Numa consciência espiritualmente vivida, numa poderosa determinação para
fazer o bem, num constante e atento cuidado ao mandamento: Ama teu próximo como
a ti mesmo”
A questão que se apresenta diante dessa
afirmação é a seguinte: o ser humano é capaz de amar ao próximo como a si
mesmo? Para Freud, é uma necessidade civilizatória, mas algo totalmente
contrário à natureza humana, que é egoísta e agressiva. Diante dessa teoria,
que sem dúvida, encontra argumentos fartos em todas as barbáries cometidas
desde sempre pelos seres humanos contra outros seres humanos (sem mencionar os animais),
há um mandamento, uma leve esperança, uma possibilidade talvez remota de que
possamos construir uma civilização, cujo traço dominante seja a solidariedade
amorosa entre as pessoas.
Mas se lançarmos luz sobre aquelas pessoas
numerosas, incontáveis mesmo, conhecidas ou não, do passado ou do presente, que
mostraram que é possível viver de maneira solidária, amorosa, devotadas até
sacrificialmente ao bem, diremos que é natural ao ser humano ser bom. Que essas
pessoas não viviam ou não vivem em conflito, obrigando-se a si mesmas a terem
uma postura de ajuda ao próximo. Ao contrário, quem vive em conflito consigo
mesmo, em fuga acelerada de si, são aqueles que ferem e prejudicam, matam e
dominam.
Com isso, queremos dizer que a solução,
apontada por Bauman, Kapuscinski e até pelo tão pessimista Freud, não é tão
utópica assim.
Se enxergarmos que a verdadeira natureza humana
– como queriam Sócrates, Jesus, Buda, Francisco de Assis, Gandhi e também os
grandes educadores como Comenius, Rousseau, Pestalozzi, Montessori e Korzcak –
é essencialmente boa, no fundo divina, há não apenas uma possibilidade remota
de saída das perplexidades do mundo em que vivemos. Há um caminho seguro, uma
certeza dada. É preciso, porém, cavar a fundo essa natureza, estimulá-la, conclamá-la
à luz – e isso é sobretudo tarefa da educação. Então, saberemos que era verdade
o que Jesus disse: vós sois deuses!
Nota: Esse instigante livro de Bauman, A Ética
é possível num mundo de consumidores?, que me suscitou as reflexões acima, será
objeto de análise e discussão no encontro on-line pela Universidade Livre
Pampédia, da série 5 Livros, para degustar, detalhar e discutir. Veja mais no
link abaixo: http://www.universidadelivrepampedia.com/#!blank/dq39f
Nenhum comentário:
Postar um comentário